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“Os bárbaros invadiram os castelos” – Entrevista com Valter Filé – Parte dois

Continuando a entrevista com Valter Filé, aqui Bernardo Oliveira puxa assuntos relacionados ao trabalho fundamental de Filé com a memória do samba carioca, especialmente no projeto Puxando Conversa. Além disso, o papo trafega por sua relação com a universidade e por sua relação com o Eduardo Coutinho, ressaltando como o trabalho com Coutinho foi crucial para as práticas e reflexões de Valter Filé. (Juliano Gomes)

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Bernardo Oliveira: Gostaria que você falasse sobre o Puxando Conversa, a partir da complexidade do registro. Registrar não é somente fixar a imagem, mas também embarcar em outras imagens. Por exemplo, aquele do Trio Calafrio, do Romildo, do Catoni… O do Catoni é uma coisa pirada, porque é atemporal, você não sabe se tá em 2020, se tá em 1980, 1880… Fala um pouco sobre o Puxando Conversa porque é uma sequência de vídeos que considero não ter nada parecido hoje, em termos de samba, no Brasil. E é uma maneira de pensar o registro que vai contra todos os primados do documentário musical brasileiro…

Valter Filé.: O Paulão Sete Cordas fala muito isso que você falou: como é bom ver essa gente que nos ensinou o caminho. Do jeito que nós fizemos, sem amarras, sem perguntas óbvias. Os caras falam, é o encontro de humanidades. O Puxando Conversa foi um projeto que aconteceu por acaso. Fui gravar com o Romildo, o grande compositor pernambucano, vencedor de sambas antológicos, autor de músicas inesquecíveis gravadas por Clara Nunes… Pois bem, fui gravar com o Romildo para um programa em Mesquita, onde ele morava. E foi um inferno, porque no dia da gravação, o CECIP requisitou toda a equipe para gravar. Rose Marie Muraro estava aqui no Rio, e o CECIP queria todo mundo lá. Eles faziam isso com a gente, de vez em quando: atropelavam as nossas pautas e levavam toda a equipe. Ficamos eu, Noni Carvalho (fotógrafa) e o Breno Kuperman. E o Romildo era um cara muito escorregadio, para parar o cara era uma dificuldade. Noni, Breno e eu conversamos: “O que que a gente faz?”. O Breno propôs: “desmarca”. Falei: “desmarcar, não vou; a gente bota a câmera em um tripé, faz um enquadramento, ninguém precisa ficar na câmera, liga o áudio e seja o que Deus quiser. Mas eu tenho que gravar com esse cara, porque depois vai ser difícil. Foi um duro danado para conseguir marcar com ele”. Eu tinha contato com o Romildo e tomava cerveja com ele, mas não sabia da obra dele, apenas algumas coisas. A gente foi gravar, ele tentou fugir porque dizia: “Não quero gravar, não; porque o Evandro não está aqui”. O Evandro chegou, a gente gravou, o vídeo é meio louco, às vezes ele quase some do quadro, a câmera não importa. Aconteceram coisas impressionantes com aquela gravação. Primeiro, o Breno, quando a gente estava gravando, ficava cutucando a minha costela e falava assim: “Puta que pariu, que porra é essa, cara, quem é esse cara?” Desesperado. Ele ficou tão desesperado que ele acabou de gravar com o Romildo, a gente dispensou o Romildo, entrou na Kombi e ele falou: “Caralho, não! Chama ele de novo! Vamos gravar de novo!! Puta que pariu, esse cara é foda”. O Breno foi para casa, teve um infarto nesse dia, infartou no mesmo dia do Romildo, ficou três meses no hospital. Uma semana depois, o Romildo morre.

Fiquei com esse material e pensei: “O que que eu faço com isso?”. É muita coisa para um programa da Maxambomba, que eram pílulas, coisas curtinhas, quer dizer, o Romildo não se enquadrava no formato da Maxambomba. Precisava pensar alguma coisa. E comecei a futucar os acervos de memória do samba carioca, no Museu da Imagem e do Som. Fiz aquela listinha e acaba lá em Carlos Cachaça… Pensei: “pô, tem muito mais gente”. Resolvi ir atrás dos compositores que o Romildo citava: “Não, porque tem um negão em Nilópolis, um tal de Catoni, esse negão é foda”. Fui atrás do Catoni. O Catoni, inclusive, é de uma área que é como se fosse um quilombo em Ouro Preto. E pouca gente sabe, as pessoas veem e não percebem esse detalhe. Ele fala: “Eu sou do sertão de Ouro Preto”.

