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“As frívolas arrasam!” – Entrevista com o coletivo Surto & Deslumbramento

Em meados de 2012, André Antônio, Chico Lacerda, Fabio Ramalho e Rodrigo Almeida formaram o coletivo Surto & Deslumbramento. Em menos de dez anos, realizaram um longa-metragem, A Seita (André Antônio, 2015), e dirigiram sete curtas, além de assinarem outros sete trabalhos colaborativos. Um historiador do futuro talvez encontre nos filmes do coletivo, realizados fora do mercado de distribuição e com uma presença discreta nos grandes festivais do país, uma das formulações mais conscientes e vigorosas de uma sensibilidade maneirista e paródica que tornou-se com os anos uma presença difusa no cinema brasileiro. Em abril desse ano, convidamos os quatro membros do coletivo para uma conversa por escrito, em que discutimos a formação do grupo, o seu modo de produção, as suas inclinações estéticas e políticas e o modo como se percebem dentro da história do cinema, corrigindo o atraso da revista em discutir sua produção tão singular e inquietante na paisagem do cinema brasileiro contemporâneo.

Hermano Callou: Quando o Surto & Deslumbramento se formou no início da década, vocês estavam indo na contramão do que se considerava o cinema brasileiro “relevante” na época. Queria que vocês contassem sobre o surgimento do coletivo e sobre como vocês refletiam sobre o estado do cinema brasileiro naquele momento.

Chico Lacerda: A gente se aproximou a partir de várias frentes: cursos de graduação e pós em comunicação da UFPE; Cineclube Dissenso; bares e noite recifense. A ideia de produzir peças audiovisuais começou quando viajamos juntos pra um congresso da AsAECA, na Argentina. Estávamos obcecados pela música “Mama”, de Valeska Popozuda e ficávamos fantasiando fazer um videoclipe não oficial pra ela (inspirado no clipe de “Wicked Game” e com a participação do ET Bilu). Eu já tinha produzido alguma coisa de forma autodidata e instiguei o povo. Daí surgiu Mama (2012). Pra dar um ar mais profissional e tirar uma onda, criamos duas produtoras falsas, Surto e Deslumbramento, e jogamos o filme na internet. Como rolou um retorno positivo, começamos a botar outras ideias na roda. Tava todo mundo na pós, com bolsa, então tínhamos tempo de sobra.

Rodrigo Almeida: O Cineclube Dissenso teve um papel importante, porque era um lugar em que assistíamos muitos filmes juntos toda semana, rolava sempre um debate oficial após a sessão e geralmente depois íamos beber num bar perto – e nesse bar tínhamos uma liberdade de fazer o debate do debate com menos pessoas e comentar sobre o que nos incomodava no cinema brasileiro e pernambucano daquele momento. De forma geral, a gente achava tudo muito hétero e sério, num misto de autoimportância e autocomplacência, o sério como sinônimo do bom, do político, do posicionado, do bem feito. E para piorar tinha todo esse circuito de retroalimentação de uma produção acadêmica que legitimava esse cinema, assim como esse cinema por sua vez legitimava essa mesma produção acadêmica. O “risco do real” (expressão cunhada pelo crítico Jean-Louis Comolli) nessa época tava babado. Chico já fazia os filmes dele, André teve um tempo que estagiou na Símio Filmes, eu já trabalhava na curadoria do Janela de Cinema, Fábio já estava no doutorado.

Mas pra mim, uma situação marcante antes do coletivo nascer foi a realização do filme colaborativo [projetotorresgemeas], lançado em 2011. Isso porque o projeto abriu chamada para qualquer pessoa colaborar com imagens, sons, materiais diversos, no intuito de traduzir cinematograficamente várias discussões sobre urbanismo e especulação imobiliária que estavam rolando na cidade há alguns anos. Eu e Chico participamos dessa colaboração e, entre outras imagens, enviamos a cena pensada por Chico que encerra o filme, com os dois paus se masturbando e isso gerou muitos debates internamente no processo de montagem e depois do lançamento, com algumas pessoas acusando as imagens dos dois paus de “grotescas”, “que foi um tiro no pé do projeto”, “que estragou o filme”. Sinto que ali já estava posto um embate, porque colocavam como se a inserção explícita de dois paus num filme “político”, nessa relação falo e verticalização e numa pegada brotheragem mesmo, iria deslegitimar a luta. Era uma coisa meio “a gente tava aqui fazendo nosso filme de luta, nosso filme político bem certinho, bem engajado, bem militante e vieram essas bichas e estragaram tudo”.

Fábio Ramalho: Embora tivéssemos históricos muito diferentes no que se refere à nossa aproximação ao campo da realização, acho que, no geral, o que nos uniu foi a vontade de nos jogarmos e experimentarmos sem muita (auto)cobrança, o que implicava encontrar lógicas de produção e formatos que favorecessem a autonomia. Ou seja, assumir alguma função específica em projetos de terceiros e tentar dominar os códigos de inserção no campo já estabelecido nem era suficiente para quem tinha alguma experiência, nem se mostrava um caminho tão atraente para os outros. Então, pelo que me lembro, a questão foi menos a de propor como ponto de partida a busca por um tipo de trabalho necessariamente “autoral”, e mais o desejo de ver no que dava, sem grandes compromissos.

De minha parte, posso dizer que, se a experiência com o coletivo já se mostrava desejável por ela mesma, trazia também outro atrativo que era o de poder olhar diferentemente para algo de que eu já me ocupava a partir de outra posição, a da escrita. E acho que isso se confirmou: consigo ver muitas coisas com outra perspectiva, depois desses anos de diálogo constante com o resto do grupo.

Juliano: Os filmes do coletivo são bem diferentes entre si na tela. Vocês podem falar, exemplificando as diferenças dos processos de trabalho e produção dos primeiros aos mais recentes? Me parece que há algo singular em termos de método na confecção dos filmes, e também um certo rodízio de funções. Enfim, descrevam um pouco como esses filmes se fizeram, se possível.

Chico: O processo de concepção variou pouco ao longo do tempo. Um de nós tinha uma ideia, argumento ou roteiro inicial e compartilhava com os outros. Rolava uma fase de discussão e crítica pesada até construirmos o roteiro do coletivo, algumas vezes muito próximo do original, outras vezes bem distante.

Com relação ao processo de produção, no começo (Mama/2012, Estudo em Vermelho/2013, Casa Forte/2013) era tudo muito orgânico e relaxado. Nos dividíamos entre as funções a partir de predileções e transitávamos muito tranquilamente entre elas. O cronograma era esparso e geralmente atrelado a encontros etílicos. Para fazer Kate Bush no topo do carro em Recife, por exemplo, viramos a noite assistindo RuPaul e saímos cedinho pra filmar. Pra recriar o videoclipe em si, passamos o fim de semana em Itamaracá e, por consequência, estávamos sempre de ressaca nas filmagens. Sinto que não tínhamos um apego tão grande ao resultado, a coisa valia pelo processo em si, pelo estar junto e estar bem, construindo aquelas imagens. Um pouco desse paraíso perdido se repetiu agora na pandemia, durante as filmagens de Vênus de Nyke (a ser lançado). Equipe mínima, clima mais tranquilo, bebida e conversas ao longo do processo. Coloco ainda Virgindade/2015 nesse modo de produção. Na verdade, ele foi feito quase que completamente sozinho, para o interlúdio (corpos + paisagens) é que nos juntamos num fim de semana de farra.

