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Meditação para um novo tempo

De 2006 até aqui, muitas mudanças ocorreram na Cinética, dos diferentes layouts ao longo desses anos, marcando as intenções da editoria quanto ao modo de abordar os filmes e pensar o cinema naquele momento, às diversas configurações do grupo de redatores e colaboradores da revista. Como lembrado em editorial anterior, hoje nenhum membro fundador encontra-se ativo na Cinética – ainda que eventuais colaborações especiais de ex-redatores tenham acontecido nos últimos anos.

Contudo, este ano guarda a mais significativa das mudanças da história da revista: a partir deste primeiro mês de 2018, Fábio Andrade deixa a editoria da Cinética. Digo isso não apenas pela longevidade de sua atuação na função, exercida de 2010 até este momento, mas principalmente porque este período marca a tomada de caminhos do pensamento e do ponto-de-vista crítico da revista. O que é a Cinética, para seus leitores carinhosos ou detratores fervorosos, identidade difusa para muitos de nós que participamos dessa construção, foi concebida nesse período.

A Cinética anterior a esse período guardava em sua estrutura e imprimia em seus textos o desejo de abrir portas pouco exploradas pela crítica da época: um corpo-a-corpo mais franco com o cinema contemporâneo, com especial inflexão para o contexto brasileiro, intervindo no debate cinematográfico no calor da hora; a aproximação com a academia e os estudos universitários de cinema; o olhar para as novas possibilidades de ver imagens (o que por si só já garante uma série de novos olhares e portas a serem abertas); a proposta de um modelo mais aberto de fruição dos textos na revista. O projeto de primeira hora era substancialmente diferente da Contracampo, a primeira revista eletrônica de relevância no Brasil, de onde os membros fundadores da Cinética saíram para fundar seu próprio veículo: enquanto a Contracampo visava um modelo cinéfilo inspirado nas grandes revistas francesas do pós-guerra, com formato de edições e páginas aspirando ao meio impresso, Cinética olhava para o novo, sem medo de visitar outros campos do saber que pudessem agregar ao pensamento cinematográfico, buscando dialogar com o cinema de seu tempo. Na ânsia por abrir quantas portas fossem possíveis na jornada, muitas delas não foram desbravadas e, retrospectivamente, a Cinética daqueles tempos pode parecer um relógio sem órbita, com interesses diversos de seus editores (houve períodos com três ao mesmo tempo!) e um grupo grande e heterogêneo de redatores – característica necessária para sustentar um veículo cujo trabalho é voluntário.

Daí a importância desse período entre 2010 e agora: foi nele que se consolidaram alguns norteadores da revista atualmente. Primeiro, pela atenção que Fábio Andrade dedicou no período, como crítico, a nomes do cinema internacional que hoje poderíamos considerar como o cânone da revista: Apichatpong Weerasethakul, Pedro Costa, João Pedro Rodrigues, Kiyoshi Kurosawa e, especialmente, M. Night Shyamalan. Este último tem sido um cavalo de batalha da crítica na última década, mas é nos textos da Cinética – e na atuação de diversos de seus redatores fora dela – que essa frente continua viva, sustentando Shyamalan como um dos grandes nomes do cinema autoral hoje (algo presente no “mini-especial” dedicado a ele quando do lançamento da obra-prima A Visita).

Foi também nesse período que a revista encarou de frente as formas de cinema fora do circuito “comercial”. Filmes de galeria, carreiras alternativas aos circuito legitimado, e trabalhos de artistas no cinema sempre foram encarados com algo exótico pela crítica de cinema, mesmo nas seções da Cinética dedicadas a pensar esses fenômenos. Tem algo de um canteiro à parte onde se brinca de cinema, sem no fundo encará-lo como tal. Durante os últimos cinco anos, cineastas como James Benning e Ken Jacobs foram discutidos com uma pertinência pouco vista no Brasil; os filmes de Apichatpong Weerasethakul fora do circuito das salas comerciais foram encaradas como parte integrante de sua obra; importantes nomes do underground foram tema central em algum momento e o referencial de artistas como Robert Smithson, Richard Serra, Cindy Sherman, entre outros, passou a circular na revista. A arte contemporânea foi trazida à baila como interlocutora das transformações pelas quais a cultura cinematográfica passou – e foi abordada de maneiras diversas em filmes tão diferentes entre si como As Praias de Agnes, Los Angeles Plays Itself, Holy Motors ou Adeus à Linguagem.

