BANNER_Céu-de-Agosto_Julia-de-Souza

“E mostrarei Prodígios no Céu”

Uma enorme nuvem de fumaça rubro-negra avança sobre o topo de uma mata; ao fundo, a melodia de um clarinete rivaliza com o som crepitante de uma queimada. Como veremos, em Céu de Agosto (2020), curta-metragem escrito e dirigido por Jasmin Tenucci, há uma perturbação que se manifesta sobretudo em termos atmosféricos — é pelo ar que navega a aporia de um país que caminha em direção às cinzas.

Lúcia (Badu Morais) é uma jovem enfermeira que vive em um bairro periférico da cidade de São Paulo e que, como fica claro na segunda cena do filme — um chá de bebê na laje de uma casa — está grávida. Nessa mesma sequência, enquanto Lúcia se serve de um copo d’água, um pássaro despenca sobre a mesa diante dela. Lúcia encara com perplexidade o animal prostrado, já sem vida, e percebe que o impacto da queda fez com que o sangue do pássaro respingasse em sua barriga. Como veremos, a relação da personagem com seu corpo prenhe é marcada pelo incômodo e, no limite, pelo investimento em uma certa negatividade desse estado.

Lúcia mora com a avó, Dona Marluce, interpretada brilhantemente por Luci Pereira. As cenas em que as duas interagem, sempre precariamente, são marcadas pelo ruído: o jornal televisivo reporta queimadas na Amazônia e a senhora, que apresenta sinais claros de senilidade, tosse com frequência. “Bebê tá quieto hoje”, diz a avó. “Bebê nem nasceu ainda”, responde Lúcia, acompanhada pelo grasnar insistente de um periquito engaiolado.

Em Descompasso (2011), primeiro curta-metragem de Tenucci, a presença dos pássaros também ocorre sob a forma de eventos desconcertantes. Em um primeiro momento, a sala do apartamento da protagonista é subitamente invadida por uma revoada de canários vermelhos — espécie doméstica e quase ornamental, fruto do cruzamento genético de dois outros pássaros. As mãos da personagem, enquadradas num plano aproximado, parecem tentar, a um só tempo, enxotar e agarrar as aves. Mais adiante, em uma festa, depois de uma tentativa frustrada de socialização, a mesma mulher cantarola para um papagaio; ansiando por uma resposta — um eco, alguma forma de reconhecimento ou identificação —, Lúcia se depara com uma espécie de exílio: sua melodia se perde no ar e não provoca qualquer reação no animal mimético.

A protagonista do primeiro filme de Tenucci carrega o mesmo nome da personagem de Céu de Agosto — e esse detalhe, somado, entre outras coisas, à coincidência das incômodas aparições dos pássaros, indica um senso de continuidade da obra e um comprometimento com um certo campo de preocupações.

Os sons têm papel central em Descompasso: a mediação cognitiva com o mundo, para essa primeira Lúcia (Gilda Nomacce), se dá por meio da escuta, esse sentido irrevogável — o ouvido não tem pálpebras — e da possibilidade de encaixá-los, num movimento composicional, em um sistema — harmonia, melodia, ritmo — que estrutura, ao menos momentaneamente, o caos de um mundo em que os objetos e os estímulos se tornaram puro significante, avulsos de significado.

A configuração do mundo como atmosfera alquebrada e inapreensível retorna em Céu de Agosto, ainda que aqui o campo dos sentidos seja abordado de forma diversa e, sobretudo, os tensionamentos excedam o campo da experiência subjetiva de forma muito mais radical.

Lúcia atravessa os dias tomada pelo desconforto: para além dos delírios algo sinistros da avó, a personagem gestante sofre de vômitos; trabalha em um pronto-socorro — ambiente assinalado por imagens e sons mórbidos — e sente dores difusas e inquietantes que aparentemente não têm ligação direta com a gravidez. Aliás, a vida que a personagem carrega na barriga parece não ser o pivô dessa série de eventos que compõem o filme: mais do que seu ventre, são os buracos da cabeça de Lúcia que se deixam agenciar pelos eventos. A noção de graça da gravidez parece ser constantemente desmentida por Lúcia, que não parece depositar qualquer tipo de expectativa na chegada do bebê e decidiu, a exemplo disso, não saber seu sexo.

céu de agosto 1 julia de souza

Cumprindo um pedido de sua avó, Lúcia vai a uma igreja neopentecostal entregar uma bandeja de salgados. Distante do púlpito, ela observa Nicole (Lilian Regina), uma das fieis, discursar sobre o senso de apaziguamento e confiança que Jesus trouxe à sua vida. De volta à rua, a paisagem noturna da cidade é marcada por toda a sorte de dissonâncias — tosses, pixos, brigas e um protesto tumultuado — e a televisão segue noticiando as queimadas que avançam em ritmo galopante. Se, a princípio, Lúcia reage ao ambiente religioso de forma inaderente e cética, a natureza violenta e desorganizada dos acontecimentos à sua volta parece motivar o seu retorno à igreja.