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BO : Não é 1997, quando começa o Puxando Conversa? No âmbito da Maxambomba, ainda?

VF: Não, eu não sabia o que eu ia fazer com aquilo. Comecei a gravar com os compositores, mas na Maxambomba não tinha tempo para gravar qualquer coisa que fosse fora do formato dela. Então, tinha que gravar pedindo para as pessoas irem por conta própria, iam domingo, tudo no improviso. Em 1997, eu disse: “Vou lançar o programa do Romildo em um bar”. O Romildo estava fazendo aniversário de morte, vamos lançar e ver o que vai dar. Lancei o Romildo e o pessoal: “A gente sabe que você gravou com Catoni!” Pensei: “bem, isso aqui é um projeto bacana de memória do samba, porque esses caras vão morrer e ninguém sabe que eles existiram”. Então, era da Baixada primeiro, embora o Luiz Grande, quando eu fui atrás dele, foi porque ele havia gravado um disco chamado Embaixada do samba e eu tinha participado da produção. Na época, ele morava em Caxias. Então, o Luiz Grande foi o que furou a fila. A gente teve que sair da Baixada e ir para o Rio. Eu já sabia que ele estava morando em Inhaúma. Quando eu o conheci, fiquei apaixonado. Tanto que escrevo que o Luiz Grande está para o samba assim como Mané Garrincha está para o futebol. Ele fica só enganando o adversário, o parceiro dele. Parece que vai atravessar, mas aquele samba sincopado dele… Até o Cyro Monteiro ficaria arrepiado se ouvisse o Luiz Grande! E ele era uma figura!

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BO : Muitas vezes, as entrevistas do Puxando Conversa deixam transparecer o tratamento diferenciado que é dado a alguns sambistas, o mesmo tratamento que a gente vai perceber quando vai para a Zona da Mata Norte de Pernambuco, com todos aqueles gênios do Maracatu que fazem essa música rotulada como “folclórica”. Acaba virando um escaninho para esses sambistas que são extremamente urbanizados, cosmopolitas. Luiz Grande reclama que o ECAD o pagava como “folclore”, mas a vida toda ele fez música para o mercado. Até o Zeca Pagodinho gravou “Sincopado Ensaboado”, gravou muitas músicas do Luiz Grande…

VF: Muita gente gravou: Elza Soares, João Nogueira… Penso que o samba cometeu um fantástico ato de bravura, que foi se colar à imagem do Rio de Janeiro, como cultura expressiva da cidade e do estado do Rio de Janeiro, talvez do Brasil. Somos reconhecidos em várias partes do mundo a partir do samba. Mas o que uma determinada elite da sociedade não perdoa é que quem produziu isso, em sua maioria, foram negros, trabalhadores, semianalfabetos. O samba, às vezes, entra em muitos lugares; mas o compositor, não. O Puxando Conversa foi feito muito precariamente, com imagens que, às vezes, tenho vergonha de mostrar, mas penso: “Esse vídeo é muito ruim, mas o depoimento é maravilhoso”.

No primeiro programa do Puxando Conversa, que gravamos no Museu da República, não tínhamos dinheiro para nada. Tínhamos que arranjar os músicos. Aí, meu amigo Toninho Galante falou que havia dois músicos que estavam a fim de tocar. Quando a gente chega lá, o Toninho tá do lado do Paulão Sete Cordas e do Beto Cazes. Avisei que eu não tinha nem um centavo para pagar esses músicos, todo mundo sem dinheiro, a gente fez um rateio para gravar. E o Galante me diz que vão cantar na boa, todo mundo entendendo o projeto. Se você vir o lançamento do Puxando Conversa, tem Paulão tocando cavaquinho porque não tinha violão, não tinha nem uma cerveja pro pessoal.

