Sobreviventes da Galileia, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2013); A Família de Elizabeth Teixeira, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2013)

maio 5, 2014 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Juliano Gomes

Sobreviventes da Galiléia (2013), Eduardo Coutinho

Sobreviventes da Galiléia (2013), Eduardo Coutinho

O fim como princípio
por Juliano Gomes

Nesses dois últimos trabalho de Eduardo Coutinho, realizados tendo em vista a inclusão no recém-lançado DVD de Cabra Marcado Pra morrer (1984), o diretor e sua equipe revisistam os personagens do filme de 1984. Ambos os filmes de 2013 partem de uma mesma lógica, como duas partes de um mesmo desejo, e essa vontade parece ser a da verificação da ação do tempo nos corpos, nos espaços e nas palavras, e investigar esse que talvez seja um drama comum da produção documental: o que fica depois que uma equipe vai embora? Além disso, estamos falando de um dos mais importantes filmes feitos no Brasil (e para o Brasil) que se caracteriza justamente pelo seu poder de fazer ligações muito profundas entre as histórias – micro, macro, oficiais, pessoais, cutâneas, imagéticas, etc. O ethos trágico (“marcado pra morrer”) permanece aqui como marca, como é característico na obra de Coutinho, de maneira que se trata apenas de verificar qual forma as tragédias têm na vida de cada um e o que é possível fazer nesse tempo.

Fazer uma imagem é uma das respostas possíveis a essa iminência do fim. Tentar fixar, tentar compor alguma coisa com as superfícies do mundo para que se possa ao menos contrapor essa avalanche. Observar a forma delas, as maneiras, as inflexões, essa beleza à beira do abismo, onde nada parecia possível brotar, é uma das grandes forças desse cinema tão raro e mundano. Aqui, nos dois filmes, não há o espaço do teatro dos últimos filmes; há casas, quintais, estradas, carros, caminhadas. Ação do tempo, as narrativas são também dos espaços.

A premissa desses filmes está nas imagens, lugar onde tudo fala e cala, voluntária e involuntariamente. Para isso, há uma revisita à forma de trabalho de Coutinho durante os anos de Globo Repórter (época na qual fez, em paralelo, a edição do Cabra, numa moviola), na abordagem mais descontrolada, menos focada, mais negociada na espacialização da cena. O drama pode acontecer em qualquer lugar; ele pode surgir com o diretor no quadro, com a câmera desestabilizada, em um plano geral. Cada segmento dos filmes começa com imagens, em silêncio, dos marcos anteriores: 1964 e 1981. Vemos aqueles rostos, e ali, onde se estabelecia o intervalo propulsor de Cabra, abre-se agora um terceiro (ou mesmo, em Sobreviventes da Galiléia, com algumas filmagens de 2007, um quarto “tempo”). Cada imagem, cada tempo desses, parece um lampejo de uma série maior, da qual não foi, ou não é, possível se fazer uma imagem. Mas é essa imagem mesma – imagem de cinema, do tempo como matéria – que cria as linhas possíveis de invenção da forma desses intervalos, a partir da simples pergunta-método: “o que aconteceu?”.

elizabeth

Se Cabra é um divisor de águas, é por justamente solicitar uma outra história a partir da força de seus choques, de suas operações de montagem. O filme instaura essa lógica dos intervalos, que cria buracos e aproxima tudo. Linhas se esclarecem e obscurecem. A partir do “acontecimento-João Pedro”, uma explosão de significantes é disparada, para dentro e para fora do filme, e esse retorno recente é justamente a investigação dessa constelação que parece inexoravelmente fadada ao apagamento. Os papéis dos retratos, todos, têm o mesmo destino. Enquanto as fotos não se apagarem – elas que são os disparadores narrativos principais aqui –, é possível inventar um mundo, uma linha de sobrevivência, alguma melodia que se baste.

A superfície temática é evidente: a impossibilidade da militância política e da vida afetiva, a constatação dessa desertificação do afeto entre os personagens e seus esforços para inventar alguma outra coisa que se sustente. Entretanto, outras camadas persistem. A cada retrato, por baixo do trabalho do tempo, alguma forma ou traço persiste, comum. Talvez a face mais pregnante desssa dupla de filmes seja mesmo esta: a possibilidade arqueológica da visão dos corpos e dos espaços. O que ficou ali? Ouvimos o que aconteceu, fragmentadamente, e cruzamos com as fendas esculpidas em cada rosto. É como uma reencenação ainda mais frágil, como no caso da cena em que Elizabeth Teixeira, protagonista geral da “série”, lê um inflamado texto seu, agora com extrema dificuldade, com um ritmo que dificulta o entendimento, que deixa ver justamente essa impossibilidade e essa possibilidade. O sentido não é mais possível, mas está lá, feito, e agora tem outro, que parece ser o da urgência das novas ligações. Há uma desesperança profunda aqui que vem dessa constatação uniforme de uma impossibilidade de retomada nos termos anteriores. As casas estão pintadas, mas tudo mais parece descascar. É sobre as cascas que afinal se fala aqui, sobre a beleza e a inutilidade desses extratos.

