CANTO D E OUTONO BANNER 2021 leve

Seja belo e faça o mínimo

Talvez assistir a um filme que acompanha uma bicha de contornos apolíneos e sensibilidade gótica transitando entre ler Baudelaire no conforto de seu mausoléu e viver a noite carioca com outros jovens não seja o mais absurdo dos conceitos para o cinema brasileiro de 2021, mas em 2014 as pessoas e os cinemas eram outros, sobretudo aquele feito em Pernambuco. E talvez seja injusto, sobretudo se levarmos em consideração a produção experimental de Jomard Muniz de Brito e Geneton Moraes Neto nos anos 70 e 80, dizer que o cinema pernambucano sempre esteve dominado por uma sensibilidade cis-hétero, mas ainda que se possa entender a liberdade criativa (e sexual) presente nos curtas daquela época como mera consequência de uma efervescência cultural global, é fato que havia em filmes como Toques (Jomard Muniz de Brito, 1975) e A Flor do Lácio é Vadia (Geneton Moraes Neto, 1978) uma aproximação muito menos trágica com o sexo e com a encenação do que aquela vista nas gerações seguintes, onde, para além do olhar masculino, o realismo cáustico trataria de engolir tudo.

Chegamos então em 2012. A fermentação do cinema pernambucano como o mais instigante celeiro de talentos no audiovisual brasileiro explode com O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho, o documento original de uma tendência de observação social que se instalaria firmemente nos anos seguintes e que pautaria tanto a produção quanto o rumo de seus debates. Enquanto isso, a representatividade queer (ou preta, ou feminina, diga-se de passagem) ainda estava às vésperas de se fazer plenamente presente. Um lampejo de mudança, ainda que num contexto local, acontece quando André Antônio filma tão requintadamente quanto possível um debate entre os colegas Rodrigo Almeida e Chico Lacerda sobre a então recém lançada canção “Mama”, de Valesca Popozuda, e constrói em torno desse momento seu primeiro filme (Mama, daquele mesmo ano de 2012). Começava ali a história do Surto & Deslumbramento, uma pequena e fabulosa cruzada do cinema bicha contra o filme de prédio e contra as cortinas bregas do Cinema São Luiz.

Me encontrei com o Surto muito antes disso, num longínquo 2009, quando o Cineclube Dissenso, projeto comandado por vários daqueles que um dia formariam o coletivo, aportou no Cinema da Fundação, casa do dito “cinema de arte” no Recife. Vejo com alguma felicidade que o debate sobre cinema ganhou um caráter muito menos nichado do que aquele de 12 anos atrás, mas é fato que ter sua educação cinéfila construída em doses fracionadas e bem cimentadas por um debate pós-sessão é um luxo raro para a geração Letterboxd. Talvez possa dizer que devo a esse momento pré-Surto, e as sessões de Mar de Rosas (Ana Carolina, 1975), As Harmonias de Werckmeister (Béla Tarr, 2000), The Raspberry Reich (Bruce LaBruce, 2004) e tantos outros, a própria existência desse texto e do meu primeiro filme, mas é fato que devo a Canto de Outono (André Antônio, 2014), e à certeza de que havia espaço para filmar bichas que falam, sofrem e choram, a manutenção da minha crença no meu próprio cinema.

Canto de Outono é, afinal, André Antônio unindo Baudelaire e Lewis Carroll, e transformando Erick Volgo em sua Alice nesse processo. E já que conversamos aqui sobre dívidas, é possível que eu deva a Erick Volgo, muitos anos antes de vê-lo assumindo no filme de André essa amálgama de Baudelaire e Alice, a confirmação plena da minha própria sexualidade. Antes de assumir esse viajante noturno que protesta silenciosamente contra a pressa e a favor do tédio, contra a hora de chegar, o rosto estatuesco de Erick em seu período fotologger adolescente foi responsável por me fazer entender que sim, homens são e podem ser o repositório de coisas como uma profunda experiência estética, um espanto, o objeto do amor. É uma conclusão simples, quando vista de hoje, mas talvez um pouco mais delicada há 16 anos.

Primeiro produto de um projeto chamado As Quatro Estações, que pretendia parodiar e homenagear o trabalho homônimo do cineasta francês Eric Rohmer, Canto de Outono opera como um breve experimento em colagem de referências, um ensaio sobre deslocamento temporal. Interessado numa pesquisa sobre o encontro entre pintura e cinema, André propõe composições especialmente formais para o início do filme, mas existe ali algo de despojo, uma luz que não pinta com luxo aquele corpo sensualmente estirado entre livros e velas. Ao mover sua personagem e consequentemente passar a mover sua câmera, surge uma ameaça àquela realidade perfeitamente emoldurada. No entanto, as oportunidades pictóricas são tão fortes do lado de fora quanto do lado de dentro, assim como é a sua potência melancólica. É como se o spleen baudelairiano se revelasse um elemento fundamental, eterno perseguidor e amante voraz dessa juventude brasileira que festeja à revelia da montagem, que faz o possível para desobedecer até mesmo os códigos que constroem uma narrativa. Uma juventude algo ébria, nenhum julgamento nisso, e perfeitamente satisfeita em sua perambulação.

É interessante, e em alguma medida sintomático, que Canto de Outono, posicionado entre Casa Forte (Rodrigo Almeida, 2013) e Virgindade (Chico Lacerda, 2015), dois trabalhos definitivos para a transição do coletivo, que deixava de ser uma curiosidade da cinefilia local e se tornava um projeto nacionalmente discutido, tenha sido um filme tão minimamente comentado à sua época. Talvez não houvesse espaço para esse amálgama de observação direta e devaneio onírico que André e outros diretores, como Tomás von der Osten em seu A Invenção da Noite (2015), estavam propondo naquele momento. Mesmo num filme irmão como O Completo Estranho (Leonardo Mouramateus, 2014), a consciência do final de uma cidade, de um tempo, de um mundo era tão importante quando a experiência de estar lá. O mais curioso é que quase nada mudou.


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