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Entre espelhos

Prólogo – Em um semicírculo, sob a luz divina e difusa de um ateliê setecentista, algumas mulheres desenham uma modelo viva. Em gestos suaves, a câmera de Sciamma flauteia por entre as feições cândidas dessas jovens, atentas aos seus esboços e às orientações de uma voz que ocupa, oca, esse espaço. O passeio desemboca na mulher que guia as estudantes, a modelo-viva que orienta o olhar e a atenção de quem a desenha. “Olhe a posição dos meus braços, das minhas mãos”. Duplamente emoldurada pela câmera e pelo cenário anteposto, Marianne (Noémie Merlant) é a protagonista que Sciamma perscruta e rumina, regurgitando-a à espectadora em forma de um fac-símile. Recorrendo à mimese e aos gestos especulares, Retrato de Uma Jovem em Chamas organiza-se a partir de representações e reenquadramentos das próprias personagens das quais deseja ocupar-se. E é a partir desse jogo de reinterpretação e reprodução de imagens que os ecos do filme se multiplicam, sublimando os alicerces temporais e topográficos, fazendo-se não apenas história, mas, fundamentalmente, mito.

O prólogo se encerra e então somos transportadas para um passado remoto na vida de Marianne, que, apesar de não ter envelhecido um dia sequer, remonta um “muito tempo atrás” como se houvessem passado séculos. A volta ao passado é travessia feita por um pequeno bote que navega em alto mar. Numa viagem instável, não sabemos onde estamos – e nem para onde vamos. Sacolejamos junto àqueles que estão no barco, o barulho das ondas quebrando trovoa por todo o espaço e a câmera agita-se tanto quanto o mar. Uma onda bate mais forte e a bagagem de Marianne é jogada na água. De súbito, ela pula para buscá-la e retorna encharcada ao barco. A chegada na ilha desconhecida, de natureza violenta, é ainda mais atravancada pelo peso de suas roupas encharcadas e pelo desajeito de sua bagagem. Marianne, assim como nós, não pertence àquele espaço.

A razão da viagem de Marianne a essa ilha remota é logo desvelada: ela é a pintora encarregada de fazer um retrato, em segredo, de Héloïse (Adele Haenel). Disfarçada de dama de companhia, ela deve observá-la em seus passeios diários e, à noite, pintá-la de memória. Héloïse recusa-se a posar porque recusa o fardo deixado pela irmã após seu suicídio: o casamento. Ela é prometida a um milanês que vai aprová-la como sua esposa caso goste do retrato. Pintar a partir da memória já conjuga essa relação fractal que atravessa a obra toda: a primeira imagem que Marianne executa de Héloïse é tão nebulosa quanto a relação entre elas.

O liame entre nós, as imagens e as personagens nelas enquadradas evolui da fragilidade trôpega natural aos forasteiros para uma simbiose bastante confortável e harmônica, revelada pela relação da câmera com as personagens, que estabelece um contato inicialmente invasivo, como Marianne ao chegar na ilha, e, aos poucos, vai se tornando íntima, cúmplice de uma relação amorosa. No início, os passeios de Marianne com Héloïse são marcados por um desconforto profundo, em que a câmera tropeça, chega perto demais, treme. Se no início Marianne é o elemento estranho àquele espaço, nós, que a acompanhamos, também somos estrangeiras. Colidindo primeiríssimos planos com paisagens amplas, realiza-se um exercício de afastamento e aproximação a essas personagens.

A partir de um estranhamento mútuo, a imagem que a protagonista pinta é opaca e oblíqua, e o desanuviar da pintura se dá no tempo do desejo, da relação amorosa que se desvela entre elas. O amor progride à medida que a pintora avança na construção do retrato. Marianne está conhecendo Héloïse ao mesmo tempo em que desvela suas feições, o formato de seu rosto, os ângulos e a incidência da luz sobre sua tez. Utilizando-se do jogo das posições simétricas entre a musa e sua pintora, o filme as equipara enquanto amantes que mutuamente se perscrutam.

