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Viver em desencaixe

Após um curto prólogo, As Duas Irenes convida a câmera à mesa, onde quatro mulheres de idades diferentes gravitam em torno de um patriarca que olha pela janela. A decupagem inaugura o nó dramático com um plano médio que coloca Tonico (Marco Ricca) na cabeceira da família, olhando para fora daquela casa (e, no cinema, todo olhar é uma forma de desejo). O filme não será sobre ele, assumindo seu ponto de vista, e o corte seguinte anuncia que suas ações deflagrarão (ou melhor, deflagraram) o não-dito que contaminará o ambiente: um plano geral recontextualiza aquela vontade de “fora”, projetando-a sobre as outras pessoas ali reunidas.

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Até aí, tudo dentro do script. A cena é sustentada no plano geral, deixando a dinâmica entre as personagens fluir, até que a montagem faz um corte inesperado, invadindo o campo para encontrar Irene (Priscila Bittencourt) em um dos cantos da mesa. É um plano sutilmente estranho, que tira o filme da documentação objetiva, externa, daquela refeição, e subitamente joga a câmera para “dentro” da cena, como se ela assumisse o ponto-de-vista de alguém que não conseguimos determinar exatamente quem é, mas que parece se colocar entre o pai e a janela. À frontalidade do plano de Tonico, fica a estranheza angular, não-correspondente, do contra-plano de Irene: assim como não é ela quem olha para ele, alguém parece olhar para ela. Os olhos da protagonista buscam referência em ambos os lados da câmera, como se seu senso de geografia e de registro (tableau ou subjetivo?) também tivesse sido afetado pelo curioso corte, e aquela mesa – espaço físico e afetivo – de repente se revelasse não mais tão familiar.

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Que olhar é esse que recai sobre Irene e motiva o corte?

A pergunta tem célebres antecedentes, que solicitam um salto no tempo. Já no terço final do filme, uma cena aparentemente sem função dramática mostra Irene sentada à porta de casa folheando o que parece ser uma enciclopédia. Após passar por imagens de botânica, ela se detém na reprodução de um quadro: Las Meninas (1656), de Diego Velázquez.

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Las Meninas
é, ao mesmo tempo, um dos maiores paradigmas e um dos mais impenetráveis enigmas da história da arte, transbordando para a obra de pensadores tão diversos como Michel Foucault e Jacques Lacan, e figurando frequentemente como imagem-síntese na literatura de coisas tão díspares quanto a arte ilusionista e o documentário. Grande parte da polêmica é alimentada, principalmente, pelo posicionamento de dois objetos dentro do quadro: uma tela de pintura sobre um cavalete, sendo pintada pelo próprio Velázquez (embora ele não esteja pintando no momento em que a tela é feita, criando uma disjunção temporal no quadro-dentro-do-quadro), mas cujo conteúdo não nos é diretamente mostrado; e um espelho que, posicionado bem no centro da composição, reflete a imagem do rei e da rainha, fora de quadro. São, portanto, duas áreas de ambiguidade produzidas deliberadamente pelo pintor dentro da tela, em espécie de mise-en-abyme, e essa ambiguidade permite, ao quadro, manter-se infinito: o espelho reflete o rei e a rainha fora do quadro? Seriam, eles, os retratados pelo pintor na tela inacessível? O ponto-de-vista da tela é também correspondente ao olhar do rei e da rainha? Ou o espelho reflete, na verdade, a tela que Velázquez pinta, que mostra o rei e a rainha? Neste caso, quem olha?

Essas perguntas ocupam tomos e tomos da história da arte, não encontrando respostas definitivas nem nas teorias interpretativas (como a de Foucault), nem nas análises geométricas que tentam determinar o ponto-de-vista a partir de projeções matemáticas do espaço real a partir de leis da perspectiva (John Searle; Joel Snyder; Ted Cohen). Parte do que sustenta o mistério está explícito na configuração não só do fora-de-quadro, mas também das múltiplas relações com ele, estampadas nas personagens que estão em quadro. “Os olhares das figuras no ambiente doméstico da realeza são sutilmente, mas estranhamente, desconjuntados e desligados uns dos outros”, escreveu o filósofo australiano Robert Wicks em sua análise de Las Meninas, produzindo “uma composição calcada em ambiguidade, (…) constituindo e fundamentando parte substancial da qualidade intrigante da pintura”.

