No Lugar Errado, de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente (Brasil, 2011)

outubro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Raul Arthuso

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A morte de mim
por Raul Arthuso

Algo chama a atenção em No Lugar Errado, terceiro longa dos irmãos Pretti com os primos Parente: o preto. A penumbra que contamina a tela, como se quisesse devorar o quadro e os poucos elementos em cena, tencionando tudo a tornar-se fora-de-quadro e, ao mesmo tempo, apagando-o como tal. Pois, fora a cena, tudo é preto. O preto, a princípio, remete ao desconhecido, o caos, o nada, à morte. No Lugar Errado, contudo, não encena qualquer morte nem se propõe escatologia. A questão, então: que morte é essa?

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Desde seu início, No Lugar Errado se mostra como que fagocitando o teatral para dentro do fílmico. “Fagocitar” pode parecer agressivo à primeira vista, pois denota certo canibalismo que não é impreciso neste caso: não se trata de uma articulação de discursos ou a aliança com o aparato do teatro (o palco; suas entradas e saídas; a cortina; enfim tudo o que declara: “isto é o teatro”), mas de tentar manter um “espírito teatral” no corpo do filme (seria daí o sentido de deslocamento do título?). No início, há uma sequência de montagem de planos de externas da cidade de Brasília, localizando a ação num espaço aberto, até que vê-se, por último, a janela de um apartamento. Um corte para o cenário do filme busca uma colagem: aquele espaço externo pertence ao interno visto agora e vice-versa. Esse espaço interno, por sua vez, não cola com o exterior. É puro artifício luminoso e cenografia.

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Em geral, o cinema apropria-se do teatro adaptando-o a um espaço mais naturalista, se comparado àquele ao qual idealmente foi imaginado, e num tempo simulado que não coincide com o tempo real da encenação. Curiosamente, há uma contradição de base em No Lugar Errado. Com exceção de onde se dá a ação, o espaço cênico está dominado por um preto que anula a visão, criando um espaço off (inclusive sonoramente) que contamina a tela. Porém, ao invés de funcionar como um espaço fora-de-quadro, trazendo o imprevisto e abrindo a cena, aqui, o preto reforça a centralidade, o visível, o núcleo iluminado onde as quatro personagens interagem. Ali à espreita, esse espaço off tenta invadir, transformar tudo em preto, mas quem se reforça é o teatro, através dessa focalização do centro, mas principalmente por seu efeito: No Lugar Errado tende a reproduzir o ponto-de-vista único do teatro, a vista do proscênio. A decupagem, que gira em volta do centro focalizado pela iluminação, mantém o proscênio intacto – decupagem que só podemos ver, como se o filme se deixasse ver – e decerto forma uma recusa da mise en scène cinematográfica em favor de uma forma inicial/mínima de mise en scène – atores num mesmo espaço com um texto compondo uma cena. Não seria uma mise en scène própria – ou melhor, inteiramente – do teatro?

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Interessante o problema: o teatro tem buscado, pelo menos em parte da produção corrente, metodologias que emulem alguns efeitos “cinematográficos” – pluralidade de pontos de vista; simultaneidade; elipse interna da cena; uso expressivo de som; saltos temporais – com resultados que, em geral, não escondem esse caráter de impressão e recurso estilístico. No fundo, dramaturgia e espaço cênico permanecem essencialmente teatrais e seus problemas permanecem os mesmos.

No Lugar Errado, por sua vez, faz um “efeito-teatro” e, contraditoriamente, a expansão de um espaço off dentro de uma dramaturgia e espaço cênico cinematográficos, no melhor das vezes, quando não se esvazia dentro de uma construção excessivamente assumida como discurso – cuja cena final vem apenas dar um veredicto empobrecido de uma impressão contida já no corte que une espaço externo com espaço do teatro, tentando forçosamente torná-los um único espaço – só faz criar a impressão de um tempo coincidente entre o filme e a performance dos atores. É um traço estilístico que abre-se para um ideal de concisão – “atores mais texto” – e simplicidade narrativa. O filme toma para si a cenicidade do teatro, mas, por sua vez, não consegue, com o essencial de uma arte dramática, emergir suas potências – compartilhadas intimamente com o cinema narrativo. Morre o cinema, mas não floresce o essencial do teatro.