Talvez num outro extremo fiquem os filmes que fizemos via edital (A Seita/2015 e Sonhos, a ser lançado). Equipe grande (e, felizmente, remunerada), cronograma apertado, profissionais em funções bem definidas, processo exaustivo e foco direcionado completamente ao resultado. Nesses casos, ficamos submetidos a esse modo de produção já sedimentado e ao qual eu, hoje, tenho algumas críticas, especialmente no que diz respeito às condições de trabalho, hierarquização de posições e qualidade das relações interpessoais que o processo constrói. Parece-me um desafio interessante trazer ao modo financiado um pouco do espírito livre e leve do estar junto e estar bem do nosso processo inicial. Quero tentar fazer isso no futuro.

Por fim, outros filmes (Como Era Gostoso Meu Cafuçu/2015 e Primavera/2017) não tiveram financiamento externo e contaram somente conosco na equipe técnica, mas por questões específicas (atores convidados, disponibilidade limitada de alguns de nós) tiveram um cronograma apertado e, logo, um processo de produção cansativo também. Enfim, já não éramos mais simples estudantes de pós-graduação bolsistas (sdds Lula), tínhamos nossos empregos e tudo conspirava para uma experiência cronometrada e com vistas ao resultado, ou seja, o capitalismo ele próprio. Certamente após uma revolução social-anarquista poderemos reencontrar o paraíso perdido.

Fábio: O rodízio de funções e a singularidade do método (no sentido de que cada modo de filmar atenda, na medida do possível, ao que o projeto pede) é uma escolha, mas é também fruto das circunstâncias. Quando pensei em Primavera, eu desejava uma lógica de imersão da equipe numa casa, trabalhando sem cronograma, brincando com as cenas, enfim, queria muito que minha primeira experiência de direção tivesse algo da balbúrdia dos filmes mais antigos do coletivo. No fim das contas, quando ele foi filmado eu já morava muito longe de Recife, todo mundo estava bem atarefado, então foi preciso entrar na lógica das ordens do dia super condensadas, com vários planos filmados num mesmo turno e atendendo a uma decupagem prévia rigorosa. Ou seja, dos primeiros tempos Primavera manteve a precariedade (orçamento virtualmente zero, o que na real era o que eu queria também, pra não me sentir obrigado a nada), mas sem a disponibilidade de tempo. O resultado foi uma negociação entre esses fatores, com seus ganhos e perdas.

Rodrigo: Hmmm… pensando aqui, Mama tinha muito de improviso, de uma vontade de resolver uma obsessão coletiva através do filme, uma obsessão que já tinha sido expressada de diversas formas absurdas antes, mas que nunca se resolvia de fato e nos deixava um pouco no limbo da repetição da mesma piada. Acho que fazer o filme foi como exorcizar essa energia, fechar o ciclo de risadas exauridas e no final esse improviso foi incorporado e dirigido por André. Estudo em Vermelho tinha um planejamento, acredito que foi o primeiro que rolou uma sistematização de debates sobre a ideia por e-mail, sobre os textos que seriam lidos pelo personagem professoral, pelas locações, pelas cenas, pela lógica de filmagem mesmo. A coisa de estudar o clipe de Kate Bush, pegar a letra, decupar os planos, Chico ensaiar muito para performar todos os movimentos e gestual. O curta nasceu de uma obsessão pessoal de Chico, mas com o tempo ganhou um corpo expandido, entrou no embate entre controle e libertação de corpos, entre alta e baixa cultura, filme de cinema, filme para internet e tantas outras coisas, até hoje provocando interpretações incríveis quando passo para as minhas turmas.

Casa Forte foi mais simples, eu simultaneamente fiz um mapa para filmar as fachadas dos prédios e tinha escrito os textos para serem gravados. Convidei Thales e Mário, fizemos juntos ajustes nos textos e depois gravamos. Daí fomos originalmente filmar na casa que tinha sido de Gilberto Freyre, mas meio que deu tudo errado, acho que também porque nem tínhamos olhado locação, nem nada, eu não tinha ensaiado com os meninos, eu também não tinha experiência de direção, acho que fiquei meio esperando as coisas acontecerem sozinhas. Não usamos nada do que filmamos desse dia, mas pessoalmente pra mim foi muito massa ter tido essa diária que deu tudo errado, que eu não sabia bem o que fazer, porque me fez visualizar direitinho o que eu precisava, o que eu queria em termos de imagem e onde eu queria filmar isso. Daí eu conhecia esse lugar, o Açude do Prata, já tinha ido lá uma vez, esquematizei todos os planos bem direitinho e fomos lá filmar na cara e na coragem, porque o acesso é restrito, daí a gente teve que pular o muro e se virar nos trinta. Mas foi incrível, porque deu tudo muito certo, acho que usei praticamente todos os planos que filmamos. Aproveitamos que já estávamos lá e rolou até de fazer um plano pra Virgindade. Quando peguei o material, sentei pra montar e só parei com o filme pronto.

Como Era Gostoso Meu Cafuçu foi bem mais difícil de fazer por vários motivos. Primeiro porque tinha som direto em lugares abertos, não controlados, excessivamente barulhentos. Lembro que até tínhamos chamado alguém para fazer o som da primeira cena, mas na hora não rolou e improvisamos colocando um gravador de som na parada de ônibus, que captou as conversas de maneira muito precária. Eu assumi o som assim, fiz um picotado na edição que funcionou bem e amei que alguém falou que era uma referência ao som ruim dos filmes brasileiros da pornochanchada que estavam sendo parafraseados nas marquises do cinema pornô. Leitura perfeita e precisa. Nas outras cenas, não tivemos tantos problemas com isso. Acho que a outra grande dificuldade é que o filme se passa em uma tarde/noite, tem toda uma continuidade, tem um trabalho de construção de cena mais clássica, mas as cenas foram gravadas com algumas semanas de diferença. Tudo isso demandou um adicional de pensamento sobre mise-en-scène em termos de tempo, espaço, planos, figurino, encenação, arte, som. E, por fim, tinha questões de produção/direção que precisavam de muito diálogo, para negociar as filmagens com o pessoal do cinema pornô, a cena de nudez, o aluguel do espaço onde a cena final foi filmada, o empréstimo de um apartamento para a cena da festa, enfim.

André Antônio: Em Canto de Outono/2014, que fiz quando morei no Rio de Janeiro em 2013, os meninos participaram apenas remotamente através de trocas de e-mail e opinando sobre os cortes. Com a ajuda de amigos do Rio, eu filmei esse curta em duas noites. Foi bem gostoso e aprendi horrores porque eu mesmo dirigi, fiz a arte, montei. Foi uma familiarização bem intensa com essas etapas de trabalho e seus resultados. Em A Seita, que teve grana do Funcultura, edital aqui de Pernambuco, a gente se juntou com as meninas da Ponte Produtoras, Dora Amorim, Julia Machado e Thaís Vidal. Elas trouxeram um desenho de produção mais profissional pro projeto e geriram uma equipe bem maior do que a gente tava acostumado. O desafio foi manter o espírito e a liberdade das coisas que fizemos antes nesse novo contexto mais rigidamente hierarquizado e organizado.