Sciamma nos convida a vislumbrar uma relação tomada de reflexos, circunscrita à ideia da produção de imagem de alguém produzindo imagens. Somos carregadas para dentro de uma paixão que tem como estímulo a observação do ser amado, disposta na relação especular entre a pintora e a retratada.  O ponto de vista do filme é o de Marianne, personagem-narradora, junto da qual temos acesso aos aposentos e à solitude nua dos tabacos fumados no lusco-fusco. Já Héloïse parece estar envolta em mistérios, distante e pálida, e à espectadora nunca é dada a chance de conhecer sua intimidade. Uma das primeiras apostas especulares revela-se aí: Marianne é a protagonista do filme, por quem a câmera se apaixona primeiro, e Héloïse é a protagonista de Marianne, que tem sua imagem duplamente pulverizada; uma vez pela personagem que a ama e outra pela câmera (e, talvez, uma terceira, pelo retrato).

O espelhamento das cenas dá a cadência e o tempo do filme. Constituída por retornos e ciclos, a trama assombra a si mesma, retomando acontecimentos anteriores em ecos que ressignificam, ou reconstroem, algo já enunciado. A primeira parte do filme, na qual Héloïse ainda não sabe que está sendo retratada e o amor das duas ainda não foi consolidado, encontra-se ladeada por duas cenas que ressoam: o momento em que Marianne descobre o quadro inacabado e sem semblante de Héloïse, feito por um pintor precedente, e o momento nevrálgico em que a pintora revela a Héloïse que a está retratando e, ao desagradá-la com a obra, desfigura o rosto do ser amado em um gesto furioso. O descontentamento existe porque Héloïse não gosta de como sua imagem foi feita e não se enxerga devidamente representada. Os fragmentos de sua figura foram captados à deriva por Marianne em seus momentos de observação travestidos de cumplicidade. A feitura do retrato foi tão escondida quanto o amor compartilhado pelas duas.

Na segunda vez que Héloïse é desfigurada, abre-se, no filme, um novo capítulo. Querendo que a estadia de Marianne na ilha se prolongue, sua musa aceita posar para o retrato. As escolhas no filme parecem sempre dotadas dessa dupla responsabilidade: escolher que a pintora fique é também aceitar seu casamento porvir. Não há espaço para a plenitude completa, para a consagração de uma felicidade perpétua. A concretude da vida parece existir em uma dimensão paralela na qual tudo que acontece nessa ilha, platônica, mitológica, gera um efeito em contrapartida. Mais um espelhamento.

A dupla desfiguração do rosto de Héloïse remete, talvez, à impossibilidade de qualquer imagem ser fidedigna a seu objeto originário. A pintura que surgirá, então, não é necessariamente mais fiel ao que Héloïse é, mas, sim, é o resultado do trespassar de uma pessoa no imaginário de outra, mediada, acima de tudo, pelo amor compartilhado. A imagem que Héloïse deseja não é a mais real, mas é aquela produzida por quem mais anseia vê-la, bela e romanticamente: quem a ama. O milanês se apaixonará pelo que Marianne viu em Héloïse, e não por quem ela é; Marianne dá a ele a sua projeção.

A relação de Marianne e Héloïse se desenvolve, a partir desse momento, em solo fértil, tangível. É no instante em que Héloïse reconhece-se como figura da construção imagética de Marianne, e que ela se reconhece como matéria do amor da outra mulher, que o relacionamento das duas floresce e se concretiza. Ao pintar, Marianne mimetiza a evolução da paixão que, quiçá, nem ela sabia existir. É conduzida por Héloïse que ela se descobre, também, apaixonada.

