Van Gogh, de Maurice Pialat (França, 1991)

março 23, 2014 em Em Campo, Rafael C. Parrode

O pincel, a câmera, o gesto
por Rafael C. Parrode

“Pois Van Gogh tinha chegado a este estágio de iluminação no qual o pensamento em desordem reflui diante das descargas invasoras da matéria, no qual pensar já não é consumir-se e nem sequer no qual nada mais resta, senão juntar pedaços do corpo, ou seja, ACUMULAR CORPOS”.

Antonin Artaud, Van Gogh: Suicidado pela Sociedade

Van Gogh é provavelmente o filme testamento de Maurice Pialat. Nele, Pialat se projeta enquanto artista na figura do pintor holandês, enquanto pintor, sobretudo uma vez que ele próprio ingressou no mundo das artes pintando, e foi dirigir seu primeiro longa apenas em 1969, com A Infância Nua. Pialat em nada se identificava com seus predecessores da Nouvelle Vague, tendo buscado inclusive romper com vários de seus ideários, propondo um desnudamento do aparato cinematográfico, uma desconstrução de seus mecanismos de linguagem e um retorno ao germe do cinema quando os Lumière inscreveram o “real” na película, num gesto inaugural que se perdeu a partir da criação de uma “linguagem cinematográfica” dominante, limitando os processos criativos que o cinema poderia se valer para o enfrentamento com o mundo.

Não por acaso, o filme começa com a chegada do trem na Estação, trazendo Van Gogh ao lugar onde ele sucumbirá ao seu confronto, com a imposição da razão e das convenções sobre a sua genialidade, sobretudo. É o atropelo do inconsciente – do sobrenatural, do imponderável, indomável e delirante – pelo avanço da razão – do cartesianismo, da tecnologia e do cientificismo. Essa filiação com os Lumière enquanto pintores, e do cinema enquanto sucessor natural da pintura, cria um elo primordial para essa identificação de Pialat com Van Gogh e que é viva no filme: Pialat se identificava menos com outros cineastas, e mais com pintores, especificamente com alguns pintores impressionistas e pós-impressionistas que alcançaram essa pureza do olhar a partir da libertação das narrativas, dos dramas burgueses, desvencilhando a paisagem do homem e fazendo com que ela se tornasse, por si só, a representação do olhar e da paixão do artista pelo mundo.

Genuinamente um cineasta das potências, do fluxo, Pialat inscreve seu cinema a partir do gesto provocado pelo devir, pelas pulsões imediatas geradas pelos atores durante as filmagens, pelo movimento bruto que nasce do acaso. Aqui, ele assimila esse procedimento para se aproximar das pinceladas carregadas, intuitivas, convulsivas e violentas de Van Gogh, propondo uma aproximação menos literal da biografia do pintor holandês. Diferente de Minelli e seu estudo de cores e texturas por meio da recriação do universo pintado por Van Gogh em Sede de Viver (1956), Pialat está mais interessado nos espasmos de energia, nesse corpo-a-corpo do artista com o mundo, no embate de seu eu consigo mesmo, de sua resistência em se deixar domesticar. Como de costume, o diretor está em busca da expressão máxima do gesto, das irrupções de energia, erupções vulcânicas provocadas pelos movimentos dos corpos, materializados logo na abertura do filme pelas pinceladas em close, agressivas, potentes rajadas de azul, de massas grossas de azul e branco, espessas, vivas.

É natural, portanto, que o cineasta escolhesse Van Gogh, artista com quem se identificava pela maneira como se colocou para o mundo, para a pintura, como desgraçadamente viveu e traduziu-se em suas telas, morrendo por não se enquadrar em uma sociedade opressora, intelectualista, cientificista, recalcada e doente. Pialat certamente leu Van Gogh: Suicidado pela Sociedade, de Antonin Artaud, principalmente no que diz respeito à construção dos personagens do Dr. Gachet (Gérard Séti) e do  irmão Théo (Bernard Le Coq), figuras decisivas para a incubação das obsessões e delírios que viriam sucumbir em seu suicídio. Em Pialat, o Dr. Gachet tem muito mais de patético, mistura de uma doçura cínica com inveja amarga, menos frio e calculista do que Artaud fazia parecer. É claro que Artaud não está atacando somente a figura pessoal de Gachet, mas tudo o que ela invoca e representa: as instituições, a medicina, a psiquiatria. A figura difusa de Gachet só se mostra mesmo diante de seus confrontos com a filha Marguerite (Alexandra London), que lhe revela o seu desprezo pelas pessoas e lhe esfrega na cara suas sujeiras. Marguerite é a única a enxergar em Van Gogh essa aura visionária, essa energia incontrolável, essa lucidez incompreendida que Gachet pretende domar e apaziguar. Da mesma forma, a figura de Théo é pintada por Pialat de maneira um tanto mais complexa, difusa, fazendo-o transitar entre o histérico e o anódino, o desencanto e a euforia, a culpa e o ressentimento. Ainda assim, Théo é a figura opressora que sustenta financeiramente o irmão e que não admite a sua genialidade. “Nem se ele pintasse como Monet”, sentencia Théo em determinado momento do filme, ao dizer de sua insatisfação com o trabalho do irmão.

Para Artaud, Van Gogh era um artista visionário, um genuíno pintor, que transcendeu sua arte exatamente por não almejar ser nada mais que isso: um pintor. Morreu incompreendido pela radicalidade de suas pinceladas, pela explosão convulsionada e devastadora de suas cores e movimentos. “Porque Van Gogh foi o mais autenticamente pintor entre os pintores, o único que não quis rebaixar a pintura como meio estrito de sua obra, e como marco estrito de seus meios” – frase que poderia facilmente ser aplicada ao cinema de Pialat.

Esse cinema fenomenológico de Pialat corrobora para uma construção em abismo – mise em abyme – desnundando os processos de criação de seus filmes de maneira quase metalinguística. Van Gogh é tanto um filme sobre pintura como sobre cinema, propondo uma dupla ação que atravessa o drama e o reflete numa dimensão menor. A narrativa fragmentada, esburacada, episódica, quer menos dar conta de uma cronologia do que de um estado de espírito, de uma subjetividade amplificada pela superficialidade das coisas. Pialat está atrás do gesto deflagrador, das faíscas incendiárias, dos rompantes violentos que transformam energia em arte – válvula de escape do artista para com suas obsessões, angústias, revoltas, dúvidas. E isto está materializado no próprio corpo dos atores, que, nesse embate com o mundo, revelam essas texturas, esses movimentos, essas cores, compondo blocos quase independentes entre si, espécies de atos que pontuam os últimos dias da vida do pintor.

Esse paroxismo de Van Gogh – sua gradual tomada de consciência diante do seu lugar no mundo – é o que o coloca à deriva, segundo Artaud, “por ter chegado a ser corporalmente o campo de batalha de um problema, em torno do qual se debate, desde as origens, o espírito inócuo desta humanidade, e do predomínio da carne sobre o espírito, ou do corpo sobre a carne, ou do espírito sobre um e outro.” Pialat tem consciência plena disso; sabe que o cinema nasce dessa erupção que irrompe violentamente a terra, lançando lavas, magmas, movimentando placas tectônicas e alterando o eixo da vida. Em Van Gogh, a câmera se torna pincel, o cinema se torna pintura, Pialat se torna Van Gogh, a arte se torna vida.

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