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Tesão, tragédia e ruína

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Em 2015, a Revista Janela me convidou para fazer parte de uma listagem coletiva de melhores documentários brasileiros. Uma das minhas escolhas foi Casa Forte, curta de Rodrigo Almeida, que eu tinha visto havia bem pouco tempo. Escrevi um parágrafo sobre a escolha para constar junto à lista de filmes:

“Filme fundamental pra pensar uma sofisticação da forma ensaio hoje. Acachapante exercício sobre as sobrevivências. Pega a fetichização da luta de classes e da especulação imobiliária e lhes dá uma chave de piroca. Cada vez que revejo me espanta mais a precisão da composição entre as partes, os registros. Demorei a sacar o que o povo do Surto & Deslumbramento tava fazendo. Os últimos filmes do grupo colocam uma série de debates históricos em outro patamar. Me parece que o Casa Forte é o big bang dessa série curiosamente interessada nessa coisa-ideia meio démodé chamada Brasil.”

Resumindo, Casa Forte não é o que costumamos chamar de documentário. Tudo é escrito e encenado. Porém, pareceu interessante ter o filme um pouco “no lugar errado”, numa zona de ambiguidade – que é o centro de energia do filme.

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Casa Forte é um bairro de classe média alta de Recife. Casa Forte, a ficção ensaística de Rodrigo Almeida se estrutura da seguinte maneira: no primeiro terço, sobre imagens de fachadas de prédio com dizeres racistas e/ou coloniais, ouvimos uma fala em áudio, de um homem branco (Mário Jarbas) falando sobre suas experiências sexuais com outros homens, em especial sua “tara por negões”. Na parte central, ouvimos um depoimento nos moldes do primeiro, só que de um homem negro (Thalles Oliveira) , falando também informalmente sobre como questões raciais e de poder atravessam os contornos e a história do seu desejo sexual e afetivo, enquanto ainda vemos a sequência de dizeres coloniais em placas e fachadas. Na terceira parte, o registro muda. Numa ruína de uma casa colonial cercada por verde, contrastando com o registro urbano dos primeiros espaços, vemos um homem negro e um outro branco, num registro quase warholiano, posando, performando quase parados, sobre esse cenário igualmente expressivo.

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A descrição das partes elucida o desenho singular do filme. De certa forma, tudo parece se tratar do contato, da combinação ou da fricção. A palavra em off com a imagem, um corpo com outro, palavra lida com palavra ouvida, o negro e o branco, e assim por diante. O filme parece ser esses limiares. O vínculo fundamental entre a experiência privada do prazer e os signos e formas dos espaços públicos produz uma visada do racismo e do colonialismo brasileiros que lhe sugere uma justa e complexa amplitude.

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Toda a primeira parte funciona como uma espécie de poema cômico e grotesco composto de escritos públicos, como A Luz das Palavras (Carlos Adriano, 1992). “Edifício Engenho”, “Senzala Megahype”, “Vitória Colonial”, são alguns dos versos visuais que o filme coleta em seu rico inventário. O que está ali é a evidência material das sobrevivências da escravidão, de maneira plenamente visível, presente e incorporada à vida contemporânea. A arquitetura dos dias de hoje expõe uma continuidade explícita e uma permanência da colonialidade, justamente, como um tempo que não passa.

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Todo o filme parece embalado por esse tempo que não passa, que permanece, em eterno looping. Os planos posados da parte final são embebidos dessa atmosfera de uma insistência incômoda e afetiva. O primeiro plano da sequência mostra o branco com certa expressão de apreensão, uma quase tristeza. O ator negro mantém, comparativamente, certa altivez em sua presença na cena. O tom geral é de “isso acabou, é o fim, porém estamos ligados”. O abraço apertado e longo entre os dois homens – uma espécie de ápice ambíguo do curta – sintetiza essa mistura em igual parte de um vínculo e de um desencaixe, um lamento e uma afinidade (o público e o privado, o exterior e o interior). A coreografia quase camp fricciona também com um áudio marcante. Não os depoimentos da primeira parte, mas a canção “Fim de festa” (de Itamar Assunção e Naná Vasconcelos). Uma música igualmente que “não passa”, formada só por estes quatro versos que são repetidos algumas vezes:

Meu amor por você chegou ao fim
É tudo que tenho a dizer
Também não precisa sair assim
Espere o dia amanhecer

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A interpretação de Itamar ressalta um investimento radicalmente íntimo. A entonação quase sussurrada é reforçada pelas ambiências sonoras de Naná, que preenchem a cena de uma energia de fim de noite, de fim de festa, de fim de ciclo, e da presença do vínculo que é, ao mesmo tempo, presente e insustentável. Mesmo que o último plano da sequência seja a saída do homem negro do quadro – o que poderia sugerir uma saída do sistema, uma emancipação – toda carne do filme é composta por essa estagnação densa, decadente, íntima e sensual. A umidade da ruína colonial é um índice da força de sua permanência e da possibilidade iminente de desmoronamento daquilo tudo. Uma ruína é sempre, simultaneamente, a afirmação da força voluntária da construção e da ação “involuntária” da decomposição material.

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Assim como as falas das primeiras partes, as relações não acabam. Talvez o filme seja justo sobre essa “persistência” que vai da cama à arquitetura. A insistência dos nomes coloniais e a insistência do desejo não encontram na consciência do trauma histórico um obstáculo. Interessa ao filme não exatamente resolver o impasse, mas buscar uma maneira de encená-lo, buscar uma formulação justa para ele. E a tendência ensaística dessa e de outras ficções do coletivo Surto & Deslumbramento soa como o tipo de estratégia ideal para dar forma a esse tipo de nó histórico-libidinal. A estrutura de “fluxos paralelos”, de montar cenas que não são completas em si (o catálogo de palavras + os depoimentos em áudio e depois as poses silenciosas na ruína + a canção de lamento ambíguo) dá materialidade justa à instabilidade insistente que é cerne desse cruzamento entre história e formação do desejo. “Casa forte”, se tomamos como verbo, significa também “combinar muito”. A força desse feixe de história, intimidade, tragédia colonial, expropriação e comicidade, é o que faz de Casa Forte um dos mais sintéticos e expressivos curtas brasileiros da última década. Por essa coragem descritiva se combinar também com uma persistência afetiva que se traduz no desenho da forma irresoluta do filme.


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