Elogio da repetição: de Tarrafal a Cavalo Dinheiro

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Victor Guimarães

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por Victor Guimarães

“É este o terrível estado em que as coisas estão.
Eles perceberam que já não tinham casa. Nem país.
E eu perdi o meu estúdio. E as colinas da Amadora
começaram a confundir-se com as de Santiago e Santo Antão.
E percebemos que já só temos a memória”.

Pedro Costa

“Isso já aconteceu muitas vezes?
Vai acontecer mais vezes, sim senhor.”

Ventura em Cavalo Dinheiro

Desde Juventude em Marcha (2006), Pedro Costa compôs – além do longa Ne Change Rien (2009) – uma série de curtas-metragens que trabalham motivos e ensejam formas que desaguariam na maquinaria plástica e narrativa de Cavalo Dinheiro (2014), elevados à máxima potência. Realizados por ocasião de diferentes encomendas e integrando coletâneas diversas, Tarrafal (2007), A Caça ao Coelho com Pau (2007), O Nosso Homem (2010) e Sweet Exorcist (2012) compõem um impressionante manancial de esboços, repetições e remontagens, como se o realizador, qual um ourives paciente e dedicado, fosse aprimorando seu molde a cada novo filme. Como nos estudos de um grande pintor – penso, por exemplo, nas 58 telas que Picasso realizou em 1957 a partir de Las Meninas de Velázquez –, os filmes são ao mesmo tempo variações obsessivas sobre as mesmas figuras e obras íntegras, que adquirem brilho próprio.

De Tarrafal a O Nosso Homem, é como se um mesmo conjunto de motivos ganhasse tratamentos diferentes a cada filme – que privilegia um ou outro personagem, um ou outro espaço, uma ou outra história. Há planos que se repetem nos três filmes, outros em dois, outros que estão presentes somente neste ou naquele, mas a sensação de vê-los no conjunto é a de habitar um mundo de ressonâncias, contaminações, fantasmas que se movem e que saltam de um filme a outro. Os protagonistas são três: José Alberto, jovem órfão de pai, passou um tempo na prisão e vive com a mãe, a rememorar o tempo de Cabo Verde e a lidar com uma ordem de extradição; Alfredo, ex-pedreiro (nunca fez uma parede torta) desempregado, mal da cabeça, dormiu na rua como um porco no chiqueiro e agora caça coelhos na mata; e Ventura, que aqui atua como uma figura nuclear, em torno da qual orbitam os outros personagens. Seu olhar para o fora-de-campo é o que convoca os testemunhos fabulares do rapaz e do amigo. Mais do que aquele que vaga solitário – como em Cavalo Dinheiro – Ventura é aquele que acolhe e escuta, quem coleta as histórias e as faz proliferar.

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Embora cada um afirme – no empenho do corpo, no brilho do olhar – sua singularidade, as histórias não pertencem exclusivamente a ninguém: os motivos se repetem, os traumas são os mesmos, a tragédia circula entre eles como um vírus. “Nós vamos continuar caindo do terceiro andar”, diz um dos amigos de Ventura na visita ao doente em Cavalo Dinheiro. Já nesses três curtas – especialmente em Tarrafal, o mais centrado no regime da conversação –, o que faz mover a narrativa é essa sorte de relato coral, a muitas vozes, que definirá a propagação das histórias em Cavalo Dinheiro. O presente é prostração e entorpecimento – são muitos os planos em que os personagens dormem ou posam estuporados – ou é dispersão e deriva à beira da loucura. Não se vai a lugar algum, caminha-se sem sair do lugar. E rememora-se. Lembra-se muito, todo o tempo. De quem se foi – a vida de pedreiro, os ferimentos, o tempo passado na prisão, a fome, as caças ao coelho, as desventuras com as mulheres – e dos mortos antes da hora: o pai de José Alberto, que era bom pedreiro e nunca deu um par de meias ao filho; o Nenê, que cozinhava coelho com batatas para o amigo Ventura.

Dispersos, perdidos no tempo e no espaço, ora os personagens vagam por um território que não lhes pertence – a urbanidade dos prédios altos, dos azulejos brancos e dos interiores metálicos do Casal da Boba nunca será um lar para os remanescentes das Fontainhas –, ora percorrem as matas desoladas das colinas da Amadora, à caça dos coelhos da juventude. O contraste entre os dois espaços de Sweet Exorcist – a floresta escura onde Ventura se perdeu e o sombrio elevador metálico, que serão retomados em Cavalo Dinheiro – aparece em A Caça ao Coelho com Pau e O Nosso Homem em sua versão diurna, na contraposição entre o vasilhame prateado da cozinha comandada por António (“Vocês se lembram daquele dia quando estavam capinando e me cortaram com a enxada? Esse é o sabor da horta”, diz ele a Alfredo e Ventura) e a mata de árvores esparsas, descampados tristes e coelhos impossíveis. A protuberância das formas a envolver os personagens e o jogo com o negro nas bordas do quadro – que já seria absolutamente decisivo em Ne Change Rien, diga-se – aqui aparece como um expressionismo à luz do dia. A descida ao inferno ainda não se concretizou.

