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Pé de pano, arte da fuga

“Cê é doido?” / “Vô filmar mesmo que isso é covardia”. / “Hoje suas cara vai passar no Balanço Geral. Cês vão ver, sô! Cês vão ver”.

Enquadro

A câmera de celular não é apenas instrumento de defesa nas mãos do homem que profere as palavras reproduzidas acima, materializadas num vídeo que ganhou no YouTube o título de “Detido dá golpe em policial e consegue fugir com apoio de populares”. A câmera é arma empunhada rumo a um ataque que se sabe ser desigual. O dispositivo pode não matar da mesma maneira que a pistola empunhada pelo agente continuadamente mata, mas é com a fé nele que o portador do celular coloca o seu corpo em risco, ginga com a situação e publiciza a brutalidade. “Tem nada a ver não, mãe, eu vou filmar”, ele grita para a mulher cujos lamentos ecoam no extracampo, convicto na força da imagem enquanto reparadora daquela violência que ocorre no aqui, no agora.

O vídeo em questão é uma montagem de duas gravações ocorridas no bairro Alto Vera Cruz, periferia de Belo Horizonte. A partir da violenta sequência representada por uma abordagem policial – na cena, um agente usa uma chave de braço para imobilizar um homem negro – o filme constrói uma narrativa que parte da denúncia para alcançar uma inesperada euforia. São, pelo menos, duas câmeras em campo, portadas por homens que registram, denunciam e ainda agem contra a arbitrariedade, de certa forma protegidos tanto pela força do coletivo que o instante engaja, quanto por essa suja e pixelada imagem capaz de operar, naquele lance, alguma espécie de justiça. É mais do que o simples registro de uma tentativa frustrada de prisão. Aqui, é necessário inverter o sujeito do ato: nesta possibilidade de enquadrar o enquadro (agradeço a Fábio Rodrigues Filho por recuperar o trocadilho) é proposto, mesmo sem a intenção de alcançar o êxito, um desvio direcional das forças em confronto.

Há uma constelação que liga a cena já bastante reiterada de George Floyd sufocado no chão com o close no homem do vídeo que, imobilizado pelo mata-leão do policial, escarra no braço que o segura. O momento parece representar mais um indício físico do esgotamento daquela situação (I can’t breathe, aquele homem também poderia ter dito) do que propriamente um ato de teimosia. Existe, contudo, uma diferença fundamental entre os registros: enquanto poucos na cena ousam, fisicamente, interferir no assassinato de Floyd, mantendo uma gravação fria, rígida e distante de um homem negro que definha, uma energia que é comunitária prevalece no Alto Vera Cruz, vigor que também impregna a filmagem.

Combustível

É um jogo que só funciona em conjunto. Se o policial enforca o homem, a câmera se aproxima e identifica o rosto do agressor. Se o spray de pimenta atinge um dos que filmam (e a nós, nessa quebra de quarta parede), outro cineasta está logo à disposição para substituir a imagem borrada. Se um grava de longe o escape do homem detido, registro distante, mal enquadrado pela falta de sorte, o replay da segunda câmera, por sua vez mais próxima, garante a captura completa da cena da fuga, momento de catarse, total subversão, resistência.

E aquela imagem trêmula, capturada entre avanços e recuos, ainda debocha. Pois o escárnio – e a esperança, quem sabe – está justamente na fuga. No glorioso momento em que o então subjugado assume o protagonismo da cena e utiliza-se da força imposta por seu agressor para, num balão, revertê-la a seu favor. É física. Terceira lei de Newton. É a completa exposição ao ridículo da instituição policial, desestruturando, pelo menos ali, pelo menos agora, os símbolos que ornam os agentes da repressão. “É pé de pano, sô”, nem o homem que filma se contém. Perde a noção do perigo e ainda tira sarro. “Corre pit, corre pit”, ele ousa e grita. Vitória de um é vitória de todos – vide a algazarra que ao fundo comemora com satisfação.

Fuga

A gente sabe que a mídia, elegida por um dos homens que filma como o espaço prioritário para a circulação de seu registro, pode não estar ao lado dessa força coletiva contra a coerção institucionalizada – afinal, na maioria das vezes, é ela quem contribui para o imaginário que conecta, instantaneamente, pessoas pretas ao crime. Tal princípio está também presente na descrição do vídeo no canal do YouTube que o hospeda, Uchôa Federal, ex-policial civil lançado neste ano, pelo Patriota, sem sucesso, a vereador da cidade do Rio de Janeiro: “Novamente fica evidente a dificuldade que os policiais tem ao efetuar prisões quando há interferência de populares. Dessa vez infelizmente o detido conseguiu fugir”. Mas a gente sabe também que nem Balanço Geral nem descrição alguma conseguem reverter a força dessa gravação.

E talvez seja esse o ponto a ser reforçado: é a própria imagem que comanda sua narrativa. Sim, ela permite reapropriações e remixes – alguns vídeos postados optaram, por exemplo, em borrar o rosto dos envolvidos -, sim, ela abre espaço para interpretações das mais variadas – uma breve lida nos comentários dos espaços onde o vídeo foi compartilhado demonstra isso -, mas é ela que dá todas as condições para a sua própria leitura. Tem lado e direção, portanto. Revolta-se contra a opressão, mas também regozija-se com o revide. Resiste à intenção, muitas vezes, sem nem quem a produziu se dar conta. Que dirá quem for utilizá-la novamente.

Nessa trama, fico com o comentário de Danilo Costa, feito há quatro meses: “Bem feito kkkkk”.


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