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O ritmo dos contrastes

O grosso da literatura dedicada ao Cinema Novo brasileiro alinhavou os filmes, especialmente a fase inicial de 1959 a 1962, a partir de dois vetores: o debate político em torno da realidade brasileira como princípio da feitura dos filmes, e a representação do povo, seus problemas e cultura como temas centrais à narrativa. Partindo da conjunção desses dois princípios seria possível, pelo olhar autoral dos artistas, chegar a uma “linguagem brasileira”, nova e única, expressão legítima desse povo representado na tela. A busca da realidade impõe a forma ao cineasta: cristalizou-se no senso comum que os filmes são antes discursos políticos fortes com propostas formais muitas vezes frouxas, calcadas no improviso e num suposto mal-entendido diante da realidade social brasileira.

Porto das Caixas nos coloca um impasse. O filme traz em seu início uma dedicatória ao artista plástico Oswaldo Goeldi, que, para além das palavras na cartela, se encarna na visualidade da sequência de abertura: a noite densa envolvendo a modesta estação de trem, o homem suburbano percorrendo o espaço vasto e opressor, os poucos elementos organizados numa perspectiva que realça o vazio, o movimento lasso do corpulento homem entre a estação e sua casa. Essa cena problematiza a relação mimetismo da realidade-forma fílmica, pois antes de tudo, este assombroso filme de estreia, traz como marca seu rigor formal.

Ao contrário da câmera fluida, percorrendo os espaços e interagindo com os corpos, de O Desafio (1965), que marcaria a presença da câmera na cena como parte importante do estilo de Saraceni, Porto das Caixasé feito de uma minuciosa composição de planos fixos (são raros e discretos os movimentos de câmera) que parecem aderir aos elementos do quadro, como as linhas dos batentes, as paralelas das janelas, o cabo do machado repousado perto do encontro das três linhas que formam o canto do cômodo. As primeiras imagens na casa da protagonista (Irma Alvarez) traçam a espacialidade da casa pelas linhas e recortes da pequena construção e a pouca mobília que a preenche. Ou seja, o espaço é um desenho geométrico que se transforma pela posição da câmera, estabelecendo novas relações de acordo com o ponto de vista e a presença dos corpos. A turbulenta relação marido e mulher, nuclear na trama, é representada antes por essa geometria que aparta as personagens, feita dos recortes das janelas e portas, da mesa do cômodo principal, da cama do quarto escorada na parede, construindo um espaço delimitado de atuação do corpo e realçando o vazio da casa e a distância do casal que, no limite, é preenchida pela parede branca e pelas sombras desenhadas pelos recortes de luz. A montagem complementa a aderência geométrica da câmera agindo nos pontos de corte como o machado, que pontua o filme, agindo com violência na passagem de uma cena a outra, ao mesmo tempo em que a destreza dos cortes internos da ação dá fluidez a essa geometria dos quadros.

Nunca foi tão preciso como em Porto das Caixas dizer que as cenas morrem; ao mesmo tempo, ganham vida em sua imanação. Quando essa geometria não se dá no quadro, como a cena de Irma seduzindo o barbeiro tentando convencê-lo a matar seu marido, onde o espaço aberto dá ênfase à paisagem, a mudança rápida por diversos pontos de vistas, com pulos nos ângulos, distâncias e olhares da sequência, aliada à passagem do trem rasgando a cena criam uma sensação geométrica quase cubista nos desdobramentos que uma simples ação (nada muito brusco acontece; pelo contrário: a ação é vagarosa) possa ter diante da câmera. A rigidez formal de Saraceni é a busca por retirar o sumo de seus elementos (a casa, os corpos, o machado, o trem, a luz e a música) ao abstrair o plano para restituir a ação na cena a navalhadas.

A rigidez impregna a própria trama: uma mulher empobrecida tanto materialmente quanto emocionalmente tem a ideia fixa de matar o marido bruto e violento (Paulo Padilha). O filme circula em torno dessa obsessão que revela a precariedade afetiva de uma certa existência. A dureza do plano espelha a psiquê deslocada de sua protagonista. Para alcançar seu objetivo, a mulher procura ajuda de outros homens, com os quais estabelece uma relação perturbada de sedução passiva-agressiva. Condicionada afetivamente pela brutalidade de seu marido, ela busca em seus amantes a mesma brutalidade que pode salvá-la a partir da vingança. Porém, ela se defronta com amantes fracos, reticentes, covardes, falastrões, imaturos, homens cuja presença é estabelecida antes por seu papel nessa pequena sociedade que por seus desejos. A protagonista de Porto das Caixas junta-se à importante galeria de personagens com ideias fixas, ao lado de Brás Cubas, Policarpo Quaresma, São Bernardo na representação da rigidez espiritual com que perseguem seus objetivos.