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No Lugar Errado não deixa de ser, por outro lado, um filme-resposta às respostas aos filmes anteriores do grupo de diretores, Estrada para Ythaca (2010) e Os Monstros (2011). Esses dois filmes foram pontualmente criticados por sua crença romântica na amizade, em certa precariedade material, pela ausência de uma dramaturgia cinematográfica mais aguda (atores mais texto?), por vezes deixando a precariedade material tornar-se estética confundida, inocentemente, com um ideário do subdesenvolvimento terceiro mundista. Enfim, pode-se resumir as críticas ao trabalho do grupo a uma contestação de um ideário romântico desdobrado em alguns aspectos (amizade, regionalidade, subdesenvolvimento) tomados como valores sem articulação nos filmes.

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Assim, parte da fruição de No Lugar Errado se mistura com esse caráter de resposta: o filme por vezes se presta a problematizar-se, contradizer-se, desdizer-se como uma tentativa desesperada – e idealista – de dialogar com aqueles que, de alguma forma, não dialogaram com os filmes anteriores ou o fizeram pela negação. A amizade se abre a um materialismo estranho, com alguma violência e amargor; desce do paraíso branco que domina Estrada para Ythaca para uma marcação bruta dos objetos e elementos no espaço recluso, apertado pelo negrume opressor que promete engolir as personagens a qualquer momento. A redução dos recursos ao mínimo para a criação de um espaço cênico faz de conta uma precisão até então ausente e o preto-e-branco fotográfico traz certa autoridade artística que cria um efeito para esconder a precariedade material antes evidente.

Enfim, amizade, regionalidade e precariedade abrem espaço para um desconforto – outra leitura possível para o lugar errado do título? –, conflito armado num não-espaço cênico com um efeito de rigor plástico ausente na filmografia pregressa do grupo. Abre-se o espaço para a dramaturgia e, então, vemos a morte de um projeto, um filme velado sob nossos olhos, já que, como dramaturgia, No Lugar Errado (construção de personagens, diálogos, movimentação, conflitos e resoluções) é a morte de uma arte da simplicidade e coesão perdida no vazio de si mesma. A precariedade do restante da obra do grupo sobrevive no texto teatral adaptado ao cinema que, trazido ao centro, comete um atentado à própria vida.

O auge se dá no final, quando, no movimento de ápice dos conflitos e do desconforto do filme-resposta, as luzes se acendem e tudo que era preto na tela revela-se teatro. Literalmente, teatro. Materialmente, teatro. Simbolicamente, também teatro. A saída é fácil: evita-se, dessa forma, enfrentar os problemas da dramaturgia que já não encontrava nem entradas nem saídas, do diálogo que o filme-resposta busca encaminhar, das escolhas pela cenicidade do teatro em detrimento da mise en scène cinematográfica. Afinal, ficção, filme-resposta, perturbação, desconforto e mise en scène, tudo isso não passa de discurso do artista perante o mundo. Os atores, após a dureza da cena, se abraçam, saem cada um para seu lado e fica o palco vazio unicamente, em nossa companhia. O único momento cinematográfico do filme é o prego no caixão.

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Curiosamente, os créditos indicam que a peça teatral adaptada para o cinema chama-se originalmente Eutro – evidente contração das palavras “eu” e “outro”. Digo curiosamente porque o Novíssimo Cinema Brasileiro teve um personagem principal que perpassou ao longo dos filmes e vem encontrando outros desdobramentos recentemente: o “eu”; não qualquer “eu” mas o mais pessoal “eu” do cinema, o autor, o “eu-cineasta”, o “eu-artista”. A produção, grosso modo, é marcada por uma colocação sem igual do artista como centro simbólico dos filmes, marcando seu lugar, requisitando sua presença, nem que seja de espírito, uma autoafirmação no corpo mesmo das obras.

