Retrato em chamas Junior

Uma percepção impossível

“Dizer que Madeleine é uma falsa loira, francamente não resolveria nada”

Daniel Arasse, historiador do maneirismo italiano

“Estou sempre procurando por você e acho que sinto falta de tudo, porque sinto sua falta”

Marie de Rabutin Chantal, marquesa de Sévigné

Closes, planos de conjunto, vistas gerais e planos de detalhe: o cinema – por osmose fetichista numa arte tão votada à obsessão en abîme pela imagem ou por direito genealógico de herança – herdou da pintura o retrato e o modulou segundo modus operandi muito seus. A pintura – arte fixadora para os auspícios da Eternidade – acabou eclipsada por este herdeiro onívoro e holístico (pensemos na relevância do som, em off ou em campo), por seus tools e táticas de operação representativa. Retrato de uma jovem em chamas tenta de uma maneira romanesca extremamente austera (alguns menos cuidadosos diriam: crepitante de seca) restituir à pintura esta anterioridade na fixação das paixões, dos costumes e das ações, heroicas ou não (Goya, Van Eyke) dos homens. Aqui, temos uma espécie de épica intimista, pois o contato da pintora com sua modelo será conquistado tormentosa mas silenciosamente (nisto o filme reproduz com acuidade o recalque do século XVIII: bibelôs e boudoirs, objetos frágeis demais para serem possuídos pela ação e que eram uma praça de guerra para seres não dotados de poder ativo, que não os da mise en scène e do silêncio, entre as portas e reposteiros de cortinas). Para poder penetrar com seu aríete pictórico num mundo demasiado fechado, excessivamente centrípeto, de Héloise (Adèle Haenel), Marianne (Noémie Merlant) começa com um estudo a crayon: com estes traços mais firmes e precisamente estoicos, que a pintura incipiente preenche em jorros, começa a se delinear para uma o rosto da outra – até então visto de perfil e recoberto com um manto. Além de uma história de amor lésbica em tempos de cortesia, portanto, sob o emblema da castração, sublimada pelos ademanes e gestos decorados pela summa das etiquetas em voga, Portrait consiste também, e talvez antes de tudo, na constatação que a pintura – substituída pela fotografia e portanto subjugada a um processo histórico de perda da aura pela arte que ‘se lhe seguiu’ – é o lugar do imaginário, e portanto um meio passo voluptuoso para se constituir o objeto amado pelo sujeito empreendedor num jogo erótico dos mais inventivos jamais vistos. Em Retrato, a pintura demanda vários movimentos, cálculos, exercícios de estilo ou de meios, até que finalmente o manto abandone o rosto de Héloise e esta possa olhar Marianne frontalmente.

Notemos que o que está em jogo na relação entre ambas é uma espécie de romance de formação, pois Héloise, por exemplo, não conhece música, e portanto lhe foi roubada uma parte considerável de aparição sensório-motora do fenômeno do ser, pois aprender música é treinar os ouvidos para se tornarem ouvidos. Marianne executa uma peça de Beethoven que anuncia uma tempestade no início do filme, e é esta tempestade (pensemos no recalque deste século e de seus costumes, pensemos que tudo deve permanecer silente e permeado pelo entreolhar, modulado pela pausa, orquestrado pelo adágio) que voltará ao final do filme, durante uma representação musical para complementar o olhar com o ouvido, e nos mostrar como demonstrar (um tanto demonstrativamente demais, aliás) que o cinema é uma arte holística, e que só estará completa quando olho, ouvido, tato e seus coadjuvantes (pincéis, câmeras, binóculos) estiverem à sua mão. É bom lembrar que esta será a última aparição de Héloise a Marianne, daí talvez o excesso de mise en scène, incluso facial, imposto à atriz sob o influxo da música: é um objeto precioso o que se fixa definitivamente e se abandona para sempre ali. O primeiro esboço a lápis de Héloise é um desenho semi-elaborado onde se vê menos do que se intui a petitesse nature, os contornos, as grandezas e as planícies deste corpo de temperamento casmurro mas linhas sinuosamente curvas cuja figuração será progressivamente moldada pelo desejo de Marianne. Mas em que consiste a arte, afinal, de que este filme nos dá uma essência às vezes elegíaca sem jamais abandonar o estoicismo da letra, conjugada com a alacridade do Espírito? A arte clássica, que é abordada aqui (notemos que Marianne oculta o quanto pode da mãe de Héloise os meios da confecção do quadro, escondendo atrás do vestido a mão suja de tinta: elidir os meios, estratégia classicista por excelência de escamoteamento do processo) é a arte que, como na História contada mais adiante entre Eurídice e Orfeu, transfigura o fenômeno adorado para dar-se a ilusão, de natureza mimética, de que ele sempre permanecerá lá, à mercê da representação extasiada da amante/autora.

