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Imagens à flor da pele

O festival internacional de Curtas de Vila do Conde possui uma tradição de apostar nos formatos híbridos do cinema expandido e do cinema experimental. Na edição deste ano, a pequena cidade portuguesa, emoldurada por ruínas de aquedutos romanos e com pouco mais de 28 mil habitantes, pôde ver filmes de grandes nomes do cinema contemporâneo, como Bill Morrison, Cristoph Girardet & Matthias Muller, Peter Tscherkassky, Tsai Ming-Liang, Jonas Mekas, Martin Arnold, Joseph Cornell, Bill Viola, Tony Hill, Vlatko Gillic, Ute Aurand, François Ozon, David Lynch e Lynne Ramsay. E também a produção mais recente de jovens cineastas como Morgan Quaintance, Rosa Barba, Zach Woods, Emily Wardill e Alice Rohrwacher. A dupla brasileira Benjamin de Burca e Barbara Wagner também marcou presença, além dos portugueses Miguel Gomes, Sandro Aguillar, Pedro Maia, Lucia Prancha e Helena Gouveia Monteiro. No total, nos 9 dias (do dia 16 a 25 de Julho), o festival exibiu 180 filmes, entre curtas e longas-metragens, de 38 países, em 6 seções competitivas, além de 11 programas especiais.

O festival também homenageou a Semaine de La Critique, revisitando curtas premiados na mostra do Festival de Cannes que completou em 2021 sessenta anos de história. Outro destaque foi a programação do centro cultural Solar – Galeria de Arte Cinemática, que anualmente recebe instalações audiovisuais em site specific de um cineasta convidado. Nos últimos 10 anos, a galeria contou com a participação de nomes como Bill Morrison, Gustav Deutsch, Peter Tscherkassky, Cristoph Girardet & Matthias Muller, Nicolas Provost, Ben Rivers & Ben Russell, Apitchatpong Weerasethakul, Tsai Ming-Liang, além dos portugueses João Tabarra, Filipa Cesar, Andre Cepeda, Miguel Clara Vasconcelos, João Penalva, dentre outros. Nesse ano, o Solar recebeu uma individual do artista português Diogo Costa Amarante, vencedor do Urso de Ouro no festival de Berlim em 2017. A exposição “Be your selfie” (em cartaz do dia 17 de julho até 28 de agosto ) apresentou 13 peças de vídeo inéditas. Em paralelo à exposição, Diogo Costa Amarante programou a sessão carta-branca – uma das sessões mais interessantes do festival – que expandiu o conceito de sua exposição. O realizador apresentou também em estreia mundial o seu mais recente curta-metragem, Luz de Presença (2021).

Esses são apenas alguns nomes mais célebres de uma miríade de realizadores exibidos no festival. Durante 10 dias, consegui ver cerca de 60 filmes, e claro que não será possível, em apenas um texto crítico, dar conta dessa profusão de produções em sua totalidade sem pecar pela superficialidade de uma análise generalista. Escolhi destacar, portanto, alguns filmes que mais me mobilizaram, seja por sua inovação de linguagem, seja por trazer à tona debates sensíveis para os nossos tempos, ou mesmo aqueles que me interessam pessoalmente, como mulher brasileira e pesquisadora de cinema experimental. Assim, escolhi privilegiar alguns filmes pontuais da competitiva mostra experimental – uma das mais procuradas pelo público do festival, sempre com sessões presenciais lotadas -, com curadoria assinada por Rita Morais e Pedro Dourado.