retratocabra

Assim como Um Dia na Vida (2010), Peões (2004), e o gigante Retrato de Classe (Gregório Bacic, 1977, realizado na mesma época, no Globo Repórter, onde também trabalhava Coutinho), a forma aqui é a da investigação a partir de imagens pré-existentes. Parte-se sempre de uma imagem. Os filmes são divididos pelos nomes dos personagens, e cada segmento vai se iniciar com a imagem da pessoa que vem a seguir, em dois passados diferentes. Eles também terminam, paralelamente, com a imagem dos personagens, hoje, parados, olhando para a câmara. Quase todo segmento tem, de alguma forma, esse mecanismo de fechamento. Depois da conversa, das palavras, da criação dessas imagens, vemos essas pessoas fixarem seu olhar em nós por alguns segundos. Apesar da estratégia de encenação não ser novidade nenhuma como procedimento, em relação às outras operações (foto, foto, encontro atual, retrato hoje), esse encadeamento parece realizar ao mesmo tempo um luto e uma irmandade. A sensação é que aquilo acabou. Todo filme tem essa melancolia característica do lugar de onde se vê o futuro se encurtar a largos passos, mas, ao mesmo tempo, o luto, a imagem impossível, é justamente o cerne do projeto inicial de Coutinho. A ficção de 1964 foi impossível; Cabra é justamente esse luto: não é possível fazer imagem, então, trata-se de fazê-la. O pessimismo, ou o fatalismo de Coutinho, é o silêncio desses screen tests áridos: não há mais nada a fazer e por isso mesmo há tudo. É mais uma imagem, a imagem do tempo passando, o vencedor dessa luta desigual, mas ainda assim luta. Voltar aos personagens de Cabra é constatar que a possibilidade de esperança falhou de novo, o ideal da reforma agrária parece uma realidade ainda mais distante, o campo parece cada vez menos fértil na sua paisagem e na sua diversidade, as relações pessoais anteriores estão todas despedaçadas… mas, afinal, há o filme, e é preciso então falhar de novo, falhar melhor. É a marca da falha que funda essa conjunto de filmes e que se espalha pela obra de Coutinho. O protagonismo da morte como tema é justamente a medida dessa ineficácia das narrativas e sua condição de existência.

Sobreviventes da Galiléia(2013) e A Família de Elizabeth Teixeira(2013) são mais um etapa de uma obra que insiste em buscar vaga-lumes onde a escuridão é mais densa. A moldura trágica é como um campo de trabalho, uma espécie de ética do desastre que forma a sustentação de seus micro e macro dramas, que de desfazem com a mesma energia súbita com que se fazem. Os ciclos são sempre interrompidos, e por isso mesmo podem ser retomados: a cena muda. O silêncio dos retratos é somente essa espera por uma outra imagem, que vem ou que não vem. O estilo direto desses dois filmes completa um círculo em torno do período decisivo de sua obra, ao mesmo tempo, esticando suas relações para todos seus filmes posteriores. É característica dos grandes artistas essa possibilidade de refundar uma história do próprio trabalho a cada nova obra, de inventar para si um novo passado e uma nova urgência de revisão. Revisar, ver de novo é o princípio metodológico: da estrutura do filme, da ação interna das lembranças do personagens para articular sua narrativa, há sempre o novo, essa fagulha do instante que só pode nascer das fricções com essas outras cascas. A entrevista, a conversa, é só uma forma entre outras desse princípio (que permanece, mas muda de elementos nas obras-primas Moscou (2008) e Um dia na Vida (2010) ). A questão é encontrar uma forma de perceber o que fica, o que está de saída, e a narração que pode daí advir. O que é certo e cristalino é a presença de uma obra, ao longo desses anos, à qual será necessário sempre voltar para observar justamente essa extraordinária capacidade de mergulhar nos buracos negros do tempo e extrair esse tesouro de antimatéria que é a irrefreável capacidade de continuar a tecer essa sensação contraditória apelidada “vida”, e então torná-la imagem.

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