A ilha na qual a mãe de Héloïse, sua filha e a criada Sophie (Luàna Bajrami) vivem configura uma espécie de cosmos de um suposto orgânico feminino. Num safe space do século XVIII, aquele entorno é idílico não pela opulência e deslumbre de suas praias e paisagens, mas, sim, pela sensação de suspensão temporária das regras patriarcais. A primazia do feminino, entretanto, nunca se executa completamente. Se a materialidade masculina é, de fato, ausente da ilha, a condução dos eventos é ditada, em maior ou menor grau, pelas vontades dos homens à margem da narrativa. A saída e a entrada de pessoas na ilha só são possíveis se feitas pelos barqueiros; o encontro de Héloïse e Marianne só ocorre porque o retrato a ser pintado é um capricho pré-nupcial do seu futuro esposo. Melancólica, a liberdade insular é limitada pela gerência masculina, que, de alguma forma, é quem organiza temporal e fisicamente aquele espaço, mesmo que sua agência seja, em grande medida, turva.

Sciamma arquiteta uma existência em suspensão. Ainda que seja um filme histórico, com marcas de um tempo específico, pode-se facilmente concebê-lo como mito. A mágica dos acontecimentos, as coincidências e a fuga edificam uma alegoria, não só para as espectadoras, mas inclusive para Marianne e Héloïse. Quando as duas fazem a “escolha do poeta”, aludindo a um momento da narrativa em que elas leem juntas e discutem por que Orfeu teria se virado e olhado Eurídice (que na versão delas teria chamado Orfeu e dito “retourne toi”), devolvendo-a ao abismo do inferno de Hades, elas optam pela mitificação do romance. A concretização do amor entre elas foi, de alguma forma, condicionada pelo momento em que Héloïse decide posar, que é, por consequência, o momento em que aceita seu casamento. Aceitar o amor é aceitá-lo enquanto eterno passado, enquanto fábula de si mesmas. Ao fechar a porta para Héloïse, que diz “retourne toi” (vire-se), conjuga-se o pacto de sucumbir ao destino do casório por parte de Héloïse e, para Marianne, de existir como poeta, que concebe a amada no plano metafórico sem nunca, de fato, tê-la.

O gesto de tornar-se mito permite-nos desvelar uma série de incorporações metafóricas que invadem o filme. A ilha incerta remete à ilha grega de Lesbos, onde Safo, a célebre poeta, escreveu seus poemas sobre amores lésbicos (palavra esta que vem justamente de “Lesbos”) e sobre a amargura do amor. Safo, de acordo com uma das versões possíveis, teria se jogado de um penhasco, em um movimento idêntico àquele executado pela irmã de Heloise. Marianne, do mesmo modo, carrega consigo traços da pintora barroca Artemísia Gentileschi, que, assim como ela, é filha de um já consagrado pintor e herda sua atividade de artista-comerciante. Artemísia também é o nome dado à planta abortiva utilizada pela criada da casa com ajuda das duas protagonistas. Há um enfeitiçamento do filme pela mitologia enquanto metáfora, pela paixão enquanto tema e pela recuperação de símbolos femininos obscurecidos pela história vigente.

O espelhamento insistente de imagens faz da cópia original uma amostra perdida. E é nesse ofuscamento da matriz que o filme se avoluma, emerge na potência de transformar o simulacro em matéria platônica. Tornar-se mito para si mesmas é a maneira mais apaixonada de reviver sua história.

Epílogo – Ao fechar a porta, Marianne sela o destino de idealização imaculada do romance que elas viveram. Nos derradeiros minutos de Retrato de Uma Jovem em Chamas, Marianne nos narra seus dois únicos encontros com Héloïse depois do amor rompido: viu-a uma vez em uma pintura e outra em um teatro. Enquanto a pintura é carregada de símbolos ocultos que remetem ao acontecimento, o encontro no teatro nada mais é que a constatação da imaterialidade da paixão. Marianne, de quem mais uma vez ocupamos o ponto de vista subjetivo, tem Héloïse como espetáculo, observa-a uma última vez ao som da mesma música de Vivaldi que tocou para ela nesse passado inatingível.  Héloïse, entretanto, não a vê. A materialidade do amor é substituída pelas memórias errantes e embevecidas, restando apenas a crença de que aquilo existiu. Marianne, olhando para Héloïse do outro lado do teatro opta, mais uma vez, pela lembrança que reside na escolha do poeta – e não diz “retourne toi.


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