MOSTRA EXPERIMENTAL

Uma peculiaridade que me chamou especial atenção na edição deste ano do festival foi a quantidade de filmes em película – em suportes como o Super 8, o 8mm e o 16 mm – e produções feitas a partir de arquivos, gênero também conhecido como found footage. Dos 20 filmes da sessão competitiva experimental, pelo menos 14 se apoiam em recursos e imagens analógicos – inclusive os dois vencedores: Baki Tadu É e Surviving You Always. Ou seja, seria possível dizer que mais da metade da produção contemporânea experimental que interessa ao festival tem se voltado para uma investigação da materialidade da imagem e para a re-elaboração de imagens do passado. O elogio à imagem precária e a poética da obsolescência (para usar os termos cunhados por Hito Steyerl e Thomas Elsaesser) marcaram diversas sessões. Também nas competições internacional e nacional as texturas do passado se fizeram presentes, por exemplo, nos filmes: A Casa do Norte de Inês Lima, Carta Branca de Antonio-Pedro, Quatro-Caminhos de Alice Rohrwacher, O Rapaz Salamandra de Theo Dégen (premiado como melhor Filme na Categoria de Ficção da Competição Internacional) e Notícias Enterradas de Bill Morrison. Entretanto, o fato de utilizarem essa tecnologia não nos permite que os coloquemos dentro de uma categoria homogênea, pois cada autor procura investigar diferentes questões em seus filmes.

1 – Escavando futuros imaginários

A primeira sessão da competitiva do Cinema Experimental se iniciou e terminou com um interessante díptico. When Light is Displaced (EUA-Palestina, 2021) é o curta de estreia da palestina Zaina Bseiso. Através de um cotejo entre imagens de GPS do último laranjal que existe no centro de Los Angeles e registros da plantação feitos em película, Bseiso estabelece, com uma impressionante economia de meios, um paralelo entre a situação nos EUA e a invasão das terras palestinas de Jaffa pelos colonos israelenses. Pelo ponto de vista de um satélite e drone militar – o mesmo que bombardeia civis na Palestina- , vemos a plantação sendo lentamente esmagada entre novas construções. A realizadora nos faz ouvir em voice over um diálogo com seu pai. Eles falam sobre o projeto do filme que ela está em vias de fazer. O pai, ao contrário do que preconiza o senso comum sobre cinema experimental (este, a princípio, seria hermético, “difícil” e antinarrativo) defende um filme que potencialize a ficção e o sonho. “De que adianta dizer que perdemos nossa terra, e que nada irá mudar?” diz ele, em certo momento. “É preciso dar às pessoas uma ilusão de dias melhores, senão do que serve o cinema?.” A imagem dos trabalhadores no campo de laranjas é substituída então por silhuetas brancas, em um híbrido de imagem analógica e digital. Convertendo-os em um duplo-negativo, os homens agora apagados invocam tanto os fantasmas do extrativismo colonial como os palestinos vitimados no conflito israelense. As imagens da plantação vazia, mal assombrada, fadada ao desaparecimento nos faz, curiosamente, imaginar heterotopias possíveis, preenchendo a lacuna traumática por sonhos de abundância, de uma terra cujos frutos podem, quem sabe, no futuro, serem compartilhados entre os povos inimigos. Um filme em que o imaginário é alçado a arma de resistência.

Na mesma sessão, entretanto, outro curta, Emtza’i Meuchar (Nir Evron, Israel, 2020) interpôs uma sombra sobre esse possível imaginário da autodeterminação palestina. O filme-ensaio é costurado pela narração do diretor em voz over. Ele busca compreender um misterioso material de arquivo que caiu ao acaso em suas mãos. A partir de algumas premissas (um tanto reificadas) da teoria da imagem – como, por exemplo, a relação entre aparelhos e armas de fogo (Vilém Flusser e Susan Sontag) e a relação entre morte e fotografia (Roland Barthes e André Bazin) -, o diretor vai criando um embate afetivo e ético com essas imagens. Aos poucos descobrimos se tratar de um arquivo da Lehi, uma milícia paramilitar que entre 1940 e 1948 teve como objetivo expulsar os britânicos para permitir a criação do estado judaico na região. O filme de certa maneira serve de mau agouro do que viria a ser a brutal política de invasão e ocupação das terras palestinas pelo estado de Israel. A sensação é de que Evron, ao revolver o passado, encontrou o futuro soterrado. Ao final da sessão, este foi o único curta-metragem que não recebeu palmas do público, um tanto perplexo pelo teor ambíguo da narrativa e impactado pelas recentes notícias do conflito israelense.