Este é outro aspecto marcante da resposta de No Lugar Errado em relação aos dois filmes anteriores do grupo: Ythaca e Os Monstros são obras inteiramente do artista em seu ato de existir, a afirmação de seu lugar e ideologias no mundo (a citação de Glauber Rocha; a negação dos CDs de música popular; a rejeição à dramaturgia televisiva – popular –; o improviso de jazz). Agora, o lugar está marcado: o cineasta, antes em frente às câmeras para formular seu lugar no mundo, marca agora seu lugar no espaço off, atrás da câmera.

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Assim, parece interessante pensar nas implicações de o título do filme falar de um lugar errado: o verdadeiro desconforto do filme reside no fato de que agora é preciso afirmar-se atrás da câmera, tentando-se implicar a si dentro da obra sem fazer-se presença física nem residual. É estabelecer uma relação de “eu” no “outro”, relação complexa que implica certas decisões e caminhos nem sempre tão óbvios. A cena final é então um suicídio do outro: mata-se o projeto de fabulação para afirmar, mais uma vez, o seu lugar. A reboque, vai tudo – filme, discurso, resposta e autoafirmação – para a vala comum.

Como se sabe, No Lugar Errado é originalmente de outro momento da produção, anterior a A Cidade É Uma Só? (2012) e O Som ao Redor (2012), dois filmes cujo impacto imediato na crítica, no público e em futuros realizadores ainda está para ser assimilado, mas que trazem novas posições quanto ao papel do realizador como articulador de uma mise en scène que desconfia de si mesmo enquanto artista idealizado. Os dois filmes abrem um diálogo escanteado por um cinema até então buscando sua posição na história do cinema brasileiro (que se resume bem pela frase de Cezar Migliorin “(…) há algo importante acontecendo nesse cinema brasileiro que não esconde mais o rótulo da cerveja nas cenas de bar”).

O sintoma de No Lugar Errado dentro da produção é que, junto a Girimunho (2011), ele marca um ponto de virada, ou mais precisamente, o fim do “núcleo duro” do Novíssimo. Esta fase, a inocência da crença nesse “eu-artista” idealista tornado protagonista dos filmes – seja na figura dos cineastas na tela (Os Monstros), seja com personagens artistas ou de alma artística que compartilham as mesmas angústias e desejos (A Alegria;O Céu Sobre os Ombros;Riscado) ou ainda na forma de uma relação em que a presença do cineasta tem peso tão ou mais importante que as personagens na tela (A Falta que me Faz;Nem Marcha Nem Chouta;Um Lugar ao Sol;Pacific) – para afirmar seu lugar e visão de mundo, e a atualização da produção brasileira com o cinema contemporâneo dos grandes festivais internacionais, importando formas, mas ainda com um romântico ideal nacionalista/regional, mostrara seus limites em vários filmes chega com No Lugar Errado e Girimunho a um ponto interessante de desvio deste projeto: os cineastas encontram-se na encruzilhada de enfrentar o outro, a dramaturgia cinematográfica implicada em inventar personagens para afirmar sua visão de mundo dentro de uma narrativa, os percursos estéticos para além de assumir a precariedade como valor em si. E, além disso, ter de lidar com as frustrantes questões mercadológicas, muito além de só marcar posições políticas e estéticas.

Deixando de ser uma produção periférica após ganhar visibilidade (via Mostra de Tiradentes), legitimidade com seleção e premiação em grandes festivais brasileiros (principalmente, as últimas edições do Festival de Brasília) e viabilização comercial – ainda que arremedada, mas isso é outro assunto – pela distribuição quase que exclusivamente realizada pela Vitrine Filmes, o Novíssimo deixou, de alguma forma, de ser exceção e ganhou centralidade dentro das discussões e, principalmente, do ideário do cinema brasileiro recente. Interessante que No Lugar Errado e Girimunho, quase ao mesmo tempo, façam um esforço em apagar a figura do cineasta, do “eu-artista” idealizado, para, cada um à sua maneira, formular uma imagem da morte. Em essência, de sua própria morte.

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