E o pessoal dizia: “Não, tá bom, deixa assim mesmo, deixa assim rústico, o ouvido do bom entendedor vai sacar o que está acontecendo”. Não é para a mídia. Aí, recebemos uma proposta. A ideia do samba e a relação dos sambistas com o Brasil é muito complicada. O Noca da Portela conta uma história em que ele diz que a maior vergonha que passou na vida foi na inauguração do Maracanã: ele de bermuda, chinelo e começou a tocar uma música, com Marlene e Emilinha Borba, no sistema de som do Maracanã. Era uma música do Noca. Foi ele comentar com um cara ao lado e o sujeito respondeu: “Tá maluco, neguinho?”. O cara chamou a polícia, a polícia achando que o Noca estava de conversa fiada para roubar o cara. E o Noca teve que ir com o policial no sistema de som para pegar a capa do disco e mostrar o nome dele no disco. Enquanto isso, a humilhação. Muita gente conta histórias escabrosas.

O Éfson (compositor carioca) contava um caso que revela a história da educação brasileira para os pobres. Ele me contou que tinha dez anos e, um dia, a mãe dele sai com ele e fala: “Espera aqui que a mamãe vai ali fazer uma compra e te pega aqui. Era o SAM (Serviço de Assistência ao Menor). E me contou que, na madrugada seguinte, entrou num ônibus e foi trabalhar na roça em Minas Gerais, com 10 anos! E ele só saiu de lá com 17 anos, porque ele começou a mexer com a música. O Otacílio da Mangueira falava também que trabalhava num banco, as pessoas o chamavam de “Sambista”, nem sabiam que ele era mesmo sambista. Para aquela gente, um negão daqueles tinha que ser “sambista” e ele era sacaneado por isso, e também porque era semianalfabeto.

Hoje, falo para os meus alunos que eu só entendi Walter Benjamim, porque o meu pai era o narrador. Meu pai dizia: “Nunca fui à escola, nem sei nem fazer um ‘O’ com um copo.” E ele foi o cara com quem aprendi as questões mais complexas e filosóficas do mundo. No Puxando Conversa, pouca gente tem histórias da escola. É como se a educação fosse uma coisa que não tivesse a ver com eles. E nunca teve mesmo. O Brasil só vai ter educação de massa na década de 1960.

BO : Com visão de classe, com ironia. É uma arte complexa. E essa é uma questão para nós, que trabalhamos com educação. Por que a escola não é o lugar para essas pessoas crescerem e se desenvolverem? A escola não é para eles, eles driblam a escola, driblam a educação formal e produzem arte. E arte como subsistência…

VF: E tem outra coisa muito legal: a gente faz da vida dessas pessoas uma tragédia e as coloca como vítimas. E elas têm que ficar e obedecer às estatísticas e os escritos, as teorias e tudo. É um tratado sociológico. O samba é uma maneira de viver, escrevi sobre isso em “O Milagre dos Pães”.

Barbeirinho me contou que, certa vez, estava morando em Bangu. Estava sem dinheiro e pensou: “Vou no Jacaré fazer um biscate e pegar um dinheiro”. Ele só tinha o dinheiro da passagem e quando vai sair, a mulher pergunta: “Não vai comprar pão para as meninas, não?”. Ele olha para o dinheiro e pensa: “Vou à padaria comprar pão e ir ao Jacaré. Depois, eu me viro, pulo, dou calote no trem, pulo a roleta do ônibus, dou um jeito para chegar no Jacaré para fazer um trabalho e ganhar algum”. Ele chega na padaria e repara que tinha uma mulher mostrando para o caixa um pãozinho aberto com um mecha de cabelo. Tremendo burburinho em volta! Ele nem comprou pão, voltou e falou: “Ganhei meu dia!” Foi quando ele fez “Cabelo no pão careca”, samba que foi gravado pelo Zeca Pagodinho em 1993 no disco Alô, mundo!. É genial fazer da sua condição a matéria-prima para a sua arte. E o Trio Calafrio ficou um tempo vivendo desse dinheiro, sem precisar fazer um biscate no Jacaré. Mas o dinheiro acaba e temos que fazer outro. E querem classificar essas pessoas como intelectuais, como acadêmicos, ora… O cara pega o cotidiano e faz a crônica. E apresenta: “Olha aqui como é que eu fiz”. E o que não for, ele inventa. Essa é a capacidade de transformar o mundo a nosso favor, contando histórias que nos possibilitem pensar sobre o mundo.