O curta Surviving You, Always (Reino Unido, 2020) do inglês Morgan Quaintance, também trabalha com as operações da memória, em uma narrativa que oscila entre a utopia e o desencanto, entre passados premonitórios e futuros perdidos. Também feito a partir de material de arquivo, o curta narra duas histórias em tempos paralelos. Em voice-over ouvimos a voz do psicólogo Timothy Leary profetizando os efeitos expansivos e benéficos do LSD sobre a consciência na época de sua descoberta. Já na legenda lemos uma espécie de diário de um jovem narrando suas experiências recreativas com drogas e a desoladora história do fim de um amor adolescente. A dupla narrativa é acompanhada de imagens em preto e branco de fotos do arquivo pessoal do diretor que tinha 14 anos à época. Essa sobreposição de tempos interpolados nos permite ver, com certa melancolia, como o sonho da geração flower power de maio de 68 não criou o mundo utópico que esperava, mas sim produziu uma geração ansiosa por prazeres efêmeros, sem ideologias e assolada por uma solidão atroz. O curta serve também de analogia para o funcionamento da memória e dos meandros do inconsciente, cujos fluxos simultâneos permitem que passado e futuro inscrevam-se um sob o outro, nem sempre de maneira clara e linear. Dessa forma a montagem dessa história ocorre in loco, estimulando o espectador a construir uma percepção desse tempo policrônico ao vivo, durante a exibição, a partir das suas livres-associações da memória. Este foi o grande vencedor do Prémio Centro de Arte Oliva deste ano, dado ao melhor curta experimental. É o segundo ano consecutivo que Morgan Quaintance é laureado no festival, firmando-se como uma das mais potentes vozes da nova geração de realizadores experimentais.

2 – Raízes estruturais – A natureza e o cinema experimental

Outra tendência do cinema experimental desse ano, que marcou diversas sessões, foi a relação com a natureza. Podemos elencar alguns filmes cujo tema central são elementos naturais – a terra, a água e o fogo. Todos, entretanto, não deixam de ser marcados por ecos vanguardistas, criando especulações com o próprio meio, jogando com as ferramentas estruturantes da linguagem cinematográfica, e citando sub-repticiamente filmes de seus “pais” como Michael Snow, Rose Lowder, Marie Menken, Stan Brakhage, Jonas Mekas e Kurt Kren. Porém, curiosamente, agora os filmes parecem imantados pelo debate ecológico e os efeitos do antropoceno no planeta.

2.1 – Água – Cinema é cachoeira

O segundo vencedor da mostra experimental com menção honrosa foi Baki Tadu É (Kate Saragaço-Gomes, Calum MacBeath Morgan, Índia/Dinamarca/Portugal, 2021). O filme é dividido em duas partes. A primeira mostra um homem de traços orientais caminhando por uma densa mata. Suas vestimentas de peles fazem dele uma espécie de entidade da floresta. Ele caminha sempre de costas para a câmera que o persegue, como um voyeur intruso no espaço. Em certo momento, como um Orfeu oriental, ele se vira para trás no segundo em que está prestes a sair do inferno, quase quebrando o encanto da diegese mágica. Ele entretanto escolhe não nos dirigir o olhar, como se optasse por não ser capturado pelo olho-mecânico etnográfico, mantendo sua integridade como um segredo. Em seguida, no segundo bloco da narrativa, somos transportados para um quarto escuro, uma casa abandonada. No melhor estilo Wavelenght (Michael Snow, 1967) ou Enigmas da Esfinge (Laura Mulvey, Peter Wollen, 1997), a imagem alterna entre dois movimentos elementares de câmera: uma panorâmica que oscila da esquerda para direita, e o uso do zoom ótico. Como no clássico filme experimental de Snow, terminamos adentrando lentamente a água, mas, agora, não mergulhamos no mar enquadrado na moldura-janela para o mundo, mas, sim, por meio de uma natureza morta: uma goteira que escorre pelas paredes até chegar a um copo que transborda. Neste filme é como se a natureza, o clima tropical e as forças das intempéries ganhassem a disputa com as estruturas sólidas criadas pelo homem. Enfim, o céu desaba sobre nossas cabeças.