Por outro lado, Porto das Caixas guarda a sensualidade imanada do corpo de Irma Alvarez. O filme cresce na proximidade em relação a seu olhar, sua pele, seus ombros. Na primeira aparição, Irma encosta na parede, cabelos molhados, ombros de fora, um olhar que recusa se entregar. A opacidade da mulher, desdobramento de todo seu gestual espaçado, traz ao filme certa viscosidade na cena que se contrapõe à câmera: Irma caminha com o corpo lânguido pelos trilhos do trem, se esparrama no balcão da venda de um de seus amantes (Reginaldo Faria), chupa o sangue do dedo do barbeiro com um olhar lascivo. Sua movimentação vagarosa é uma resistência à luz forte, direta e de um branco queimado dominante do dia, e ao preto profundo que preenche o ambiente noturno. O ritmo da luz está em conflito com o corpo lânguido da protagonista; a carne teima em existir na onipotência da luz (dia) e da sombra (noite).

Esse jogo entre rigidez do ambiente e lânguidez do corpo, rigor e fluidez da montagem, revelam o fundamento da mise en scène da obra. Porto das Caixas é um filme de contrastes: a mulher e o homem; o dia e a noite; branco e preto; a sensualidade cosmopolita de Irma e o provincianismo de seus amantes; o corpo lânguido da mulher e brutalidade dos homens; a ideia fixa e a inconsistência; o humano das personagens e o geométrico das locações; a pequenez do corpo e a imensidão dos espaços; o assunto denso e mórbido da trama e a música melancólica e suave de Tom Jobim. O filme carrega a marca do entalhe: a sombra encravada no ambiente dominado pela luz branca queimada, o corpo fazendo sua presença na imensidão do ambiente, a música insistindo em criar uma emoção mais pura onde só se encontra a natureza bruta da vida.

Como na obra de Oswaldo Goeldi, os traços estão tensionados ao limite de seu desaparecimento nos grandes espaços da superfície dominada pelo preto. Ao mesmo tempo, a força expressiva das formas tensiona tudo a tal ponto que o preto do espaço não-gravado só existe por causa do entalhe. Em Saraceni, é a tensão dos elementos contrastantes que desenha uma realidade: opressiva e distendida em grandes espaços, enrijecida pela força da luz tropical que ameaça a carne dos corpos tornados lânguidos e vagarosos, de relações conflituosas porque mal acabadas, de uma materialidade precária ao mesmo tempo fascinante. O contraste da realidade de Porto das Caixas se cristaliza na tensão do preto-e-branco.

Goeldi afirmou certa vez ter começado a gravar para impor uma disciplina a seu desenho, pois a resistência da madeira coloca obstáculos ao desenho livre, explicitado em sua obra por linhas em via de dissolução no espaço de entalhe. A dedicatória ao artista encontra, então, seu sentido no derradeiro contraste do filme: a realidade – materializada na luz tropical, nos espaços e na brutalidade da vida – não é início nem fim, mas meio, como a madeira nas gravuras de Goeldi. A mise en scène se inscreve na realidade ao mesmo tempo que faz dela sua composição. A influência do gravurista está nessa postura de não esconder os limites colocados pela matéria bruta, mas moldá-los para fazer dessa matéria bruta sua obra. Há um curto-circuito na ideia de enxergar em Porto das Caixas um projeto automaticamente mimético da realidade: ela se deixa impor na imagem – a luz branca queimada; os espaços a perder de vista, os corpos fatigados – pelo rigoroso ritmo dos contrastes desenhado pelo cineasta.

*Texto publicado originalmente em Janeiro de 2016


A Sessão Cinética exibe Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni (Brasil, 1962) nos dias 15 de Novembro, no IMS Rio, às 17h, e 23 de Novembro, no IMS Paulista, às 19h30. Após as sessões, haverá debates com os críticos da revista. Na sessão de São Paulo, teremos como convidada especial a pesquisadora Lívia Lima.

Uma vez ao mês, a Cinética faz uma sessão no Instituto Moreira Salles, abrindo mais um espaço de reflexão e apreciação de filmes fora do circuito exibidor tradicional no Rio de Janeiro e em São Paulo. A curadoria tem a intenção de programar obras importantes, de circulação restrita nas salas brasileiras, respeitando ao máximo as características originais de projeção de cada filme. Além disso, críticos da revista produzem textos especiais para as sessões e mediam um debate após a exibição.

Porto das Caixas será exibido em 35mm.

Ingressos: R$ 8 (inteira) e R$ 4 (meia). Vendas na recepção do IMS e no site ingresso.com.


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