Vira e mexe, temos pensado em voltar com o Puxando Conversa. Eu participei dos 20 anos no Museu da República, em dezembro de 2019, e o pessoal do Museu propôs que voltássemos na semana seguinte. Topei, pensamos em fazer em março, íamos nos reunir para pensar e deu esse rolo todo da pandemia. Mas é isso, é para provocar, ter um lugar de incômodo.

BO : Você, atualmente, está no Laboratório de Estudos e Aprontos Multimídia. E na Síncopa TV, que é uma das possibilidades de uso do laboratório…

VF: Quando fui para a universidade, tinha que montar alguma coisa para discutir imagem, tecnologias, enfim, educação, comunicação etc. Montei esse laboratório. Ele tem ainda um subtítulo que é “Relação e Ética na Cultura Digital”. É uma ideia para discutir imagem, narrativa, linguagens. Nesse momento, estamos estudando o papel da imagem na educação do preconceito. Temos histórias de ensinamento da TV, da revista, do cinema brasileiro, que é dizer quem é quem, quem tem que ficar em que lugar. A ideia é pensar sobre isso, trabalhar sob essa perspectiva de buscar compreender como as imagens têm trabalhado para produzir o imaginário que coloca o negro em um determinado lugar de subalternidade e suspeição. Se está num carro, ele roubou — o que acontece todo dia. Aqui, a imagem de uma senhora tendo o pescoço pisado não é tão grave quanto nos Estados Unidos. Enfim, queremos pensar, a partir da imagem, como a educação tem sido complacente com isso, como o livro didático tem sido complacente, como a produção audiovisual na escola é muito complacente com essa ideia de que existe um tipo de sujeito que deve servir de referência. O samba é bacana, mas é “exótico”, tá entendendo? (risos)

Certa vez, fui chamado para um evento para fazer uma oficina de samba. Propus fazer uma mesa de abertura. Ah não, porque na mesa de abertura alguém vai falar de coisas mais importantes… Pensar isso. O LEAM eu criei porque você vai para universidade e ainda encontra muita resistência ao uso de imagem, ao uso do audiovisual. E quando querem usar o audiovisual, não é pensando na linguagem. É pensando na força intrínseca que a imagem tem nos dias de hoje, e na realidade nem sempre é assim. A gente grava, muitos nem assistem, o aluno manda pra puta que pariu… Como é que a gente pode pensar o uso da linguagem dependendo de uma situação-problema que você tem e que você possa responder com uma linguagem, como o Barbeirinho responde a um problema da vida com um samba. É uma invenção, é uma criação, algo que não tinha sido criado ainda. Pensar a linguagem como criação. Então, é mais provocativo do que efetivo do ponto de vista da produção. Porque, como você falou, estar na academia para produzir o que eles querem… Não rola né?

BO : De uns 15 anos para cá, houve uma reconfiguração na universidade, mas também uma certa organização extramuros. E eu ainda não sei detectar como é que isso se dá. Porque não são a partir dos modelos que a gente conheceu nos anos 1980–1990, é um outro tipo de organização, com a presença da internet. Antigamente, no processo de redemocratização, vocês lutavam contra a hegemonia da Globo. Hoje, não dá para detectar um foco só de hegemonia. É como se tivéssemos uma polifonia e tivéssemos que lutar contra essa ideia de “fake news”, de mentiras privilegiadas… Como você vê esse reposicionamento da questão racial no Brasil, hoje, do ponto de vista da comunicação?

VF: Temos observado coisas muito positivas. Hoje, existem grupos que trabalham com a questão racial, discutindo a questão do algoritmo, racismo do algoritmo, coisa impensável para a academia saber que existe alguém pensando nisso. Acredito que está acontecendo uma reconfiguração na universidade, mas uma reconfiguração de fora para dentro. A academia muda porque muitos negros, ainda não em número suficiente, estão entrando. E não tem jeito, porque seus corpos são perceptíveis, não dá para ficar invisível. Você é negro em qualquer lugar do mundo. Tem entrado muita gente negra, a maioria para tomar posição e colocar questões. E a instituição tem que dar respostas. Embora não seja ainda o que a gente deseja, se hoje tem um movimento de blogueiras negras, que é uma coisa fabulosa, o que elas têm feito de educação é muito mais do que se faz na escola. Educação da beleza negra, do cabelo, das possibilidades de pensar sobre o mundo, sobre ancestralidade. Um papel bacana que a internet está oferecendo.