2.2 – Terra – Uma rosa é uma rosa é uma rosa

O famoso verso “Uma rosa é uma rosa é uma rosa” de Gertrude Stein nos dá um fio condutor para adentrarmos certos filmes. Quando ouvimos a palavra “rosa” podemos imaginar a flor, a cor, o nome próprio de uma mulher, ou o seu simbolismo romântico. Para além das representações que nos tomam de assalto a imaginação, a repetição proposital de Stein desnaturaliza o significado e o significante, nos voltando para a estrutura da linguagem e a concretude das palavras. Assim, ao repetir a palavra, deixamos de ver os clichês atribuídos a elas e a desnudamos. Ouvimos com mais clareza sua sonoridade e vemos graficamente as letras. Como na pintura cubista de Picasso e Bracque, vemos todos os ângulos e dimensões de um objeto representado sobrepostos de uma só vez, em uma mesma superfície, sem mais distinção entre figura e fundo. Assim escavamos a tela, até atingir sua carnadura: a lona branca por trás da paisagem pintada, prestando atenção agora no cavalete, no seu suporte, na sua estrutura, na sua materialidade. O gesto conceitual da pintura e poesia modernistas é semelhante ao que ocorre nos filmes Purkyne’s Dusk (Helena Gouveia Monteiro, Irlanda/França, 2021), Flowers Blooming In Our Throats (Eva Giolo, Bélgica/Itália, 2020), Earthearthearth (Daïchi Saïto, Canadá, 2021) e Train Again (Peter Tscherkassky, Austria 2021)

Purkyně’s Dusk teve sua estreia em Vila do Conde. O filme em Super 8 explora os limites da percepção visual e faz referência direta a Jan Evangelista Purkyně, um fisiologista tcheco de meados do séc. XIX. O cientista chegou à conclusão de que a percepção cromática dependia do grau de intensidade da iluminação sobre a retina. Helena Gouveia Monteiro segue a investigação do século passado, agora através de experiências com a película, a partir de imagens bucólicas de um casal em um jardim florido. As imagens, que alteram entre um vermelho tinto, um azul ciano e o preto e branco, foram posteriormente manipuladas na montagem, através de operação de de-saturação digital e de processos fotoquímicos. Assim, a imagem romântica comumente associada às flores e ao casal é decomposta em cores, manchas, formas, grãos e texturas.

Já o curta Flowers Blooming In Our Throats também explora pequenos gestos do cotidiano de uma vida em casal. Filmado em 16mm durante a pandemia, o filme concentra-se nas mãos da diretora e de seu parceiro, criando uma espécie de catálogo de gestos banais do cotidiano, como cortar frutas, cuidar de arranjos de flores, e uma série de jogos lúdicos e com brinquedos. Entretanto, a repetição gradual dos gestos vai lentamente nos deixando perceber a agressividade iminente que cada um deles comporta, produzindo um comentário silencioso sobre a violência doméstica que muitas vezes cresce de maneira insidiosa dentro de uma casa, violência a que, como sabemos, muitas mulheres foram submetidas durante a quarentena e o confinamento.

Earthearthearth já nos entrega, pelo título, sua chave estrutural de poesia concreta. Durante 30 minutos, o filme em 16 mm proporciona uma intensa experiência com as percepções hápticas da imagem. Na escuridão da sala de cinema, o público presenciou o nascimento do sol em uma paisagem desértica, ao mesmo tempo em que perdia a noção de tempo e espaço, viajando nas cores saturadas e duplas, triplas, quádruplas exposições das montanhas dos Andes. A experiência foi potencializada pela trilha sonora, uma improvisação musical de Jason Sharp. Como na melhor definição de cinema Cinestésico (termo cunhado por Gene Youngblood), o filme nos coloca numa imersão digna de viagem psicotrópica, deixando nossos cinco sentidos à flor da pele. Segundo o diretor, a escuridão e a luz são também corpo e “carne”, carne das imagens; “ecos dos ossos”; nesse sentido Earthearthearth é uma verdadeira viagem ao centro da terra. Entranhados nas vísceras da paisagem, ouvimos seus respiros e o bater de seu coração telúrico.