Há também alguns filmes que vieram de parcerias com artistas de fora do coletivo. Tem os casos onde a Surto & Deslumbramento entra como parceira para a concretização/finalização das obras. Por exemplo: Metrópole(2013) curta de Sosha que fotografamos e montamos, e Afetadas (2021), de JEAN, que é fotógrafe da cena cuir de música eletrônica aqui em Recife. Elu tinha esses registros que queria transformar em filme, daí eu assinei a montagem. Mas tem também os casos onde outros artistas nos trouxeram a possibilidade de um encontro para produzir algo novo juntos. Foi o caso do pintor Ramonn Vieitez, que quis trocar com a gente por ocasião de uma exposição individual dele e aí nasceu o Delicate Creatures (2015). Ramonn confeccionou os lambe-lambes e o mural do quarto de A Seita, então foi um desdobramento natural do nosso diálogo. E em 2017 ganhamos o presente de poder fazer algo com as nossas ídolas Leona Vingativa e Aleijada Hipócrita. Álvaro Andrade, diretor da série documental Cine Barato, trouxe as duas pra Recife. A ideia dele era gravar um episódio da série onde elas e nós faríamos em colaboração um novo filme para a icônica saga delas. Daí resultou o Leona Assassina Vingativa 4: Atrack em Paris(2017). Acho que fazer isso foi uma das experiências mais incríveis que tivemos enquanto coletivo.

Chico: Tem também o caso de Alexandre Figueirôa, com quem firmamos parceria desde o início. Ele tinha esse doc não finalizado sobre a transformista recifense Elza Show (Eternamente Elza, de 2013) que eu propus finalizarmos e lançarmos. Depois desse primeiro trabalho juntos, ele vem produzindo material sobre personalidades do mundo LGBT recifense de outrora (Kibe Lanches, de 2017, Piu Piu, de 2019, e Consuelá, a ser lançado) e sempre conta conosco na etapa de finalização (e algumas vezes na produção em si). Sinto que é uma parceria super harmoniosa, porque junta uma pegada mais jornalística e historiadora dele com liberdade total pra nós encontrarmos um formato final justo e interessante pro material.

Eternamente Elza

Felipe André: Tenho alguma curiosidade sobre a maneira como o S&D se percebia posicionado dentro do cinema pernambucano. Pergunto isso porque em certa medida nós começamos a fazer filmes mais ou menos ao mesmo tempo, e ainda que as referências fossem distintas, a escala e os processos de trabalho eram muito parecidos, totalmente artesanais numa época em que o cinema de Recife se afirmou e cristalizou como um ambiente de trabalho, um espaço onde existia a possibilidade de circular dinheiro. Me parece, até hoje, que de formas muito estranhas esse amadorismo era tão rechaçado quanto aplaudido.

André: Essa questão da escala pequena é interessante. Lembro de sentir muito esse discurso crescer ao longo de vários anos trabalhando como supervisor técnico no Janela de Cinema. Nas filas antes das sessões, nas conversas de bares, eu ouvia: “agora não tem mais desculpa: tem curso superior de cinema no Brasil, tem um monte de edital público, tá rolando destaque em festivais estrangeiros e a distribuição nas salas de exibição tá melhorando. Não temos mais paciência para a precariedade”. É trágico ver como muito rapidamente, hoje, a crise no incentivo público e na distribuição já está de volta à paisagem.

Mas no nosso caso, acredito que a questão se desenhou assim: nenhum de nós fez faculdade de cinema (simplesmente não existia quando fizemos graduação). E num curso de cinema você pode experimentar nos trabalhos das disciplinas e no TCC, você pode ir entendendo caminhos de expressão, ir construindo um olhar, você pode ir errando e acertando na prática. E isso é fundamental. Então quando começamos a fazer filmes juntos na Surto foi muito natural que aproveitássemos as facilidades da tecnologia digital pra brincar com as ideias que surgiam e concretizar nossos projetos. Pra mim, isso foi bem legal como construção de um caminho antes de submeter um projeto a edital público (que foi o A Seita).

Conheço pessoas que ficam esperando ter roteiro aprovado em edital para fazerem um primeiro filme. E quando rola, vão lá dirigir sem nunca ter experimentado encenar nada nem ver como imagens que você fez podem se juntar em algo minimamente coeso na hora da montagem. Gata, caso existam condições pra isso, chama umas amigas, pede emprestada uma câmera digital ou usa um celular e baixa um programa de edição. Podem surgir coisas interessantes daí.

Eu acredito que não devemos nem voltar a um discurso romântico datado que opõe cinema precário feito nas margens a cinema comercial de mercado e nem ignorar que a imagem digital não cansa, o tempo todo, de desafiar nossos pressupostos sobre o que é uma obra “profissional” ou “bem feita”. Todo dia artistas lançam imagens incríveis no instagram – imagens que não custaram quase nada e que foram feitas a pouquíssimas mãos. Um bom filme não precisa ser uma megaprodução com desenho de equipe hollywoodiano. O cinema hoje está contaminado por outras linguagens, por outros modos de fazer. Às vezes o público se instiga mais com uma novidade arriscada do que com uma fórmula segura.

Rodrigo: Eu concordo com André, mas ao mesmo tempo fico pensando algumas coisas sobre esse processo artesanal e de como essa ideia muda na nossa cabeça. No ensino médio, eu participei da realização de um curta para a matéria de filosofia (uma história livremente inspirada no Manifesto Comunista!) e eu sequer via aquilo como um filme, tinha uma coisa do capataz da fábrica usar a máscara de Jason, sei lá. Era bem tosco. Depois, lembro que eu achava cinema uma coisa muito distante quando entrei na universidade, uma coisa inalcançável no campo da feitura, que minha relação só seria possível no máximo pela crítica ali escondida no meu blog e olhe lá.

Daí isso mudou numa sessão do Cineclube Barravento com curtas realizados por estudantes da UFPE e pela primeira vez visualizei que tinham pessoas ali que estavam no mesmo lugar que eu fazendo filmes e que isso também era cinema. Sinto que uma porta se abriu ali, sabe? Eu comecei a escrever roteiros mais livremente na graduação, cheguei até montar equipes de amigos para fazer dois filmes, mas terminou nunca rolando e hoje eu sinceramente sinto que foi melhor assim, porque tive um tempo de maturar muita coisa, organizando cineclube, escrevendo sobre cinema – e nesse momento inclusive escrevendo sobre cinema pernambucano, me situando um pouco, criando umas polêmicas aqui e acolá – e aí sim acho que comecei a esboçar um posicionamento.