A gente já falava, na TV Maxambomba, que a escola é uma instituição formal de educação. Mas, onde as pessoas se educam mesmo, quem sabe? As pessoas se educam de qualquer maneira. Lev Vygotsky afirmava que as pessoas se repetem, mas não se tocam: o aprendizado é o resultado da qualidade das interações que se dá em redes, não necessariamente a rede que possibilita crescimento e aprendizado. Mesmo dentro da escola nem sempre é o professor, às vezes, é o teu colega que promove o aprendizado. Tenho esse exemplo na minha adolescência. Certa vez, um amigo falou: “Quero que tu ouça um cara que eu estou amando”. Era James Brown, eu nunca tinha ouvido James Brown, mudou a minha vida. E foi a escola que me deu um texto sobre os direitos civis americanos que a gente ia estudar. Da mesma forma como o samba tem ensinado muita coisa ao Rio de Janeiro, muita gente aprende e finge que não existe. Os projetos de sociabilidade, como a gente fez essa relação entre negros e brancos, num mundo preparado para brancos, sem uma catástrofe, não só como rendição, mas como resistência também. Cada vez mais, a gente pensa que a instituição educativa formal é importante, mas talvez a gente precise atentar para outros lugares onde se educa. A ideia da educação como transmissibilidade: faça um vídeo muito bem feito sobre o que são direitos e cidadania e todo mundo vai sair dali informado. Talvez se a gente parar para ouvir e todo mundo discutir as coisas, a gente aprenda muitas coisas juntos e em vários lugares.

BO : Não é só a transmissão, é a unidade básica da comunicação escolar. Há outras dimensões não aproveitadas.

VF: Trabalhei uma época na Casa da Ciência da UFRJ, ia tentar criar o núcleo de vídeo deles. Em certo momento, meninos vieram da Baixada Fluminense para uma exposição lá na Casa da Ciência. Havia um questionário que eles precisavam preencher: o que haviam aprendido sobre química, o que eles aprenderam sobre outros assunto. Pedi: “Botem duas perguntinhas no final, só para matar uma curiosidade que eu tenho:

— O que eles mais gostaram? O que destacariam como fundamental nessa exposição?”

Um monte deles respondeu que o que mais gostaram foi vir da Baixada para a Zona Sul do Rio, passar no Aterro do Flamengo, naquela algazarra. A gente ensina, mas não sabe o que as pessoas aprendem, nem onde colocam o foco da atenção. Isso é terra que ninguém manda, não, gente. A gente pode se esforçar para disponibilizar, agora não pode dizer que garante. É presunção. Por isso eu prefiro que a gente converse. Com o Coutinho, a gente falava muito isso: “Palestra é o cacete, não gosto de palestra, não”. Embora, depois, ele falasse para caramba: “Não entrevisto ninguém, eu converso”. A conversa é o lugar de interação humana, de possibilidades de pensar coisas.

BO : Você acha que a TV Maxambomba influenciou o trabalho do Coutinho?