O último filme que escolhemos para essa seção terrena do texto é Train Again, do laureado diretor austríaco Peter Tscherkassky. Como todos os filmes do diretor iconoclasta, Train Again promove uma experiência corporal violenta e anárquica com a película e as capacidades cognitivas do espectador. A princípio, o filme é sobre uma máquina adorada pelo cinema: a locomotiva. É feito com uma dezena de imagens de arquivo que retratam o trem em diferentes épocas (inclusive, curiosamente, filmes contemporâneos com imagens digitais feitas em CGI, algo inédito na filmografia do diretor). Vemos o filme literalmente desmaterializar-se progressivamente em um turbilhão de imagens que vão violentamente solapando a própria forma e ao mesmo tempo produzindo um comentário acerca da história do cinema. Como sabemos, a locomotiva se configurou como a máquina-ícone da modernidade, se tornou uma imagem simbólica para o nascimento do cinema (A Chegada de um trem à estação de la Ciotat (1895); The Great Train Robbery (1903); The General (1926) etc.). Além disso, o trilho é também um elemento recorrente nos sets de filmagem. Tscherkassky então realiza intervenções diretas na película e explicita os elementos estruturantes do meio expondo os sprockets (pequenos furos da película que são utilizados para prendê-la na bobina) – que formalmente também remetem às ferrovias. Entretanto, apesar de ser um filme sobre o mecanismo industrial do cinema, por trás dessas engrenagens há uma sombra ou fantasma de uma outra imagem subterrânea. Uma outra figura que também marcou a história da arte no século XIX e a investigação sobre nossas percepções fisiológicas da visão: a paisagem natural. Ao final do filme, curiosamente, vemos rapidamente um frame de uma árvore. Essa é uma “dica” ou chiste irônico do diretor, que está claramente citando um de seus mestres da vanguarda acionista vienense: Kurt Kren. Kren é autor de uma das obras primas do cinema estrutural cujo título, não coincidentemente, é Tree Again (1978).

2.3 – Fogo fátuo

O filme Berlin Feuer (Pedro Maia, Portugal, Alemanha, 2021) foi concebido a partir de um material encontrado datado de 1940, que retrata bombeiros tentando controlar um incêndio. As labaredas parecem transbordar da narrativa para o próprio suporte, tornando as imagens manchas abstratas. O filme de Maia, de apenas 5 minutos, parece condensar em si as condições essenciais do cinema: sua relação com o tempo, com a memória e o desaparecimento. Mais cedo ou mais tarde, o material analógico acaba por se destruir devido à própria tecnologia que o anima: o mesmo calor do projetor que dá “alma” às imagens (ou seja, dota de anima, em latim: movimento) é o que as queima e deforma. Esta fatalidade letal do cinema e, em particular, do nitrato de celulose (altamente inflamável), é, em si, paradoxal. Se por um lado a película preserva um momento na eternidade, por outro seu próprio corpo se deteriora com o passar do tempo. Como a pele nos seres da natureza, a película analógica possui um caráter oximórico: ao mesmo tempo em que revela, esconde ou encobre algo sob sua fina superfície. Ao mesmo tempo em que conta uma estória, a matéria possui, ela própria, a sua história. Nessa dialética entre visível e invisível vislumbra-se a própria representação da vida exprimindo o seu caráter efêmero – o filme “morre” como seus objetos filmados. A analogia aqui usada, entre a pele e a morfologia animal não é gratuita, afinal, a película analógica, como define o manual da Kodak, é “vegetal, animal, e mineral”, sendo composta por elementos de origem biológica como algodão, prata, plástico, ossos e pêlos de origem bovina. Este tipo de investigação com o filme não é inédita. Cineastas como Bill Morrison, Peter Delpeut e a dupla de italianos Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi são profícuos em investigar a decadência da película como uma estética. Mas o filme de Maia nos dá o que pensar sobre o futuro do cinema, se considerarmos que uma semana após sua exibição a Cinemateca Brasileira, pela quinta vez, viu seu acervo ser consumido pelas chamas por incúria de nossos governantes.


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