Las Meninas, Diego Velàzquez
Las Meninas (1656), Diego Velázquez

Voltamos a Irene, e seus olhos, perscrutando o entorno da câmera sem fixar, ganham novo peso com a evocação da tela. Nesta primeira cena mais substancial, Irene é apresentada como uma personagem literalmente deslocada dentro da harmonia familiar – presente, mas levemente fora de prumo – e, em retrospecto, percebe-se que essa escolha de direção já se anunciava desde o plano de abertura: Irene de frente para uma janela, de costas para a câmera. A garota segura uma pedra em uma das mãos, contempla o gesto por alguns segundos, e em seguida a atira, estilhaçando a vidraça. A soma do prólogo com a cena seguinte usa recursos de mise-en-scène para trazer uma série de informações ao espectador: uma filha, um pai, uma janela; o desejo e a coragem de estilhaçá-la e deixar o fora de campo entrar – como acontecerá no epílogo do filme. Mas aquele estranho contraplano indica também uma paridade – um deslocamento em relação ao núcleo familiar, sem dúvidas, mas também uma identificação com alguém que está fora dali –, trazendo à mesa aquela presença invisível que determina o plano subjetivo-sem-sujeito (a subjetiva-fantasma) que se impõe durante o almoço e desorienta os olhares.

Pouco após a primeira refeição, Irene descobre a existência de outra Irene (Isabela Torres) em um desfile de moda mambembe – experiência formativa típica do interior brasileiro – acompanhada por uma câmera que se move, de maneira não menos fantasmática, em traveling de um erro de crase na parede de uma escola até o palco: do sinal de inadequação, à arte. Ali, vê também seu pai, aplaudindo efusivamente o seu duplo que desliza pela passarela. O fora-de-campo daquele almoço rapidamente se materializa: este é um filme sobre uma família que não convida todos os seus às mesmas mesas, e sobre como as duas Irenes quebrarão este pacto de silêncio, fazendo campo do extracampo. O contracampo, novamente será deslocado, desta vez aludindo não ao palco, mas ao sentido oposto, reforçando que Irene – a protagonista – também não pertence a este espaço.

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Tudo isso, porém, é apenas confirmação: o roteiro não fará muito além de cumprir o que a câmera de Fabio Meira nos confidencia na triangulação manca destes primeiros minutos; a trama se ocupará de tensionar uma dinâmica já descrita no título. E esse gesto, de confirmar o anunciado, propõe um deslocamento de olhar que remonta àquele encarnado pela subjetiva-fantasma na sequência pós-prólogo: se o filme não guarda descobertas quanto a “o que” ou “quem”, é porque elas se escondem no “quando”, no “onde”, no “porque” e, principalmente, no “como”. Em as Duas Irenes, a narração localiza sua atenção na própria forma de narrar, e esse contrato é proposto ao espectador na triangulação – o pai, a filha, e a outra filha, que não foi convidada à mesa ou à cena, e que a câmera conjura como o grande elefante na sala-de-estar – dessa refeição inicial. Para compreender o filme, é preciso compreender, sobretudo, o lugar onde a câmera está.

Em termos dramáticos, As Duas Irenes é um meta-coming of age: a história de duas meia-irmãs desconhecidas, que se atraem como polos opostos de um ímã e se voluntariam como agentes transformadoras do status quo silencioso que paira sobre aquela cidadezinha em Goiás. Em termos simbólicos, é uma espécie de parábola sobre a formação da sociedade brasileira – um filme de época – e sua perpétua busca por um espelho, uma oportunidade de auto-reconhecimento identitário de dentro para fora, incorporando à elite seu equivalente simétrico que ela finge não ver.

