No Home Movie, de Chantal Akerman (Bélgica/França, 2015)
janeiro 25, 2016 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade
* Cobertura do 53o New York Film Festival
Um galho ao vento
por Fábio Andrade
“ ‘O que estou fazendo aqui?’
Não tive resposta.
A paisagem não me respondeu”
Jonas Mekas em Lost, Lost, Lost (1976)
No Home Movie – documentário mais recente de Chantal Akerman focado em sua relação com sua mãe, Natalia Akerman – é um quebra-cabeças contraditório a começar por seu título enigmático. O rigor visual das composições invariavelmente extraordinárias de Akerman não é tão perceptível aqui, ao menos não da maneira que fomos condicionados a esperar dela; em vez disso, o filme se monta a partir de planos escorregadios, tateantes (mesmo quando a câmera não está na mão), flutuando entorno da presença da mãe da diretora, e reunidos de uma maneira que abole uma organização espacial ou temporal, desafiando a declaração aparentemente feita pelo título: como este filme poderia não ser um home movie?
Há um desconforto inerente aos filmes familiares que são tornados públicos que só parece ser dissipado por cineastas que conseguem transcender a documentação da vida íntima e cotidiana, e que encontram (ou permitem ao espectador encontrar) uma qualidade metonímica nas imagens, sons e articulações que de fato aludem ou aspiram a um retrato mais amplo. O extraordinário Nascimento/Mãe (2006), de Naomi Kawase, por exemplo, é não só sobre a relação da diretora com a tia-avó que a criou, mas também sobre o cabo-de-guerra ético (logo, estético) entre quem empunha a câmera e quem está diante dela… é sobre maternidade, sobre uma sensação conflituosa de pertencimento, sobre o que o cinema consegue e sobre o que ele não consegue fazer (uma luta transcendida pelo paralisante plano de Kawase filmando a si mesma dando a luz a seu filho). Em certo sentido, todo bom home movie é, em mesma medida, um home movie e uma negação da idéia de home movie, e a natureza paradoxal do filme de Akerman é uma maneira de encenar a contradição de sua própria existência, e o seu desejo de ser o que é e, ao mesmo tempo, ser mais do que o que é: artistas criam trabalhos extremamente pessoais; os espectadores os tornam universais.
Ainda assim, se estamos no seio dos filmes em primeira pessoa, algo parece levemente desencaixado. Em um dos primeiros planos de Natalia Akerman à mesa da cozinha, Chantal senta-se de frente para ela, mas mal conseguimos ver seu rosto, definindo uma espécie de regra não-dita que vai prevalecer pelo resto do filme. A mesma diretora tão frontalmente presente em Saute ma Ville (1968), Je, Tu, Il, Elle (1976), L’homme à la Valise (1983) e Chantal Akerman par Chantal Akerman (1996) aparece aqui como uma presença estranhamente elusiva, escorrendo pelas bordas quando não totalmente fora do quadro, de costas para a câmera, evitando se tornar âncora de identificação mesmo quando filma a si mesma numa tela de computador, em conversa por Skype com sua maman. Chantal está lá como interlocutora para Natalia, certamente, mas o que seria o ponto de referência lógico para um filme em primeira pessoa de uma artista que tantas vezes deu seu corpo à câmera nos é negado: se este filme não é sobre a cineasta, como pode ser sobre sua mãe? Por que Natalia seria digna de nosso interesse, nós que não estamos ligados a ela por sangue ou afeição, se até mesmo esta porta de entrada da primeira pessoa permanece trancada? Seria a mãe, neste caso, uma metáfora para algo maior e talvez infinito, soprado pelo subtexto alegórico como os galhos entortados pelo vento no (belíssimo) plano de abertura do filme?