À medida que essa inflamação ambiental se aguça, numa espécie de condensação atmosférica, a ideia do miasma se impõe como importante chave de leitura do filme: Miasma. 1. Emanação que se atribuía, antes das descobertas da microbiologia, a contaminação de doenças infecciosas e epidêmicas. 2. Exalação pútrida que emana de animais ou vegetais em decomposição. 3. Sensação de ansiedade opressora ou dificuldade para respirar; asfixia, sufocação, mal-estar [Houaiss]. Céu de Agosto condensa a configuração sinistra de um país onde a asfixia, a doença e o obscurantismo extrapolaram, como testemunhamos há pelos menos dois anos, a estranha noite vespertina do Dia do Fogo — 10 de agosto de 2019, data em que, numa ação coordenada, diversos ruralistas do entorno da BR-163 provocaram uma série de incêndios criminosos nas florestas da região.

*

Na porta da igreja, Lúcia encontra Nicole, que fuma um cigarro. De forma aparentemente espontânea, a jovem fiel pousa a mão sobre a barriga de Lúcia e pressagia a chegada de uma menina. Pela primeira vez, a protagonista parece se deixar levar por algum senso de identificação e promessa. Pede um trago do cigarro, e câmera acompanha seu olhar ascendente. “(…) e eis que um trono estava posto no céu”. (Apocalipse 4:2).

No entanto, as condições ambientais doentias não arrefecem: a avó parece expurgar e uma outra pequena morte se impõe a poucos passos de Lúcia. O que vive no alto está sempre prestes a despencar. “Isto não é uma nuvem de chuva”, alguém diz.

“E abriu o poço do abismo, e subiu fumaça do poço, como a fumaça de uma grande fornalha, e com a fumaça do poço escureceu-se o sol e o ar.” (Apocalipse 9:2)

A noite opaca e avermelhada do Dia do Fogo, ponto de ebulição de Céu de Agosto, é um estopim narrativo e simbólico: a partir dali, o céu não é mais abstração, e sim a invasão de uma espécie de ente que avança como que para nos sugar a pulsação. “Te dou meu coração,” diz o pastor. “E ainda assim, não, não. Jesus pede o corpo inteiro.”

A névoa, o vapor e a cerração costumam operar esteticamente em favor de uma economia do incômodo: a bruma que envolve as naturezas-mortas amanhecidas pode ser uma escapada oblíqua à formação de um dilema, assim como a falta de dilema — ou de seu enfrentamento — pode ser maquiada por um evento climático convenientemente excepcional. Mas, em Céu de Agosto, a fumaça não chega a deturpar plasticamente o quadro, nem para nós, nem para os sujeitos da narrativa. Ela não atua como mancha, façanha ou pedra de toque, mas como fundo e formato, como uma espécie de mediação dramática — mas uma mediação quase sem meios, pois vaporosa, sem tentáculos. Afinal, o ar — defumado, acinzentado, ou puro éter aristotélico — só é ar na medida em que nós temos contorno.

Mas e se o ar empedrar? E se o céu se armar, abrangente, estrondoso, irresistível? Seremos nós — já sem buracos, já só buracos — então, o ar?

céu de agosto 2 julia de souza

Se em Descompasso a protagonista falha em sua tentativa de entrar em consonância com a abundância do mundo, a Lúcia de Céu de Agosto parece ser magnetizada pela promessa de uníssono da comunhão — esse efeito de convergência de vozes e de continuidade de corpos que aponta tanto para a reverberação e o crescimento quanto para a neutralização.

Atrás do púlpito, a parede é estampada por um céu perfeitamente azul pontuado por nuvens de algodão. “Deixa, irmã, deixa. Aleluia.”


Leia também:

O coração na boca do mar, por Julia de Souza

Tiradentes 2021: Mostra Foco #1: Mirar horizontes, tropeçar em desabamentos de terra, por Francisco Miguez

Notas sobre Barbara Loden, por Ismar Tirelli Neto

A poesia está morta, longa vida à poesia, por Fábio Andrade

Para que as crianças saibam, por Mariana de Lima