Fábio Meira toma emprestado esse jogo de reflexos, molduras e dimensões para construir alguns dos momentos mais ricos do filme, chapando a composição de forma a transformar os muitos cômodos daquelas casas e as muitas dimensões daqueles espaços em uma única superfície, para que os sentimentos do fundo e do proscênio efetivamente se misturem. Vêm daí imagens pictoriamente memoráveis, como um riquíssimoo plano que assume o ponto-de-vista do bilheteiro do cinema local, embaralhando toda a economia de olhares e projeções associada ao local; a brincadeira que as meninas, bêbadas de Liebfraumilch, fazem com os murais à Marc Chagall em uma parede da cidade; e o impressionante movimento de câmera que coaduna o espelho e o quarto, enquanto as meninas se divertem lendo um romance softcore à Sabrina – além de toda uma coreografia de molduras e batentes que remete às composições de Chantal Akerman.

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O reflexo, porém, é encoberto por uma sombra: no centro dessas tensões, há a figura do pai. Há algo a ser notado, aqui, sobre o trabalho de Marco Ricca, que o encarna deixando as portas abertas tanto para a mentira – alguém capaz de esconder uma segunda família – quanto para a candura – combustível às duas Irenes para um desejo de aprovação que parece sempre perto de ser cumprido, e que reafirma a posição do pai de família como centro gravitacional de ambas as casas que ele, intermitentemente, habita. Ricca encena com precisão o projeto conservador que, mesmo insuficiente e descomprometido, o tempo todo seduz a Irene e ao filme, na imagem deste grande pai que parece capaz de sublimar a tudo e a todos mesmo nos silêncios de sua imperfeição. Esse projeto conservador está devidamente encarnado no paradigma realista, forma de encenação que toma as coisas como dadas, e que finge, também, não haver elefante algum na sala-de estar. O truque de Marco Ricca, e de seu personagem, está em atuar de forma a fazer o espectador esquecer que se trata de uma encenação; está em fazer com que uma estrutura deliberada aparente ser natural.

Há, porém, aquele corte para a subjetiva-fantasma, fazendo, desde o princípio, um contraponto a esta naturalidade armada: no regime realista, o elefante na sala-de-estar é a própria câmera, instância comentarista que, como José Carlos Avellar acertadamente apontava, traz sempre um coro grego a toda forma de encenação. A relação dúbia com esse projeto conservador, com uma encenação social e ficcional que finge que não está acontecendo, se espelha não só na relação de Irene com o pai, mas também na forma de construção do filme, ao mesmo tempo interessado em flertar com convenções dramáticas tradicionais, e incapaz – por reflexo ou condição – de aderi-las por completo. “Reconstituir”, afinal, não é apenas retratar “como foi”, mas constituir de novo: reorganizar, restabelecer, redistribuir as forças que estavam em jogo, mesmo quando invisíveis. Irene deixa de enxergar o pai, e começa a chamá-lo pelo nome, Tonico, impondo-lhe uma distância afetiva e a necessidade de uma nova identidade (pois o pai que ela conhecia não era, por definição, também o pai de uma outra Irene), na mesma medida em que evidencia a paternidade como uma encenação.

Em seu aparente desejo de dialogar com a tradição clássico-narrativa para se comunicar, As Duas Irenes é um filme na verdade bastante torto, favorecendo a cena em relação ao arco dramático e as rebarbas da cena em relação à cena. É um filme sobre a vida dos restos, como uma porta que se abre fora de quadro após a ação já ter acabado, mudando totalmente a luz e, logo, o sentido de um plano aparentemente banal. Parece desejar ser Cinema Paradiso (1988), mas sua incompletude sistêmica o deixa mais perto de Vozes Distantes (1988), embora falte-lhe igualmente confiança no jogo aberto e estilhaçado proposto por Terence Davies: sua ética é a de um eterno recomeço.

Sempre que o filme se aproxima de um modelo de drama mais fortemente calcado na escrita – seja pelo roteiro, seja pela montagem (que frequentemente parece cortar fora dos beats dramáticos, sem transformar isso em algo realmente produtivo ao filme) – As Duas Irenes dá de cara com um abismo, demonstrando uma dificuldade na passagem do subtexto ao texto, forçando uma intensidade de conflito (necessário inclusive para a construção de ritmo) em um material que não se presta exatamente a isso, criando pequenos fulcros deslocados dentro daquela placidez propositiva.