Não sinto que deixei de fazer nesse período porque teria um caráter mais artesanal, não era isso. Mas naquela coisa de não saber bem, as oportunidades passavam, as equipes se desfaziam e depois entendi que precisava organizar melhor as ideias, entender melhor a combinatória de imagens possíveis, saber mesmo o que eu estava querendo propor e com isso quiçá perder o medo de colocar a cara no sol. Acho que isso de me situar, de entender que existia uma cena, que existia uma história do cinema local, da mesma forma que abria minha cabeça me deixava também mais inseguro. Rolou um gap aí de alguns anos que eu tava muito mergulhado nesse universo da crítica, do cineclubismo, da curadoria, da cinefilia mesmo e de outras experiências diversas até que Chico foi bem importante para bater a real uma hora e dizer: e aí, gata, chegou a hora de fazer!

Depois de Casa Forte e Como Era Gostoso Meu Cafuçu, eu comecei um processo de escrever roteiros mais longos, super narrativos e mais complexos de serem viabilizados e que nunca foram filmados, que talvez realmente precisem de uma grana para serem feitos (um deles se chama A Maçã Nua, está sendo adaptado para HQ e é uma reescrita dos dois roteiros não filmados da época da graduação). Mas por outro lado, desde 2017 e em especial a partir de 2018 encontrei no celular a minha ferramenta principal de criação audiovisual, o que me levou de volta a essa estrutura artesanal por um viés novo e particularmente pra mim instigante demais.

Nesse meio tempo, eu produzi alguns milhares de vídeos, que foram postados ou não nos meus stories e no meu feed, mas também passei a atuar na página Saquinho de Lixo. Sou integrante do Saquinho desde o início e, fora todo esse universo dos memes que daria outra conversa, no campo artístico oficial produzimos a videoinstalação Memelito (2019), exibida na exposição À Nordeste, no Sesc 24 de Maio em São Paulo e fizemos outra que vai estrear na reabertura do Museu da Língua Portuguesa. Mais recentemente, eu tenho tentado organizar minimamente essa vasta produção de vídeos soltos realizados nesses últimos três anos a fim de propor filmes mais fechados, como aconteceu agora com meu curta novo O nascimento de Helena (a ser lançado).

Fábio: Complementando um pouco o que André e Rodrigo já falaram: sim, acho que rolou esse entendimento de que o erro não apenas era algo que valeria a pena ser acolhido, como também era inevitável, pois não tínhamos passado por uma formação sistemática, institucionalizada, nem nada do tipo. Tivemos que partir do pressuposto de que não ia rolar de queimar etapas, então era preciso meter a cara. Tomar o coletivo como um campo de testes.

Além disso, embora a maior parte da produção do coletivo até agora possa ser enquadrada, grosso modo, nas caixinhas de curta e longa-metragem, acho que rolou algo nesse posicionamento a que você se refere, Felipe, que foi o fato de não partir do pressuposto de que o objetivo era fazer “cinema”. Nesse sentido, acho significativo que, como Chico já falou, a primeira ideia que surgiu no grupo foi a de um videoclipe delirante. E mesmo os primeiros projetos efetivamente realizados (Mama e Estudo em Vermelho), ainda que possam ser categorizados como curtas, penso que não se encaixam numa concepção/estrutura tradicional de curta-metragem, nem foram pensados inicialmente de olho no circuito de festivais. Eles são frutos de um entusiasmo e um diálogo muito forte com a internet e, mais especificamente, com o Youtube, tanto que foram lançados aí. E acho que nem se tratou somente de ter o Youtube como plataforma alternativa de distribuição: a própria maneira de conectar referências em ambos tem muito a ver, acho, com o modo de funcionamento e as dinâmicas combinatórias que a circulação audiovisual na internet propicia.

Em suma, além do como fazer (essa maneira artesanal, esse amadorismo), tem o que a gente entendia que estava fazendo, e que era algo muitas vezes pouco categorizável – audiovisual num sentido mais amplo. Ao longo do tempo alguns projetos continuaram assim, como é o caso de um trabalho de André chamado Sonho de Ouro, ou o Delicate Creatures, feito com e a partir de uma exposição de Ramonn Vieitez. Eu vejo esses vídeos e sinto que eles não encaixam no que geralmente se entende como produção de cinema em curta-metragem.

Chico: E só pra arrematar, ainda que estivéssemos trabalhando de forma precária ou amadora em relação ao cinema oficial daqui, sinto que nunca foi intenção nos limitar a uma estética que dialogasse com o precário. Em alguns momentos travamos sim esse diálogo (a Kate Bush mal diagramada, por exemplo), mas na maior parte do que fizemos, a ideia era atingir a imagem/som que a ideia pedia inicialmente. O que muitas vezes nos fez bater contra nossas próprias limitações (cagamos completamente na captação de som em um Como Era Gostoso Meu Cafuçu eminentemente calcado no diálogo, por exemplo, o que foi um problemaço pra a finalização). Mas essa ideia do que seria uma “imagem de qualidade” nunca foi algo que determinou nossas escolhas. Pelo contrário, sempre buscamos conscientemente a liberdade para levar os roteiros em direção às imagens e sons que eles pediam, sem respeito a um mapa já consolidado das formas audiovisuais e seus usos.

Como Era Gostoso Meu Cafuçu

Hermano: Surto e Deslumbramento é um dos coletivos queers mais relevantes do cinema brasileiro hoje. Os seus filmes, contudo, contrariam as expectativas mais óbvias do que deveria ser um cinema político. Eu queria saber, em particular, como vocês elaboram a tensão entre política e frivolidade.

Chico: Hermano, agradeço pelas palavras bondosas. Certamente aquecem o coração desta velha senhora desiludida.

André: Um filme político construído de maneira didática, edificante e maniqueísta não ressoa nas nossas sensibilidades. Nossos trabalhos são diferentes entre si, mas acredito que essa é uma coisa que temos em comum.

Muitas vezes, as pessoas querem ver esse tipo de filme político. Para aprender uma lição, para conhecer mais sobre determinado assunto urgente e se emocionar a partir de uma abordagem humanista desse assunto. Os filmes que se propõem a essa missão normalmente se estruturam de forma grave, se levando muito a sério. Existe, eu diria, um ar heroico neles: “vejam, olhem para este importantíssimo assunto político”.

E tudo bem. Eu só às vezes acho que existe o perigo de uma complacência entre essa estética e uma plateia formada por pessoas privilegiadas. É confortável achar que estou me humanizando e aprendendo política assistindo a uma sessão de 1h30 num festival de cinema independente. Depois vou tomar cerveja, conversar sobre como aquele filme é “necessário, urgente, incontornável” e tudo segue como antes. O engraçado é que, quando um filme parece não se levar a sério, aí sim isso incomoda essa plateia.

Várias características dos nossos filmes podem ser colocadas debaixo desse guarda-chuva, “frivolidade”: o humor, a ambiguidade, o artifício (na direção de arte, no figurino, na encenação, na decupagem, na montagem). É uma espécie de postura que cria a obra e ao mesmo tempo deixa você se perguntando: o que se quis dizer realmente com isso? Ou foi só uma brincadeira?