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Mas se há algo que se esboça de maneira decisiva nos curtas é uma estética da defasagem, da sobreposição em desarmonia, que seria um traço presente em cada plano de Cavalo Dinheiro. A condição de desterro espacial e descompasso temporal dos personagens – presos em Portugal e sonhando com Cabo Verde, atados a um presente sem futuro e obcecados com o passado – é trabalhada de diferentes maneiras. Ora a defasagem toma a forma da rememoração – José Alberto interroga a mãe sobre a casa em Cabo Verde, e ainda é possível transmitir a experiência –, ora a fala designa algo que não vemos em quadro – Alfredo vê um casal de gatos e diz “olha um coelho, Ventura” –, ora é toda a cena que acontece entre dois tempos incongruentes – o mesmo Alfredo à procura de um coelho imemorial, no presente desolado da mata rala da Amadora. Na sequência do interrogatório em Cavalo Dinheiro, essa estética da defasagem se multiplicará e agenciará outras camadas: diferença inconciliável entre o médico que pergunta e o paciente que responde, entre as perguntas pragmáticas e as respostas fabulares, entre o corpo velho e doente de Ventura e a afirmação de sua vitalidade (“tenho 19 anos e três meses”). No elevador, ele está simultaneamente no hospital e no canteiro de obras da companhia telefônica, no Jardim da Estrela, nas Fontainhas, em Cabo Verde.

E se é de corpos incongruentes que se trata, seria impossível não falar de fantasmas. A fantasmagoria superpovoada, alucinatória e polifônica de Cavalo Dinheiro – os espaços assombrados, as vozes que vêm não se sabe de onde, os mortos que retornam nas fotografias, nas histórias, nas canções – já se insinua nesse deambular verborrágico dos curtas. No entanto, embora uma frase de Ventura em A Caça ao Coelho com Pau anuncie seu estado posterior em Cavalo Dinheiro, é Alfredo quem antecipa essa figura fantasmagórica. Seu olhar estatelado, sua tendência incontrolável à fuga, sua vizinhança com a morte desde Tarrafal até O Nosso Homem prefiguram as deambulações desse Ventura assombrado, à deriva, a evadir-se uma e outra vez do sinistro hospital.

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Não se chega a um filme do quilate de Cavalo Dinheiro de um dia para o outro. No caminho com Ventura e seus companheiros desde Juventude em Marcha, o que Pedro Costa parece ter descoberto é uma maneira muito peculiar de apostar na repetição – que também seria um traço decisivo em Ne Change Rien – como um princípio fundante de seu cinema. Não apenas ensaiar à exaustão, filmar uma e outra vez, filmar as mesmas histórias por anos, mas conceber também a montagem como esboço e variação: remontar diferentemente os mesmos planos (de Tarrafal a O Nosso Homem), insistir em posicioná-los exatamente no mesmo lugar, mas ressignificando todo o resto a cada vez (a ordem de extradição de José Alberto pregada à faca num poste, que encerra os três filmes), deslocar o sentido ao justapor duas sequências (Sweet Exorcist) que depois aparecerão ocupando outros lugares no filme (Cavalo Dinheiro), filmar o mesmo plano (o testemunho de José Alberto sobre o pai) a partir de diferentes pontos de vista e montar ora um (Tarrafal), ora outro (A Caça ao Coelho com Pau).

O que acontece a um plano quando está neste lugar ou naquele? Que novos sentidos nascem da relação diferida entre uma sequência e outra? O que significa escolher este ou aquele ponto de vista para a montagem? Que sorte de potência misteriosa é essa que a variação insistente sobre o mesmo motivo pode ensejar? Por um lado, a sequência do elevador em Cavalo Dinheiro só pode chegar a ser um dos maiores estudos sobre o ponto de vista na história do cinema porque muitos esboços a precederam. Por outro, pôr-se a repetir e a variar exaustivamente é também uma maneira de estar à altura da experiência desses cuja história se repete há tantos anos. Se as fotografias de Jacob Riis retornam em Cavalo Dinheiro, é porque José Alberto continua e continuará sendo extraditado desse país que não o quer, porque Ventura caiu e seguirá caindo do andaime, porque Alfredo ainda vaga pelas colinas da Amadora em busca de seus coelhos. Diante desse inferno da repetição interminável, o cinema só pode insistir em forjar novos incêndios, novas maneiras de abrir a História.

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