Se Marco Ricca encarna certo ideal de transparência de atuação, é sintomático que o outro pilar à sua altura seja Inês Peixoto, que interpreta Neusa, a matriarca da família que ele não reconhece. Não, o ouro de As Duas Irenes não é exatamente questão de transparência narrativa – algo mais notável em um filme como Casa Grande (2014), de Fellipe Barbosa –, embora algo dela esteja ali, para quem não saiba buscar outra coisa. Essa é a origem que o filme poderia ter, mas não tem; a família do outro, pois não a sua. Não, o ouro aqui está em algo além; na verdade, na percepção de que sua encenação está fundada exatamente na permanente alusão de que há algo além, algo que escapa… um outro que pude ser, mas não fui e não sou (ou, no sentido estrito do coming of age: que ainda posso e desejo ser). Quando o campo parece insuficiente, o filme conta com o extracampo; quando a música sufoca, o belo trabalho de som abre as portas e janelas para o fora de quadro. Esta casa aponta, sempre, para a existência de um outro lugar.

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Para revelar isso, porém, é preciso – como sabia Velázquez – ter muita clareza de onde se posicionar, e escolher com precisão qual o seu lugar à beira da mesa. As Duas Irenes extrai seus momentos de maior força não exatamente da naturalidade das jovens atrizes – que quase sempre está lá – ou do senso de intimidade criado entre elas, mas da maneira como a câmera registra e interfere, sutilmente, nesses espaços. É um filme de olhar, mais que um filme de drama, e o olhar é algo mais complexo e fugidio, mais difícil de perceber. Enquanto o texto é bidimensional – existindo na dinâmica entre o dito e o não-dito – olhar é uma ação profundamente complexa – só ruídos, pois esvaziada de texto. As Duas Irenes muitas vezes observa, deixando transcorrer uma ação diante de si com aparentemente naturalidade, mas seus momentos memoráveis são exatamente aqueles em que o filme olha.

Fabio Meira produz micro-ambiguidades justamente colocando a câmera onde ela, convencionalmente, pareceria não poder estar – como no contra-plano torto da refeição inicial, obrigando os olhos de Irene a dançarem para ambos os lados da câmera, buscando um fora que não se define por completo –, olhando para a cena de um ponto-de-vista aparentemente “errado”, que desestabiliza, sem desmontar, o seu sentido, aludindo a uma presença que deveria estar ali, mas não está. Ao se oferecer como ente desestabilizador, o diretor incorpora essa presença-ausente – a outra Irene; a outra casa; a outra família – dentro da cena, anunciando o poder disruptivo da chegada da menina à refeição final, coroada com o quarto vazio – o espaço vazio, aqui literalmente filmado – que encerra o filme. Na genealogia da impureza que configura a família e o cinema brasileiro, essa busca de identificação – logo, de identidade – é, ao mesmo tempo, perturbada e completada por esse desencaixe provocado pela câmera, que comenta a dinâmica daquela casa, daquela polis, ao se negar, criativamente, a ser apenas reflexo, cópia, fac-símile tranquilo do que deseja esse projeto-pai, seja ele o cinema clássico-narrativo ou uma identidade que recalque a alteridade em uma falsa profusão de silêncios. Surge, daí, uma outra interação possível, espécie de espelho não-simétrico e atravessável pelo toque.

As duas Irenes
As duas Irenes

As Duas Irenes toma de empréstimo o surrado formato do coming of age para alimentar uma tensão entre o desejo de identificação e a necessidade de ruptura com essa mesma identidade – como aponta Hernani Heffner nas aulas publicadas pelo Curta o Curso, contradição tão cara ao Brasil – usando não mais que recursos básicos de mise-en-scène: posicionamento de câmera e de atores no espaço (há todo um texto a ser escrito a partir da simples observação de qual cadeira cada personagem ocupa em momentos diferentes do filme); construção sonora; movimento… o reflexo de um mundo distorcido no pêndulo dourado de um relógio em uma casa tomada por morcegos. Esse desconforto brando é mantido, igualmente, sob a superfície das aparências de um romance de formação tranquilo, filmado por um olhar que apenas cochicha seu desconforto, que se fecha justamente na promessa da mudança inevitável que assombra o porvir do filme. Na aparente solaridade que rege o encontro daquelas duas meninas, range a perturbação de quem vê seu duplo à luz do meio-dia.


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