Casa Grande, de Fellipe Barbosa (Brasil, 2014)

agosto 1, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Colaborações especiais, Em Campo

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A crise ao redor
por Marcelo Miranda (colaboração especial)

O primeiro longa ficcional de Fellipe Barbosa se vincula a uma vertente recente do cinema brasileiro, de títulos cada vez mais amplos e distintos entre si: os de uma mesma fatura do olhar problematizador a um entorno social e econômico, misturado à busca pela depuração de linguagem que os torne fluidos o suficiente para serem formas audiovisuais de exposição e diagnóstico de uma dada realidade muito contemporânea do país no século XXI. A lista já vai extensa nos últimos anos, podendo incluir O Som ao Redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), Trabalhar Cansa (Marco Dutra e Juliana Rojas, 2011), Doméstica (Gabriel Mascaro, 2012), Eles Voltam (Marcelo Lordello, 2012), Um Lugar ao Sol (Gabriel Mascaro, 2009) e No Meu Lugar (Eduardo Valente, 2009). Todos estes capturam, para além do mal-estar crônico dos personagens (em ficção ou documentário), o mal-estar de seus próprios realizadores em relação a temas como violência, exploração trabalhista, crise econômica, relações de poder, classismo e hierarquia social. O desafio, em todos eles, é sempre encontrar uma forma de dar vazão a questões antecedentes ao filme, surgidas de uma consciência formada na vivência fora do cinema. Busca-se ao máximo não cair no resmungo vazio, moralista ou mesmo reacionário. Nesse sentido, o esforço é estético, mais do que discursivo, e por isso os filmes citados acima (uns mais, outros menos) são tão bem-sucedidos em seus intentos.

Em Casa Grande, Fellipe Barbosa trafega pelas vielas um tanto tortas da relação entre patrões e empregados e da insensibilidade de classes mais favorecidas em relação a tudo que lhes rodeia para além dos portões de condomínios e das janelas dos carros importados. O título já remete ao livro incontornável de Gilberto Freyre, de certa maneira ilustrado no primeiro plano do filme: o enquadramento da fachada de uma enorme mansão num bairro nobre do Rio de Janeiro. A casa (grande) é verticalizada em andares, sendo naturalmente o rés do chão reservado aos empregados. Neste plano inicial, noturno, o pai (Marcello Novaes) sai da área da piscina e entra na casa. Num trabalho sonoro e visual muito preciso, em que as luzes da casa apagam e acendem num curto intervalo de tempo, é possível seguir agora o movimento do filho, Jean (Thales Cavalcanti), enquanto vemos apenas a mesma fachada. O rapaz se esgueira para o quarto da empregada doméstica, com quem ele divide um sofazinho e arrisca uns apertões inofensivos.

Esta introdução de Casa Grande será, de certa forma, a tônica de todo o filme, pois o que se segue dali adiante é a jornada de descobrimento (e autodescobrimento) de Jean, instigado por uma série de mudanças no cotidiano a partir da crise econômica que assola a família abastada. Assim como ele busca conforto e diversão no quarto da empregada, será justamente no encontro com os ex-funcionários da casa, já no fim do filme e depois de uma série de outros acontecimentos, que ele deixará de ser garoto para começar a se tornar homem – no que a transa com a empregada, o primeiro sexo autenticamente conquistado pelo personagem, serve de imagem-síntese da própria ideia de fundação da nação brasileira, calcada na mistura de classes e raças desde o Descobrimento. Para atingir tal ambição, o filme se vale de determinados procedimentos que ora funcionam de maneira orgânica dentro da estrutura do drama, ora o tiram do eixo e fazem-no correr o perigo de cair num incômodo esvaziamento ideológico.