Desse ponto de vista, a frivolidade pode diluir a complacência, por não entregar de bandeja uma lição, uma moral, um código de julgamento. Ela não vai dar a você aquela sensação de “agora sei qual é o lado do bem e o lado do mal”. Quem assiste tem de ficar, portanto, mais ativo, tem de elaborar suas próprias respostas. E o filme, da sua parte, se assume mais honestamente como um ponto de vista subjetivo, limitado, construído, incompleto. Muitos espectadores querem um filme-monumento. Então fazer um filme anti-monumental pode ser mais político do que fazer um filme com um tema muito “necessário” mas que esteticamente apenas reforça nossas velhas categorias de entendimento narrativo, nossas velhas formas de perceber e de sentir.

Em arte, o não se levar a sério não é novo. O texto de Susan Sontag “Notas sobre o camp” é de 1964 e nele ela fala sobre como isso pode ser encontrado nos vários maneirismos do passado e na atitude de deboche presente nas comunidades queer marginalizadas. A questão é que o senso comum associa instantaneamente essa postura com o não-político, com uma fuga da realidade, com algo de inautêntico. Mas o frívolo pode ser político, pode ser tocante. Uma estética artificial não significa que se cortou as relações com o real, mas que se estabeleceu outros vínculos com ele. Eu lembro que na pré de A Seita, algumas pessoas da equipe sugeriram efeitos digitais de pós para a construção da Recife em ruínas, da cidade futurista. Mas a graça era termos um registro totalmente documental do Recife: a cidade real já era a distopia (e também nem tínhamos orçamento pra isso de qualquer maneira, kkkk).

Esses dias estava conversando com amigos sobre os filmes de Bertrand Mandico e Yann Gonzalez, que sempre estão em Cannes e têm despertado atenção no cinema contemporâneo. De maneira muito aberta, nos filmes e em entrevistas, ambos defendem o não se levar a sério, o olhar perverso, a ambiguidade, o artifício. E as pessoas acham muito massa, acham muito “cinema francês”, lembram de Cocteau e de Demy. Enquanto que nós, latino-americanos, temos que fazer sociologia rasa nos nossos roteiros e nos restringir ao estilo do realismo social na hora de encenar. Acho que temos que questionar essa forma colonizadora de pensar. Às vezes, os festivais gringos só querem de nós uma vitrine chic de miséria enquanto o cinema feito lá por eles pode explorar o experimental, o deboche e o lúdico.

Fábio: Não é difícil entender os motivos de certa tendência a pautar o cinema pelo desejo de representatividade, e eles são legítimos. Porém, estão longe de esgotar as razões que levam as pessoas a fazerem/verem filmes. Além disso, essa demanda por “ver-se representado/a” muito rapidamente resvala para “ver o que julgamos correto, relevante, necessário”, como disse André. Existem alguns problemas aí. Primeiramente, parece que as pessoas começam a querer consertar o mundo por meio da imagem e, desse modo, ela vira uma espécie de substitutivo. O cinema passa a mostrar como as coisas “devem ser”. Nem sei se dá pra chamar esse tipo de estética de realista; é prescritiva mesmo. É possível perceber o fundo moral (moralista até) que norteia essa lógica: representação certa/errada, boa/ruim, edificante/degradante. Em segundo lugar: quem, afinal, se vê representado em tanta correção? O cinema vira uma máquina superegóica. Não por acaso o sentimento de insatisfação acaba se tornando muitas vezes a tônica na recepção. Afinal, uma das características dessa lógica é que ela nunca se esgota, nunca se satisfaz. Nunca se é correto o bastante, inclusivo o bastante.

Uma coisa que percebo nos filmes da gente é que as falhas, imperfeições e sobretudo os desejos (que são tudo, menos corretos e coerentes) alimentam os filmes. O cinema é um meio incrível para elaborar a negatividade, as contradições, as frustrações, e mesmo quando se trata de ser afirmativo, o que entendemos como afirmativo não é necessariamente o “bem visto” e o “bom gosto”.

Essas questões se colocam, por vezes, de maneiras bem concretas. Quando eu estava trabalhando no roteiro de Primavera, houve um momento em que me questionei se fazia sentido, em pleno 2015/2016, retomar uma obsessão bicha por imagens de María Félix, Vivien Leigh… Num momento em que a visibilidade de sujeitos LGBT no audiovisual já era, sem dúvida, muito mais vasta, por que insistir na prática desviante de ficar fruindo filmes clássicos que não têm um lugar para nós, no sentido de que não nos “representam”? Bem, por que não? O fascínio por tudo que diz respeito ao mundo deliberadamente artificial das divas é um tema caro ao imaginário gay, assim como a ambivalência fundante da figura do homossexual que se instala em um universo povoado por signos de hiperfeminilidade. E se isso é problemático (porque reforça uma feminilidade idealizada), no entanto é uma questão que não está esgotada, não importando quão desconstruídos a gente acredite ser. Em outras palavras, eu encontrei um “problema” que passou a ser a própria razão de insistir no filme. Ele me ajudou a pensar meu modo de fruir certas imagens a partir de uma espécie de laço intergeracional, da história de certas sensibilidades, pensando em sujeitos que fazem leituras a contrapelo de imagens normativas. No fim das contas, o arquétipo da bicha bovarista pode não ser o mais progressista para a década de 2010, e nem se tratou de afirmar que fosse. Mas decidi que o anacronismo era um valor que eu estava disposto a defender.

Rodrigo: As frívolas arrasam!

Primavera

Juliano: Hoje é mais nítido notar um certo gosto por uma exploração por certos limites morais, uma espécie de ética de se tentar ir em zonas incômodas, ambíguas, arriscadas, com os filmes. Dificilmente conseguimos tirar da experiência dos filmes de vocês um enunciado. Isso é um programa ético prévio? Sai naturalmente dessa maneira? São filmes poucos programáticos, eu diria. E isso se tornou algo menos frequente, especialmente se falamos sobre políticas e desobediências de gênero no cinema. Isso é um parâmetro para vocês?

Chico: Acho que eu sempre tentei escapar de algumas armadilhas de certo cinema militante ou certa postura moral da esquerda. Percebo uma tendência em pessoas que transitam por esses campos de superioridade moral, de estar “do lado certo da história”, o que traz junto uma certeza muito grande sobre o mundo e como ele se organiza, entre o certo e o errado, o bem e o mal. Isso de alguma forma se reflete no que você cita como “um enunciado” de um filme, uma ideia clara que um filme defende. Obviamente que transito na esquerda e que o exercício da militância faz parte da minha vida (especialmente no âmbito do meu trabalho de docência e gestão em universidade pública). Mas no caso dos filmes, sinto que naturalmente busco trilhar o caminho de bagunçar essas certezas sobre o mundo. No caso de Estudo em Vermelho, essa operação fazia parte da proposta inicial do filme: brincar com as divisões e hierarquias da cultura, mudar tudo de lugar, debochar da figura do intelectual que propõe e impõe essa organização. No caso de Virgindade, havia a ideia de fugir dos lugares comuns das políticas de representação de certo cinema gay, trazer os incômodos e contradições presentes nas minhas próprias vivências (sexualidade infantil, micropolíticas de resistência, leveza e humor frente às interdições).