Por fim, criou-se na revista um olhar crítico preocupado em rediscutir constantemente os próprios parâmetros da crítica, tentando a cada momento repensar os paradigmas que mobilizam o pensamento e seu resultado concreto, o texto. Isso leva a mudanças na forma de encarar os filmes, a realidade em torno da relação crítico-obra, e na escrita em si. “Devemos continuar a corrigir todas as revisões” como diz o verso de Frank O’Hara. Ou “ousadura” para pensar fora da caixa. Logo no lançamento de Cinética, em 2006, foi publicada uma entrevista com os então editores da Contracampo, Ruy Gardnier e Luiz Carlos Oliveira Júnior, contando a história da criação da primeira revista online de relevância e as mudanças na crítica e cinefilia até aquele momento. Em dado momento, Júnior responde que, com o acesso quase ilimitado a filmes permitido pelo compartilhamento de arquivos digitais na internet, “você deixa de ter uma Bíblia para o cinema. Você não tem mais uma orientação só a seguir. O cinéfilo, ele não tem mais aquela fonte única que orienta o gosto dele, que diz pra ele o que ele deve ver ou pensar sobre isso ou aquilo”. Passados quase doze anos, o contexto da cinefilia e da crítica se transformou completamente (uma das provas sendo que 20 anos depois de sua fundação, Contracampo não existe mais e a maioria parece não sentir falta, o que é uma pena). O acesso democrático e anárquico às obras e aos discursos críticos, a massa de material escrito bombardeando o público a cada novo lançamento e a multiplicidade de opiniões ou resenhas disponíveis levou a uma “cinefilia filiada”, ansiosa pela confirmação de suas ideias – ou daquelas recebidas pela avalanche de escritos disponíveis internalizadas como se fossem suas. Nos diversos espectros possíveis, a cinefilia virou igreja, juntando pessoas pelo interesse comum em determinado aspecto defendido quase sempre como pedra de lei e muito pouco como discussão sobre o cinema, a arte, o pensamento, as ideias, as coisas, o mundo. Uma tentativa da Cinética nos últimos três anos foi jogar no centro da arena, repensando essas posturas para encontrar caminhos imprevistos no corpo-a-corpo com os filmes, buscando se contaminar pela obra primeiro para depois intervir na realidade, iluminando ambas pela força da imaginação e do olhar (as duas principais ferramentas do crítico). Essa proposta fica mais evidente na relação com o cinema brasileiro contemporâneo nos últimos anos, na qual o popular, a invenção e a política nos filmes foram abordadas por ângulos distantes da discussão corrente, com evidentes reverberações, de maneira inesperada, no contexto cultural – ainda que em 2017 alguns filmes importantes tenham escapado do radar, algo que esperamos não repetir neste ano de 2018.

Num contexto fragmentado, no qual a figura do crítico é cada vez mais dispensável em meio a resenhistas, blogueiros, youtubers, influencers e feicebuqueiros que cumprem papéis mais esperados pelos cinéfilos contemporâneos e o status quo midiático, o desafio colocado ao longo dos últimos sete anos de pensar e repensar um cânone sempre instigante ao longo do tempo, dialogar com o novo sem perder de vista as interações com a tradição, e manter um olhar crítico plástico e imaginativo, sempre fazendo jus às obras, é cada vez mais urgente. Como um convidado indesejado, a crítica dança com a sombra de ser dispensável como libertação para se fazer relevante. Só uma crítica incessantemente atuante, enfrentando nós históricos da cultura cinematográfica enrolados e desenrolados constantemente, mais ainda num país como o Brasil, cuja tônica do cinema é a irrelevância, está à altura do desafio.

De resto, fica os agradecimentos dos integrantes da Cinética a Fábio Andrade, por fomentar as bases desse modelo de crítica que almejamos, e o desejo de sorte nas novas empreitadas.