Bande de filles, de Céline Sciamma (França, 2014)

maio 20, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

bandedefilles1

Nós, as negras
por Pablo Gonçalo

De fato, é ocasional, ou mesmo raro, vermos personagens negras no cinema francês, seja o mais recente, seja o moderno. Este é o primeiro elemento que chama a atenção quando nos deparamos com Bande de Filles: mulheres negras e francesas, que não meramente cumprem o papel de imigrantes recém-chegadas dos países colonizados, ao coro da Marseillaise. Céline Sciamma desvirtua o vício e registra exatamente o reverso: o espectador raramente vê indivíduos, atores ou mesmo figurantes brancos em Bande des Filles. E quando os vê, é sob o ponto de vista das jovens pretas e irreverentes de um banlieu, de uma periferia dos arredores de Paris. Bande de filles narra o dia a dia dessas quatro meninas, que deixam de frequentar a escola e começam a apreciar e a interagir com o mundo da rua (um desvio caro ao cinema francês desde de Jean Vigo e Truffaut).

Um exemplo, uma sequência: as quatro protagonistas saem de casa para o Chatelet, no centro da capital francesa, e lá, entre lojas de grifes bem conhecidas, observam as roupas de maneira corriqueira, como consumidoras e cidadãs, embora mais curiosas, mais afoitas. É nesse contexto que a atendente – branca, de olhos claros – vigia Marieme (Karidja Toure) e transmite um olhar de desconfiança. Sensível, Marieme intimida-se, reclina a nuca e, pouco a pouco, quer sair da loja. No entanto, Lady (Assa Syla), sua amiga, reage de forma oposta. Agressiva e teatral, ela interpela a atendente, intimida-a, e diz, como uma altiva compradora, que elas, se quiserem, têm dinheiro para pagar por aquelas roupas. Agora quem está cabisbaixa e acuada é a atendente branca, cercada pelas quatro jovens. De alguma maneira, parece que estamos na disputa simbólica de um rolezinho no shopping… mas não confundamos o território: Bande de Filles se passa na França, país europeu onde, ironicamente, o branco da bandeira simbolizaria o valor da igualdade. Poucas sequências depois daquela da loja, porém, as mesmas meninas são mostradas de frente ao espelho, num quarto de hotel, experimentando vestidos de grife bem diferentes de suas roupas usuais. No entanto, bingo: todas as peças que vestem mostram as etiquetas e os dispositivos, que visam evitar o furto – ou seja, foram peças roubadas.

Esperto e fluido, o roteiro de Céline Sciamma cria contradições e salienta como suas meninas compreendem e lidam, de forma complexa e autônoma, com a situação econômica e simbólica que estão inseridas. Conscientes do preconceito existente, elas usam do discurso da agressividade para inverter o vetor da violência simbólica. O melhor da dramaturgia e da mise en scène revela-se no modo como elas agem, em seus gestos inusitados, e em como reagem a situações adversas, subvertendo-as. Jovens, inconformadas, as personagens do filme de Sciamma são afoitas para inventarem formas de vida mais leves, de curtição, sobretudo, irresponsáveis, para assim sublimarem as cercas e barreiras com as quais convivem. São meninas extremamente teatrais e performáticas, mas, enfim, meninas, no florescer da adolescência, que buscam brechas e pequenos prazeres do cotidiano diante das grandes dificuldades de suas vidas.

bandedefilles2

Bande de filles é dividido em três capítulos bem diferentes e complementares, salientados pela bela trilha sonora e pelas mudanças nas formas de falar, de se vestir, e pelo aprimoramento das performances públicas de Marieme. No início, ela possui tranças africanas, mas anda e comporta-se sempre de forma humilde, é uma menina isolada e insegura; ao conhecer Lady, Adiatou (Lindsay Karamoh) e Fily (Mariétou Touré) – as outras três que formam o bando – Marieme pouco a pouco transforma-se: alisa os cabelos, começa a carregar uma faca de bolso, fica agressiva, torna-se guerreira, disputa, briga, grita, xinga, provoca, ameaça, e, com um juízo mais independente, assume a sua sexualidade. O terceiro capítulo guarda justamente as consequências morais da sua decisão: surge a Mariemme solitária, que, num novo teatro, passa a imitar os trejeitos masculinos, e cujas angústias, escolhas e inseguranças serão resolvidas apenas por ela mesma. Bande de Filles é tanto uma aventura de grupo como um romance de formação mais intimista, que retrata a educação sentimental de Marieme, e é por captar esse sopro de autonomia individual que o filme guarda algumas semelhanças com O Azul é a Cor Mais Quente (2013), de Abdellatif Kechiche, vencedor do último festival de Cannes. Como reverso desse realismo, a ênfase nos detalhes da formação de Mariemme às vezes faz com que eles se tornem precisos demais, parecendo concebidos quase como uma equação de uma cartilha politicamente correta. O filme é de fato bem intencionado, redondo, tem um elenco envolvente – talvez a sua melhor jóia – que explode na tela… mas, de tão certinho e bem intencionado, ele também parece não deixar espaço para ruídos, imprecisões e sujeiras dos personagens, da dramaturgia, ou acasos de mise en scène.

Fora do romance de formação individual, é no primoroso acompanhamento do vagar e das variações emocionais do seu bando feminino que Sciamma encontra brilho. Esses instantes em que o grupo atua em conjunto são os mais comoventes do filme, que se eleva sempre que aposta na leveza, na alegria de instantes genuinamente juvenis – como nas sequências em que as meninas dançam, sincronizadas, em frente ao Arco da Defesa, em Paris. Filma-se, ali, uma vontade de visibilidade, uma inquietação por prazeres cotidianos, frugais, e um desejo de ocupar o espaço público. Nesse instantes, a violência física e verbal que pulsa entre elas torna-se algo secundário, permanecendo apenas como um código de luta e de sobrevivência. Canta-se, joga-se, disputa-se e, entre tantos altos e baixos, surgem sinais singelos de solidariedade.

Como pano de fundo, porém, essas meninas convivem com um forte ambiente machista e preconceituoso. No caso de Marieme, essa relação fica bem clara com o irmão dela e, no terceiro ato, na forma como seus colegas de trabalho, como vendedora de drogas, passam a abordá-la e a desejá-la. O machismo, nesse contexto de periferia, é uma realidade, um fato, uma relação de recusa: Mariemme não consegue circular da mesma forma que as outras pessoas, e sente na pele esse afastamento, esses códigos de exclusão. Nesse sentido, embora sejam filmes bem distintos, Bande de Filles dialoga com Spring Breakers (2012), de Harmony Korine e A Falta que me Faz (2009), de Marília Rocha. É justamente a ênfase dramática no grupo feminino – no ápice da sexualidade – que permite traçar esses paralelos: em grupo, essas meninas interagem de forma complexa, dinâmica e criativa frente ao contexto adverso, e é ali, entre elas, em um local de solidariedade e troca, que buscam um espaço onde possam inventar suas sensibilidades.

Share Button