Fabio: Não há um programa ético prévio, no sentido de que a gente tenha pactuado que seria assim. Porém, entre integrantes com estéticas em certa medida tão distintas, talvez um dos pontos de convergência seja justamente o que a gente entende que um filme “faz”, em termos políticos. Há uma grande dose de desinteresse pela defesa de um enunciado prévio colocado de cima para baixo nos projetos.

Não se trata de minimizar as pautas e debates que se dão num contexto social e político ampliado, mas de seguir no audiovisual um caminho que não é o de um espelhamento do modus operandi da política institucional, da militância, da lógica da filiação. Certamente, não tem a ver com tematização, apresentação de pautas, muito menos com “conscientização”, seja lá o que isso queira dizer. Questionar a relevância e a seriedade como critérios para definir valor estético pode ser muito mais produtivo. É bizarro como o humor frequentemente faz com que obras sejam tomadas como menores. Ainda mais se você não faz “comédia”, entendida como gênero com códigos bem definidos, mas insere o humor ali onde ele não é esperado, onde ele destoa.

Isso não significa que não apresentemos pautas de maneira categórica onde sentimos que verdadeiramente há uma margem de intervenção mais direta nesse sentido. Como professor, por exemplo, eu me vejo enunciando muito mais diretamente certas questões. Nesse ponto, me identifico muito com o que Chico diz aí acima. E não é que a docência suscite maior propensão ao exercício dessa ou daquela política, e sim porque, diante da heterogeneidade dos grupos e sujeitos com os quais tenho contato na universidade, sinto que faz sentido apresentar certos discursos sem que isso signifique “chover no molhado”. E, ainda assim, o apreço pela ambivalência continua sendo um elemento norteador, sempre.

André: Eu fiquei pensando muito sobre essas questões no filme que acabamos de finalizar, Vênus de Nyke, que é sobre a minha experiência com certas práticas sexuais masoquistas, perversas e fetichistas. Eu tinha duas grandes preocupações nesse projeto: 1. Fazer com que o jogo erótico da dominação/submissão abrisse possibilidades para o sentir que estariam totalmente bloqueadas se olhássemos as coisas apenas a partir do binário moral agressor/vítima e 2. Não fazer um filme palatável, discreto, “sensível”, ou seja, confortável para uma plateia baunilha, indo pelo contrário dialogar com a pornografia, presenteando sensorialmente quem na plateia venha a compartilhar daquele tesão. Em suma, se houve um programa, foi o de não “higienizar” o tema, que é em si contraditório, elusivo, cheio de tensões e pontas não resolvidas.

Rodrigo: Também fiquei pensando em algo parecido no meu filme mais recente O Nascimento de Helena (a ser lançado). Mostrei para um amigo que não é do cinema, ele aparentemente gostou do filme, mas ficou preocupado, falou sobre possível cancelamento, que precisava ter coragem para tocar “nesses temas”. A narração do filme basicamente parte de desejos/relatos de transar com homens casados que vivem uma vida hétero e que são pais. A gente conversou bastante, eu curti muito como o filme o afetou no sentido de falar sobre permissividade e perversão nas imagens, sobre limites do que expressar na tela, sobre fetiches pessoais, sobre narração declamada em contraponto ao peso do que é narrado. Eu acho que sempre passei por isso com os meus filmes e por vezes me vi refazendo/atualizando meu discurso no caminho depois do filme pronto.

Estudo em Vermelho

Juliano: Queria que vocês comentassem como elaboram as questões raciais na obra de vocês. Em Casa Forte é evidentemente central, e também em Como Era Gostoso Meu Cafuçu. Me parece uma forma bem distinta de tratar sobre essas tensões que formam o Brasil. Gostaria que comentassem um pouco como vocês trabalham isso nos filmes, não só nesses citados.

Rodrigo: Acredito que as questões raciais surgiram nos meus filmes de maneira muito instintiva, de uma sistemática observação do mundo e de uma fabulação a partir de histórias reais. Mas digo instintiva também porque eu não tinha minimamente uma imersão teórica ou acadêmica em temas como colonialidade, colonialismo, decolonial, racismo estrutural e recreativo naquele período e eu sou branco. Eu tinha suspeitas, eu estava tateando algumas ideias e impressões. Mas sem dúvida a experiência de ter trabalhado na redação de um jornal na época influenciou demais, porque possibilitou um deslocamento a partir de entrada em espaços, vendo o funcionamento provinciano e colonial de algumas relações de poder. Lembro da vez que fui cobrir o lançamento de um livro na Academia Pernambucana de Letras de um advogado integrante da família que detém o poder político no estado e foi um show de horrores. Tal hora um dos literatos puxou o fotógrafo que tava trabalhando comigo e ordenou de maneira muito bizarra, enquanto apertava o ombro de um jovem amigo da família: “tire uma foto, meu rapaz, a foto de um imortal – apontando para si mesmo – e um mortal”. A última imagem desse dia foi com a herdeira de outra família local, especialista em Gilberto Freyre, chegando ao evento de sobretudo preto e luvas em pleno verão recifense.

Casa Forte pra mim resumia tudo isso e muito do que eu passei a observar como modus operandi da cidade quando saí da toca e comecei a circular em mais espaços. É o nome de um bairro de classe média alta do Recife, onde vive uma certa ~elite armorial, esclarecida, de esquerda, cultural~, e para mim se revelou como símbolo de muita coisa, como o bairro que de maneira mais chocante evidencia marcas do período colonial na sociedade contemporânea. Isso pode ser claramente notado pela quantidade de nomes de prédios e afins da região, que resgatam esse período transformando expressões bizarras, meio nostálgicas, como “Triunfo Colonial” ou “Vitória Colonial”, em símbolos de status quo dessa classe abastada. Lá também se localizava um dos primeiros engenhos construídos na cidade.

Antes de tudo, queria fazer um mapeamento dessa presença, porque esses nomes são metonímicos de situações e relações muito mais profundas que se passam nesse lugar, um simbolismo meio cínico que já tinha me chamado a atenção antes. É uma espécie de ponta do iceberg que esconde sua verdadeira cara. Como muita gente nunca tinha reparado nessa recorrência, senti que era preciso revelar pelo método da insistência: das placas, das palavras, das histórias, dos versos da música. Nas sessões públicas de Casa Forte que estive presente era sempre meio estranho ver o público gargalhando no início para assumir um gosto amargo / melancólico no final. A terceira parte, aliás, nasceu primeiro porque amo aquela música, mas também porque acreditava que cabia uma tentativa de representação lúdica da despedida do homem negro da Casa Grande em ruínas. Dessa estrutura fadada à ruína.

Mas eu percebia que se eu só ficasse nas placas dos prédios, o filme ficaria muito fácil, muito didático, provavelmente seria visto como mais um “filme de prédio da recente produção pernambucana”, daí resolvi escrever dois depoimentos baseados em situações e histórias que li, vi, vivi e ouvi dizer, passando a limpo muita coisa que talvez eu não me desse conta até a realização efetiva do filme e que tornasse a colocação do curta mais contundente, atravessando marcadores raciais e relacionando de alguma maneira concepções de fetiche bem distintas (afinal esse culto aos nomes coloniais me parecia de ordem social extremamente fetichista também).

