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esboço de um começo sem princípio

Virgindade (2015) se mostra como um esboço. Os primeiros ensaios de um menino que é arrebatado pelo seu desejo por outros meninos. Esboço não no caráter transitivo ou provisório, que antecede obra final, mas em sua natureza mesma de primeiros riscos. Folha de vida, em estado de aurora, que começa a ser desenhada em rudimentares garatujas. O curta de Chico Lacerda soma corpo ao insólito repertório de cinemas que se deixam ocupar por vislumbres de uma infância kuir. Entre as fendas comuns que marcam o exercício de estar no mundo de vidas não-hétero-cis-normativas desponta a experiência do tempo. Há um certo descompasso que faz companhia ao imaginário dessas vidas. Desalinhamentos temporais, comumente relacionados a uma ideia de atraso, como uma presença a quem é imposto um estado de suspensão, uma demora até poder começar a ser.

Num drible no atraso, a aposta no desalinhamento aliado justamente à recusa a essa temporalidade encadeada-linear. Estranhando a própria ideia que carrega no título, Virgindade escolhe se irmanar a esse descompasso. Descompasso avesso a sujeitar-se a marcos sequenciais não só da ordem do tempo, mas também ligados a modos de contato entre um corpo e outro corpo. O filme firula com arranjos hierárquicos dessas formas de contato – físico, concreto, imaginado – que organizam limites e sustentam o próprio conceito de virgindade, e de sua perda. Até aqui, ainda não era. O filme faz troça com o que habitualmente se entende por iniciação aos convívios da carne. A última frase emitida pela voz over que nos acompanhou durante todo o curta diz: “A partir daí comecei a treinar olhos e ouvidos para o maravilhoso mundo da pegação”. É quando a obra chega ao fim que se instaura o consciente treinamento de olhos e ouvidos. O filme não acontece depois do despertar de olhos e ouvidos, antes, o corpo já estava com o juízo todo aceso, esboçando. A iniciação sexual está tão distante da projeção final de uma foda no banheiro do cinema quanto próxima de um riso descontrolado aos três anos de idade.

des·com·pas·so

1. ausência de medida ou de regularidade; desordem, desproporção.

2. falta de conveniência, compostura; descomedimento, exagero.

3. divergência, desacordo, desarmonia.

Dois movimentos basilares estruturam Virgindade. O primeiro abre o filme: a voz over de um rapaz enfileira cenas do passado – “A primeira vez que senti tesão foi aos três/quatro anos”; “Aos oito anos vi pela primeira vez uma revista de homem pelado”; “A primeira vez que me apaixonei… ”. A fala é acompanhada por planos abertos e fixos de espaços da cidade que se alternam, coincidindo quase sempre com os cenários das cenas narradas. O descompasso reaparece: entre o que escutamos e o que vemos, a vasta distância do tempo. A voz, frente ao êxtase da lembrança, permanece numa mesma toada durante toda a descrição. As cenas narradas são excessivamente povoadas de espantos e encantamentos, atividades de um corpo afetado. Enquanto isso, na imagem a cidade é vista a certa distância, numa mirada modesta, estática, os espaços filmados em seu funcionamento habitual – as filas, os comércios e as esperas. Na acanhada escassez da imagem, o corpo do filme recorre à palavra, como o menino que se masturba lendo os verbetes de dicionário ou as sinopses do Guia de Vídeo.

Ancoradas na fala, que recobre o olhar, as imagens produzem, ainda que rarefeita, uma certa ocupação da cidade, quase não-visível, mas imaginável. O fato de que as cenas narradas sejam acompanhadas por planos da banalidade urbana se coloca além da ideia de propor o erótico no não-visto, mas sugerido. A demora no insinuante supermercado e nas demais fachadas enquadradas ao longo do filme parece trabalhar para inscrever as histórias narradas na paisagem da cidade. E o espalhamento daquelas memórias pelo cotidiano concreto das ruas é anti-isolamento, anti-guetização. Vai ser preciso criar um convívio com elas no inevitável da vizinhança da avó, da parada de ônibus, da sala de cinema, do posto de gasolina.

O segundo movimento estrutural é um hiato, uma sequência de planos de corpos de homens nus que interrompem a vista da cidade quase na metade do filme. A narração dá lugar a um britpop, que suavemente se alastra na trilha sonora. Nenhum rosto aparece na sequência inteira, o corpo feito um descampado, miragem. Quase como a cidade, num paralelo delirante, tomado inteiramente pela trilha. Esse intervalo súbito soa como a corrida narrada do menino de volta à casa para se acabar no banheiro depois de ter olhado demais para uma capa de DVD na locadora do posto, para só então voltar ao convívio. Seja no pacto com a palavra selado por alguém que sabe do calor em potência guardado em verbetes de dicionários, seja nessa fuga aos rapazes sem rosto, os passos do menino vão sendo rearranjados na estrutura do filme. Nesse desequilíbrio entre os planos imóveis e a fala movediça, desenrola-se o exercício de contar-se sem se mostrar.

es·bo·ço

1. conjunto dos traços iniciais, ger. provisórios, de um desenho, de uma obra de arte.

2. qualquer trabalho ou obra em estado inicial, apenas delineada ou esboçada.

3. qualquer figura indistinta, que apresenta apenas contornos de um vulto.

A extensa sequência de créditos ao fim do filme reúne uma série de fotografias sendo manuseadas e expostas enquanto os versos de uma canção vibram na trilha sonora, que é também sinopse do filme: “Se pudesse, eu voltaria a ser uma criança só pra poder fazer mais do que eu já fiz quando era pequena!”. Se for pra conferir rosto aos sujeitos da lembrança, serão seus rostos quando criança, num reencontro com o rascunho de uma infância bicha. Esse modo de mostrar-se remexendo os anúncios fotografados nas poses, somado à manifestação desse desejo de retorno não soa um regresso lamentoso ou arrependido pelo que não aconteceu. Aproxima-se mais de um apetite ávido por ter vivido ainda mais um tanto.

Um menino não foi convidado a brincar de troca-troca na casa abandonada do bairro porque os outros meninos que brincavam desconfiaram que ele poderia “gostar daquilo para além da brincadeira”. Parte do trabalho da Surto & Deslumbramento com este e outros filmes é não ficar mais de fora da brincadeira. Talvez a atividade do coletivo seja justo a de experimentar no cinema o gosto para além da brincadeira, ou gostar demais da brincadeira, do teatro, do treino de olhos e ouvidos, da dimensão fabricada, da camada artificial, da construção de fantasmas que vagam pela cidade.


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