modelocinetica 2020-Recuperado kaique

As coisas mudaram, tá?

O pequeno filme sem título, como é comum nos materiais feitos para distribuição nas redes sociais, vem acompanhado da legenda: “vocês tão fazendo com que o branco sofra racismo!!!”. A afirmação não engana o consumidor habituado à gramática zombeteira dos três sinais de exclamação. No vídeo vemos um jovem negro, kaique brito (é como ele assina) que interpreta de maneira literal – em uma sequência de minúsculas cenas – as declamações de áudio de uma indignada voz feminina que afirma, com ares de objetividade, que o racismo contra os negros está diminuindo, enquanto o racismo contra brancos estaria crescendo.

kaique aos branco

Pensei em contextualizar de onde vem o áudio em questão, mas, se o fizesse, estaria escolhendo o inverso caminho da proposição do vídeo que inspira este texto. Afinal, a resposta de kaique não se endereça a um indivíduo e dispensa o primeiro instinto paranoico da denúncia: há aqui uma estética e uma política de revelação do ridículo das palavras, dessa ficção que poderia ter saído da boca de tantas pessoas. O que interessa é que o corpo que performa faz do enunciado uma base para movimentos e montagens que suspendem cada uma dessas palavras em suas mais elevadas possibilidades de absurdo. Ao falar do branco, kaique mostra o papel branco; ao falar dos valores que estariam se invertendo, o rapaz gira uma nota de 10 reais. Ele joga de modo a demonstrar a fraca sustentação de um discurso que justamente se fixa na literalidade do conceito de racismo e não consegue ver através da palavra. As expressões caricatas que se seguem fragmentam o discurso, de modo a expor o delírio de objetividade presente da ideia do racismo reverso.

kaique texto

kaique dobra a aposta: intensifica a crise exposta pela voz. Intensificar a crise, como já afirmou Jota Mombaça, é uma das maneiras de nomear a norma: “a não-marcação é o que garante às posições privilegiadas (normativas) seu princípio de não questionamento: isto é: seu conforto ontológico”. kaique não apenas nomeia como “hackeia” a norma, torna a violência da norma visível no uso da voz normativa como instrumento e, através dessa subversão, devolve ao mundo a banalidade que teve que ouvir e opera uma redistribuição do desconforto.

Tal elevação ao absurdo, no entanto, chega ao ápice rápido, como algo que é jogado para cima e retorna ainda mais veloz. “Vocês tão fazendo com que o BRANCO sofra racismo!”, ao final, é uma explosão, a exposição completa de um pensamento que se oferece como óbvio, mas é tão frágil que não resiste à remontagem. “As coisas mudaram, tá?”, na paródia de kaique, assume então o tom de aviso e de deboche. No remendo do corpo que faz troça de cada palavra esganiçada, todo o discurso é reduzido ao esvaziamento, como o balão na boca de kaíque, que performa então a ruína da literalidade, do objetividade, do “conceito de dicionário”.

kaique aos pouquinhos

Engolida, frágil e derrotada, a voz está agora presa ao pequeno jogo de 17 segundos. E é quase imperioso que se encare novamente o vídeo logo depois do fim: exposto o ridículo, o filme para as redes serve para ser revisto, repetido até que a ofensa sirva ao ofendido, ou até que o ofendido nem mesmo queira perder tempo ocupando esse lugar. kaique nem precisou fazer um textão.


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