Gravei o áudio com os meninos, de maneira que soasse o mais documental possível, criando ali um ruído entre o real e o ficcional (a história citada do objeto “feito por escravos” e guardado pela família como troféu em casa, por exemplo, eu li num jornal recifense de domingo, numa matéria dessas bem cotidiano, que entra na casa das pessoas ricas para mostrar como é). No texto, temos primeiro um homem branco – na minha visão, um senhorzinho moderno morador de Casa Forte – que revela desejos fetichistas/racistas por negros na senzala; e, segundo, um homem negro que hoje desmobilizaria esse desejo ao supostamente inverter a relação de dominação do olhar branco.

Depois do filme pronto, percebi que esse ruído se multiplicou, pessoas pensaram que o filme era uma espécie de depoimento meu (as vozes realmente se parecem!) ou mesmo um documentário, tanto pela estrutura diegética, como pelo dado que tinha trabalhado com um casal real tanto para gravar as vozes como para a sequência final. Isso me deixou bem curioso e temeroso, porque foi como abrir algumas portas que não estava esperando dentro do filme e desde a época do lançamento voltei muitas vezes para esse filme e como ele trabalhava ali relações entre desejo, afeto, poder, olhar branco e o corpo negro.

A ambiguidade presente em Casa Forte e mais ainda em Como Era Gostoso Meu Cafuçu também rendeu muitas acusações, de que eu estava reforçando a hiperssexualização do corpo negro, de que eram filmes racistas, de que estava propagando a cultura do estupro, o que em algum momento me deixou muito inseguro em relação ao que eu estava fazendo. Depois eu me dei conta que esse era o risco (do real?) de passar por esses temas tão mal resolvidos em nossa sociedade por meio de um discurso ambíguo e que talvez não fosse exatamente decifrável por conta da ironia, mas que eu me identificava, pois não queria e não me via ensinando nada a ninguém, não queria me ver de fora elaborando as questões com ar de superioridade e nem me via nessa posição. No final, eu me dei conta que eram filmes que estavam numa fronteira trabalhando com e sobre tensões e contradições de uma herança colonial e que a maneira de me implicar nisso era não tirar o meu corpo fora e sim me inserir como parte disso tudo.

Como Era Gostoso Meu Cafuçu também tinha um texto baseado em coisas que li, vi, vivi ou ouvi dizer (a história da festa das bichas super esclarecidas e militantes que chamaram o grupo penetra de “bonde da periferia” e o boy de “mulatito” também são reais). Mas aí acho que nesse caso tinha também essa vontade de construir uma protagonista (a bicha tagarela!), que faria comentários sobre tudo e todos, que faria as pessoas rirem e concordarem horrores, mas que também ali no meio, entre uma risada e outra, ela estaria reproduzindo uma série de questões problemáticas. Mais uma vez a contradição.

Esse filme foi bem mais difícil de defender (ainda que hoje eu tenha uma relação super bem resolvida com ele, eu gosto até mais do que gostava na época), eu nem cheguei a circular com ele nos festivais, porque estava fora do país fazendo sanduíche do doutorado (sdds Dilma). Acho que eu só fui para Tiradentes com ele e terminada a sessão, lembro que alguns amigos e conhecidos vieram bater boca, alguns defendendo o filme, outros achando absurdo, nos dois anos seguintes na internet rolaram alguns cancelamentos e mesmo em alguns lugares que eu ia em 2018, o debate sobre esse filme insistia em voltar. E sempre rolava gente defendendo e gente acusando, às vezes eu ficava só olhando as pessoas batendo boca.

De toda forma, as tensões nasciam por muitas coisas, às vezes bem diferentes, pelo protagonista que na ânsia de falar mal passava a fronteira do permitido, pelo próprio título do filme, pelos títulos nas marquises do cinema pornô, pelas situações relatadas e a forma meio VRAAA como eram relatadas, sem talvez todo cuidado crítico necessário, sem serem mastigadas e posicionadas e especialmente pela última cena (que foi acusada de propagar a cultura do estupro). Aliás, sobre essa cena, que eu vejo e sempre vi como um plano-fantasia já que o regime do filme se transforma ali completamente inclusive com a trilha de Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971), uma fantasia que também está presente nesses espaços que são os cinemas pornôs, o cinema em geral, originalmente no roteiro seria com um engenheiro do projeto Novo Recife (em 2014 ainda estávamos 24h pensando em especulação imobiliária no Recife!!). Mas aí eu sentia que o filme perderia a ambiguidade, que as pessoas iriam simplesmente vibrar com aquele final e eu sinto que eu gosto que as pessoas fiquem um pouco desconfortáveis nos finais dos meus filmes, queria que fosse mais incerto, mais confuso, que as pessoas pudessem até pensar “hmmm acho que isso aí não tá muito certo não”. E acho que rolou, né?

Segurar o turbilhão desse filme depois foi um babado, mas também foi de muito aprendizado, muito mesmo e se hoje tenho uma visão muito mais complexa e trabalhada sobre questões raciais, por outros motivos e vivências, mas tenho que admitir que começou de forma bem instintiva com esses filmes aí.

A Seita

Hermano: Uma tendência do cinema brasileiro contemporâneo que S&D participa e, em grande medida, antecipou é a imaginação futurista distópica – presente especialmente no único longa-metragem do coletivo, A Seita (2015), dirigido por André Antônio. A imaginação distópica praticada pelo filme, contudo, exibe uma sensibilidade bastante singular. A distopia aparece no filme como um estranho objeto de desejo e fascínio. Queria saber como tais questões apareceram para vocês na época de realização do filme e como vocês sentem hoje sua repercussão.

André: Lembro muito de uma vez que Chico e eu estávamos pelo centro caçando prédios em ruínas para a sequência de abertura da Seita e eu perguntei: “será que estamos romantizando a decadência da cidade nesse filme?”. Na época a grande tendência do cinema feito em Recife era falar sobre a especulação imobiliária e filmar a paisagem urbana na chave da denúncia. Várias críticas sobre A Seita que foram escritas na ocasião do lançamento inclusive falavam coisas como: “mais um filme recifense sobre especulação imobiliária”. O que me surpreendeu porque pra mim existia uma distância grande entre o que fizemos e a forma como a questão estava presente nesses outros filmes.

Na Seita tentamos menos abordar a paisagem urbana a partir de um discurso pronto sobre os problemas e soluções para a cidade e mais como uma imersão nas sensações que andar por essas ruínas e ruas degradadas poderia provocar. Quando criança eu morava no bairro de São José, no centro, uma área que, principalmente nos fins de semana, era super deserta. Eu lembro que quando andava por esses lugares eu sentia um fascínio, como que investigando um mistério. No filme, eu quis muito recriar essa atmosfera. Era o objetivo principal, e não refletir sobre o problema do capitalismo predatório na cidade. Na pesquisa de locação fiz questão que boa parte dos lugares que estariam no filme fossem esses mesmos lugares do meu passado afetivo. Inclusive, a escola abandonada que os personagens visitam foi a escola onde realmente estudei. Ou seja, faz muito sentido quando tu falas sobre a distopia como “estranho objeto de desejo e fascínio”. Outro aspecto que, acho, diferencia A Seita dos outros filmes recifenses “urbanos” dessa época é o próprio visual mesmo: a arquitetura e as cores que privilegiamos nas imagens eram bem diferentes dos prédios metálicos e espelhados que as grandes empreiteiras constroem para a classe média-alta da cidade. É outra Recife.