VF: O contrário, ele nos influenciou. Coutinho foi fundamental e, para mim, é até hoje. Trabalho com a ideia do cotidiano, da grande narrativa. O Coutinho é uma referência, que discute diferença e alteridade, a capacidade de fazer pergunta sem que você já saiba o que o outro quer responder. Foi quem mais experimentou a linguagem para conversar com os outros. Escrevi um artigo sobre uma pergunta que o Coutinho faz no Boca de Lixo (Eduardo Coutinho, 1993), onde ele interagia com o cotidiano dos catadores de lixo do vazadouro de Itaoca, em São Gonçalo, a 40 km do Centro do Rio de Janeiro. Ele gravou lá no lixão, foi por acaso, todo mundo ajudando. Aí, quando ele faz o piloto, ele chamava uma galera para discutir: “Vê se está bom. O que vocês acham?” As pessoas podiam falar que não estava bom; se ele gostasse, não mudava mesmo; mas, pelo menos, a gente via antes. Ele fez uma pergunta que todo mundo caiu de porrada — e eu, também. Eu me perguntava: “Como o cara foi fazer uma pergunta dessas?”. Ele chega no lixão e pergunta: “Aqui é bom ou ruim?”. Ninguém pode perguntar isso, já se supõe que é ruim. Já sabe quem é que está do outro lado, que o outro foi produzido por você e não tem margem para se movimentar, para te surpreender. Quero que me surpreenda. E uma mulher sai com uma resposta excelente: “Aqui é melhor do que casa de madame”. Pronto, está revelada a tragédia brasileira. Porque ele teve coragem de fazer uma “pergunta de criança”, porque a gente depois fica esperto e pergunta isso. Coutinho era cara de pau, fazia isso.

BO : Ele levou essa cara de pau para a Maxambomba?

VF: Nós levamos. Na cara de pau, mesmo.

BO : Então, uma pergunta infantil: o Valter Filé é cineasta?

VF: Não. Sempre fiz questão de fazer essa diferença: trabalho com comunicação em pequenos grupos, a partir da linguagem audiovisual. Pode ser cinema, mas sempre fiz uma divisão, sempre tive uma espécie de “arranhamento” com as coisas do cinema. Porque o vídeo sempre foi o “primo pobre”. O cara diz: “eu gravo com 35mm… No máximo com 16mm!” E alguém dizia: “Eu gravo com VHS”. Hoje não, hoje usam um telefone de altíssima qualidade, 4K. Qual é o problema? E sempre coloquei foco na ideia da linguagem, não de suporte. O Coutinho dizia: “Não posso gravar com película. Preciso gravar muito para tirar alguma coisa das pessoas”. Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999), que deu vinte horas de gravação, ele não conseguiria fazer em película, fez em vídeo. A grande questão do documentário para ele — e isso a gente aprendeu também —, é a linguagem. Ele dizia: “Só falo da mesma coisa sempre com todo mundo. Quero saber como as pessoas veem o mundo, como se relacionam com o mundo, como pensam o mundo, a vida. Só falo disso. Qualquer filme meu é sobre isso; só que eu invento um dispositivo para fazer isso”. Para saber o que é a vida de cada pessoa, ele propunha: “Cante uma música que você gosta muito”. Então, o entrevistado fala da música que Coutinho usou como “bucha”.

Outra conversa que a gente tinha muito, a partir do Santo Forte, era a conversa da narrativa. E o que é a narrativa? Em que medida a narrativa trabalha com a verdade moral dos fatos? Aquilo que o outro fala é verdade? Michel de Certeau tem uma frase que é muito boa, em que ele diz: “A narrativa não produz coisas, produz efeitos”. Então, ela não é para ser a verdade que vai testemunhar no cartório; ela produz maneiras com as quais vamos tecer as nossas vidas, como a gente se inspira, como a gente pensa, como a gente se vê personagem nas conversas, nos filmes.

A gente sempre tinha essa pegada, e o pessoal querendo “verdade”. Porque ele fazia o Santo Forte e aí o Claudius trouxe uma instituição americana que queria comprar o filme. Mas eles queriam saber se aquela história que o cara diz que a mulher recebeu a mãe, se era verdade… Ele respondeu: “Isso é o que menos importa!” E a gente vivia com aquilo e, um dia, ele me sai com aquela história de Jogo de Cena (Eduardo Coutinho, 2007) daquelas atrizes. Ele brinca com a ideia de estar dos dois lados da câmera, sempre presente em diálogo. Ele aparece, as pessoas estão interpretando uma coisa. “O Coutinho perguntou é para encenar, não é, ele não me falou nada”. Então isso tudo foi muito interessante, para não ficar nessa dicotomia ou hierarquização de uma coisa mais nobre que é o cinema. Porque, até bem pouco tempo, quem fazia cinema era a classe média e classe média alta. Hoje, os “bárbaros invadiram os castelos” porque, com qualquer celularzinho o cara roda uma cena que você fala: “Do cacete, isso que esse cara fez”.


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