No primeiro embate dialogal entre ambas, quando Marianne mostra à amiga o seu primeiro retrato acabado, ela adverte Héloise que se este não parece ‘mimeticamente’ com esta é porque a Verdade não pertence unicamente a Marianne, a como ela a vê e fixa no nanquim, aquarela, óleo, e sim às regras e convenções do jogo da pintura. Mas Héloise se mostra uma ferrenha idealista, e nos diz que há coisas que permanecem, e que portanto escapam ao draconiano histórico das convenções. É uma confissão de amor atrapalhada, casmurra e um tanto autoritária como a personagem, mas o que é importante ressaltar aqui é que Retrato não é apenas esta história de amor que o recalque de finais do século XVIII impediram de se concretizar à vista de todos, mas uma reflexão em passo andante e contracampos muito fluidos sobre a analogia, mais do que possível, que se pode fazer entre amor romântico e idealismo artístico. “Sim, há coisas que permanecem”, mas talvez não “Para nós”.

Se Marianne, após este diálogo meio revelador-meio oculto, resolve apagar o rosto da retratada, dando-nos um Francis Bacon avant la lettre ao invés de Fragonard, é porque o desejo de Héloise conta para ela, e aí vemos o limiar, a ser desenvolvido ao longo do filme, de que ao contrário neste gênero de paixões, por exemplo representadas num século de libertinos para uma plateia ainda mais libertina, não há um voyeurismo-vampirismo de uma parte a outra em Retrato de uma jovem em chamas. Marianne se queima no mesmo fogo, se deixa jogar no mesmo tabuleiro de peões, é sequestrada e imolada pelas mesmas paixões que acometem Héloise, e isto até o ponto de oferecer um retrato seu improvisado para a amada, em seu último encontro. Encontramos aqui um experimento herético, sobretudo se situarmos o filme no classicismo que invoca, pois um pintor, segundo a norma clássica de que Daniel Arasse inventariou os efeitos de assinatura, raramente aparece num quadro pintado por ele, a não ser sob as formas disformes, transformes, miniaturizadas ou travestidas de seu rosto “em assinatura”, em geral no canto in extremis da tela. O longa de Céline Sciamma é clássico até certo ponto – digamos: o primeiro diálogo de ambas sobre o quadro queimado por Marianne. A partir daí, é um filme que não deixa nenhum personagem imune ao vampirismo do olhar e do valor alheio, e portanto não aposta (ao contrário de tantos espécimes vulgares ou viperinas onde se representam as relações amorosas, em geral sob a perspectiva falocrática do olhar do Homem) em nada senão na castração, contribuição excelsa, física e espiritual da mulher, à Ausência, à Transcendência, ao Olvido e à recuperação deste olvido pela obra de cultura. Se Marianne se deixa afetar pelas opiniões, poses e sobressaltos íngremes de Héloise é porque a ama perdidamente, é certo, mas também porque aquiesce ao Feminino em todas as suas estações transfiguradas. Vejamos a bela sequência do primeiro beijo: Héloise se oculta numa gruta, invisível aos olhos de Marianne que permanece próxima à arrebentação das ondas (ambas portam lenços sobre o rosto); Marianne se precipita para ver Héloise, e o que Céline nos mostra é esta ogiva de cristal chamada Héloise incrustada na parede negra da gruta, à espera de Marianne; precisamos esperar um tanto ainda, até que a outra entre no plano, aproxima-se a câmera de ambas, e, desenlaçando o lenço, dão-se o primeiro beijo apaixonado; é a fresta cintilante de que falava Barthes, a ocultação-revelação erótica o que está em jogo aqui, e que dá a Retrato um lugar especial em uma época como a nossa que do erotismo só reteve a revelação, em geral de conteúdos sórdidos. Se Marianne oculta o rosto durante o aborto da criada, é porque ela, como tripla representante – do artista clássico, da amante apaixonada e da testemunha muda – só pode suportar o vivido ora sob a forma da revelação ora do ocultamento, e os clássicos sempre vão preferir a litote (a elipse da elipse na língua francesa mais classicista) a uma forma de representação mais explícita, mais obscena. Sem a falta, a carência, o eclipse do “objeto a”, não há esta plenitude da paixão que os filósofos pré-socráticos sacrificavam ao ser e que nossa época moderna em tantos sentidos e arcaica em todos, toma de empréstimo para revelar, através do sentimento amoroso, sua relação mimética com a arte – esta igualmente feita de buracos negros que cabem ao espectador preencher. Sim, falamos de fora de campo, algumas vezes mobilizados/ativados no filme, pois um campo e um contracampo de cinema jamais serão suficientes para representar o irrepresentável do Amor, da Morte, da Infinitude que estas duas experiências inexperienciáveis tem a nos oferecer (e negar) ao mesmo tempo.

Até certo ponto, a percepção íntegra do ser amado é impossível (as sucessivas versões do retrato de Héloise, sempre por acabar), e o mistério de Orfeu, ontem cultuado por uma cultura que conhecia a Morte – e, portanto, seus avatares indispensáveis para a constituição da cultura e do afeto – comparece ao filme para nos recordar que o Amor é talvez uma terra desolada para o homem que aspira à Eternidade. É afeto debitário de fragmento, de carência, de suspensão e de adiamento, cuja realização só se dará inteiramente quando formos outros (ou mortos, ou Obra). Esta é uma das lições que nos cabe tirar de Retrato, se não o quisermos alugar para as nossas obras mais significativas à Vulgata de paixões menos nobres.


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