No primeiro caso, há o excelente delineamento da figura do pai de Jean. Homem de negócios e especulador financeiro, ele é abordado pelo filme em plena crise, sem dinheiro nem para pagar as contas mais básicas. Interpretado com habilidade por Marcello Novaes (que usa sua característica canastrice a seu favor num papel relativamente difícil), o pai se desenha como alguém pleno das próprias crenças e convicções autocentradas, apenas questionando aquilo que lhe possa retirar o status quo. Fruto típico da classe média alta brasileira, esse personagem poderia tranquilamente estar na reunião de condomínio de O Som ao Redor discutindo a melhor forma de dispensar um empregado que já não lhe serve mais (ou, no caso de Casa Grande, a quem ele não pode pagar). O pai ganha do filme um tratamento não exatamente carinhoso, mas certamente afetuoso, inclusive em seu melhor momento (quando cai de uma escada, cena vista num plano aberto similar à imagem inaugural do filme). Esse pai, cujas conquistas na vida ele acredita serem fruto apenas de esforço pessoal (e não de um complexo jogo de hierarquização social tipicamente brasileiro), vai enfrentar as epifanias do filho, que não lhe tem exatamente como modelo. Aqui se forma um conflito de forte potencial, detalhado sem pressa e com alguma dose de humor.

O que passa a complicar em Casa Grande é quando Fellipe Barbosa decide justamente tirar o filme da casa. Como Jean, Casa Grande quer enxergar além de seus próprios muros e da sala daquela família. Só que, fora de seu lugar, esse olhar não tem equilíbrio suficiente para permanecer com a mesma força. Tal qual a garota de Eles Voltam, Jean passa por uma jornada de tomar contato com pessoas de outras classes, e não apenas os empregados dos pais. O mote discreto do filme passa a ser o quanto ele deverá aprender com tal experiência, sendo a maior delas a namoradinha do ônibus, adolescente tomada como moradora da periferia, filha de uma negra com um japonês e representante da miscigenação brasileira sobre a qual Gilberto Freyre escrevia em Casa Grande e Senzala. A garota tem uma das melhores presenças do filme todo, sempre a dialogar de igual para igual com Jean, muitas vezes superando-o na personalidade pelo jeito carismático e bem-resolvido. O filme, porém, lhe oferece protagonismo em uma cena num churrasco que parece não condizer com essa construção cuidadosa. As falas sobre cotas raciais explicitam a página de roteiro de onde saíram, e não os personagens que as entoam, num momento que perigosamente aproxima Casa Grande de algum petardo infeliz e simplista que costumamos ver nos filmes de Sergio Bianchi – com a diferença de que, no filme de Fellipe Barbosa, existe um tom consciencioso no diálogo, uma ausência de cinismo e a presença de um teatro de aparências que tenta tornar aquele momento uma farsa dentro da atmosfera mais naturalista do restante do filme. Entende-se como intenção, mas soa quase um desastre de realização.

A falta de dosagem passa a ser constante quanto mais Casa Grande coloca Jean literalmente para fora de casa. Há expressivo viés simplificador no retrato dos empregados, todos eles bem-intencionados ou inocentes conforme o olhar do filme, em contraponto aos patrões, figuras mais complexas e nuançadas. Esse desequilíbrio provoca uma irônica inversão em torno daquilo que o filme parece almejar: os mais ricos são submetidos a uma visão negativa tanto diante do público quanto da instância narradora, mas circulam com mais frescor dentro na mecânica do filme; os mais pobres são tratados com condescendência e geram maior simpatia, ao mesmo tempo em que se tornam um tanto artificiais por parecerem meras criações funcionais, colocados à prova para serem catalisadores do amadurecimento de Jean. De algum ponto de vista, Casa Grande quase chega a ensaiar se tornar extensão ficcional de Doméstica, por escolher narrar a história do ponto de vista do jovem patrão, e também uma versão carioca de O Som ao Redor, ao fazer da mansão e da geografia de certa fatia do Rio de Janeiro o microcosmo de um contexto mais amplo, generalizado e em pleno processo de modificação. Só que, por algumas escolhas de roteiro e mise en scène, o filme aproxima-se demais de um discurso que, se não pré-fabricado, coloca-se muitas vezes na posição de querer fazer sua parte ao simplesmente colocar o dedo nas feridas.

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