Sempre que nos aproximamos do filme com perguntas tão familiares – perguntas suscitadas por outros filmes que parecem semelhantes a este –, mesmo se acompanhadas de um sorriso de paciência, No Home Movie se fecha em si mesmo, negando espaço a um espectador que não tem outra escolha a não ser vagar por este apartamento – sem rumo, sem propósito, sem ninguém. É uma posição irônica a se ocupar, considerando que a especificidade espacial sempre foi ponto central no trabalho de Chantal Akerman, a ponto de diversos outros filmes trazerem uma referência a um lugar nos seus títulos: Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975); La Chambre (1972); Hotel Monterey (1972); Histórias da América (1989); Do Leste (1993); Sul (1999); Um Divã em Nova York (1996); Do Outro Lado (2002); Tombée de nuit sur Shanghai (2007); Lá (2006) – sem dúvidas! Um filme inteiramente filmado por através da persiana de um apartamento em Jerusalém, no qual a cineasta investiga uma sensação de pertencer a uma realidade cultural que ela parece nunca conseguir viver plenamente – … e, naturalmente, News from Home (1976), que em retrospecto parece uma reprodução em negativo de No Home Movie, e no qual Chantal Akerman lê cartas que recebeu de sua mãe sobre imagens de Nova York, seu lar à época. Lar. Home. No home.
Como se ativado por estas palavras mágicas, No Home Movie lentamente se abre, e todos aqueles planos aparentemente aleatórios de grandes montanhas, vento intenso e paisagens amplas subitamente ganham novo sentido: como é possível fazer um home movie quando não se tem um lar? E como esta ausência do lar – ou melhor, a presença de um lar fora do lar – que é central à identidade judaica pode ser transformada em imagens e sons?
Perto do final do filme, quando a saúde de Natalia já está claramente debilitada, a diretora conversa com uma mulher que parece ser a nova enfermeira de sua mãe (e que também é uma imigrante), e conta toda a sua história: Natalia deixou a Polônia ainda jovem, foi capturada pelos nazistas, indo parar em Auschwitz, e passou o resto da vida exilada na Bélgica, nunca mais retornando a seu país de origem. “É por isso que ela é assim”, diz Chantal, e é difícil dizer com precisão o que ela quer dizer com este “assim”, uma vez que, de uma forma ou de outra, boa parte de seus filmes se digladia com a mesmíssima impressão. Por que ela é como é? A indagação é feita às montanhas, ao deserto, aos vales: por que eu sou assim? Estas são as duas perguntas fundamentais que Chantal Akerman parece estar se fazendo neste filme. Mas a paisagem não responde e a única coisa que o filme pode fazer neste caso é tentar captar os ecos dessa voz, rebatendo na imensidão, envolvidos por ausência. A ausência de resposta, porém, não anula a sensação erigida pela vibração da voz.
Em entrevista a Daniel Kasman no Mobi, Chantal Akerman fala sobre a herança inevitável da experiência dos campos de concentração: “Há livros sobre as crianças da segunda geração de sobreviventes, e eles percebem que os efeitos do campo de concentração afetam até mesmo uma terceira geração. Eu fui parte da primeira geração, a primeira filha nascida após a guerra dos dois lados da família, tanto do da minha mãe quanto do do meu pai”. Esta sensação de proximidade misturada com a certeza da distância é belamente ativada pelo primeiro corte do filme: poucos planos depois de o vendaval ter soprado contra os galhos de uma árvore em uma paisagem ancestral, a câmera mostra o jardim da mãe da diretora, onde uma cadeira está jogada de ponta cabeça, como se o vento que soprou do outro lado do mundo pudesse de fato tê-la virado. Enquanto em Lá a proximidade ao olho do furacão impedia que a diretora transgredisse as cortinas translúcidas que cobriam a janela e interagisse de fato com a vida do lado de fora, aqui a distância é subsumida pela ligação invisível que conecta mãe e filha (palavras que podem ser lidas tanto literal quanto alegoricamente).
Mais tarde, em uma conversa por Skype, Chantal diz a Natalia: “estou tentando mostrar que a distância não existe”, e é exatamente isso que a montagem do filme tenta realizar: abolir a distância no tempo e no espaço, fazendo de conta que nenhum momento foi perdido, mas que ao mesmo tempo tudo só pode existir no intervalo, nesta distância que não existe (ou nesta não-distância que está muito claramente lá). E se essa luta entre a inevitabilidade da distância e o desejo de proximidade é também parte do desconforto e do descolamento que o filme negocia com o espectador, com toda a sua especificidade, é talvez porque No Home Movie não esteja expondo uma maneira de experimentar o mundo que possa ser sentida e compartilhada (como as dores que tão vividamente sentimos por meio de Jeanne Dielmann; A Prisioneira; Toda uma Noite; Lá e em vários outros de seus filmes), mas sim uma que pode apenas ser testemunhada e compreendida.
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