Sobre isso do pioneirismo, é engraçado. Em 2015 eu e Chico fomos para a Mostra de Tiradentes (ele com Virgindade, de 2015, e eu com Canto de Outono, de 2014). Estávamos em plena pré de A Seita. Íamos filmar assim que voltássemos. Queríamos gravar no começo do ano, no verão, porque o filme ia ter esse visual mega iluminado, queríamos o céu bem azul e limpo. Daí, vimos Medo do Escuro (2015),  de Ivo Lopes Araújo e no fim da sessão eu fiquei em completa crise: “fizeram o filme antes da gente!”. Depois, bebendo na festa pós-sessão, comentamos como na verdade os protagonistas dos dois filmes não só eram radicalmente diferentes como também nossa proposta de encenação (tableaux, câmera parada, planos muito longos) era quase o oposto do filme de Ivo. E que era isso: havia coisas que estavam no ar naquele momento e na verdade esse diálogo entre os filmes era algo super instigante. Temos outro projeto de longa distópico, Salomé, um roteiro que concluí em 2018. Captamos o financiamento e pretendíamos filmar em 2019. Mas com a ascensão de Bolsonaro e a crise na Ancine, o dinheiro ficou congelado e tivemos que adiar. E aí chegou a pandemia. Tô num momento de reflexão sobre os rumos desse filme, porque agora estamos vendo uma extensa leva de filmes distópicos né? Não dá pra ignorar uma saturação desse tema.

Sobre a repercussão, é sempre difícil quem faz mensurar esse tipo de coisa. Na época da estreia e circulando por festivais, conversei com pessoas que ficaram muito empolgadas com o filme mas ao mesmo tempo tinha a sensação de que, por um lado, certa parcela do público LGBT esperava algo mais positivo sobre a viadagem, esperava que o filme levantasse de forma mais enfática essa bandeira – e ficou meio desconcertada com aquele personagem entediado, moralmente questionável e com a escolha por aquela encenação fria. Por outro lado, o filme soava definitivamente frívolo para o público hétero fã de um cinema brasileiro eternamente militante. Porém, até hoje, fico sabendo de dissertações, teses e artigos acadêmicos que abordam o filme dentro de corpus os mais diversos e ele também continua integrando a programação de mostras mesmo seis anos depois de ter estreado. Fico feliz e surpreso que continue gerando esses diálogos e interesse.

Rodrigo: Eu estabeleci um diálogo mais direto com essa imaginação futurista distópica idealizando e fazendo a curadoria juntamente com Luís Fernando Moura da Mostra Brasil Distópico que foi realizada no Rio de Janeiro em 2017 e produzida também pela Ponte Produtoras. A proposta era resgatar filmes nacionais que imaginaram futuros sombrios em diferentes épocas e contextos, com o desejo de aproximá-los de nossa própria realidade sensível, assim como de realizações cinematográficas cujo tempo presente se revelava como um horizonte desolador. A mostra nasceu como consequência de inúmeros sonhos apocalípticos que tive entre os anos de 2015 e 2016, que também me instigaram a escrever dois roteiros de longas, A Carta e Trevosas da Tijuca, e esboçar uma obra literária ainda inacabada chamada O mergulho.

Penso um pouco como André sobre a saturação de filmes distópicos na cinematografia nacional recente. Não temos como ignorar isso, especialmente se temos projetos nesse caminho é natural repensarmos como funcionaria essa inserção no gênero, o que estaríamos repetindo, mas na real para mim até fica batendo aquela sensação de que escrevi sobre um futuro recente, mas que agora já pode ser imaginado como passado ou mesmo como um universo paralelo. Ao mesmo tempo, eu fico pensando especificamente nesses dois roteiros e me soam como histórias bem diferentes entre si, A Carta é um terror descarado, já Trevosas vejo como uma espécie de farsa queer. A pandemia certamente influenciou mais a necessidade de reescrita de A Carta, do que necessariamente outros filmes lançados, porque foi um roteiro escrito antes do início da quarentena em dezembro de 2019, mas que trata de uma situação forçada de isolamento social… daí, realmente não tinha como ignorar isso e eu comecei um novo trabalho junto com André para recontextualizar toda a história.

Juliano: O nome do coletivo paródia o nome de dois outros grupos da época (Vurto e Alumbramento). Mas gostaria de saber se, em termos concretos, o trabalho de vocês bebe na fonte do cinema brasileiro do presente ou do passado. Seria possível pensar tentáculos do que vocês fazem em relação ao cinema brasileiro do passado? Há algo que fertiliza o que vocês fazem ou as matrizes vêm de outras paragens?

Chico: Tenho dificuldade de encontrar uma unidade no coletivo, por isso consigo pensar mais em filiações para filmes específicos do que pro conjunto do nosso trabalho.

Dentro do cinema aqui de Pernambuco, os filmes da Telephone Colorido sempre mexeram muito comigo. A pegada profundamente debochada e bagaceira era muito mais instigante do que o que eu via no cinema local “oficial”, tecnicamente bem comportado e politicamente óbvio (com exceções). Diria que Estudo em Vermelho é um filho claro desse coletivo.

Sempre tive também a Distruktur e sua criação de mundos hipnóticos em alta conta. Foi conscientemente a referência principal pra Sonhos.

Virgindade é filho do estrangeiro, sua condição de possibilidade centra-se completamente em Rules of the Road (1993) e em outros filmes de Su Friedrich.

Mas se a gente tivesse que eleger padrinho e madrinha do coletivo, meus votos seriam: Jomard Muniz de Britto e seu Super 8 super queer e performático e Leona Assassina Vingativa e todo o seu legado. <3

André: Quando começamos a filmar, lembro que conversávamos muito sobre os filmes de Sosha, os curtas Lotta Love e Eyes without a Face em Recife.

Mas, de maneira bem pessoal, algumas referências de fora também foram bem importantes pra eu entender que era possível concretizar o que eu queria fazer. Era um certo cinema underground que unia 1. fascínio por imagens fabulares principalmente via figurino 2. pesquisa sobre duração estendida dos planos e 3. uma autonomia/independência nos modos de produção: o Philippe Garrel da fase Nico, o Werner Schroeter da década de 1970 e sobretudo Kenneth Anger.

Ver o que acontece quando se mistura esse tipo de cinema com algo da bagaceira de uma Leona, por exemplo, me deixa bem entusiasmado. Quando filmei Pedro Neves em Mama fiquei lembrando de Nico nos tableaux de Le Berceau de Cristal(1976), porque Pedro tem essa elegância melancólica.

Em A Seita lembro de dizer que a parte das ruas, de dia, era muito Distruktur. Mas a parte noturna onde o personagem encontra a seita no final foi completamente inspirada em Inauguration of the Pleasure Dome (1954) de Anger.

E eu pensei Vênus de Nyke como uma mistura entre Scorpio Rising (1963) e Virgindade.


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