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Um efeito paranoico

Em O Verdadeiro Motivo do Programa do Jô Ter Acabado, o material de um programa em que Jô Soares entrevista o cantor Gusttavo Lima é remontado em um vídeo de três minutos onde a entrevista quase some e dá espaço a uma situação tensa e distorcida por close-ups e interferências sonoras. Uma espécie de filme de terror se desenrola. A presa é conduzida até a armadilha. Não há como escapar porque não há sequer ameaça evidente. É preciso que qualquer coisa aconteça para que as estratégias de defesa possam ser ativadas. Enquanto o sinal não vem, há suspense e dilatação temporal.

Uma leve dessincronização entre som e imagem transforma as risadas do auditório do Programa do Jô em uma manifestação monstruosa de autômatos na plateia. Os recortes na imagem – distorções pelo zoom excessivo, delays e repetições – obedecem a um estranho raccord temporal e espacial, tornando a trilha dos olhares cruzados em trajeto narrativo de algum tipo de tragédia anunciada, ainda que sem palavras. Um acordo tácito está sendo firmado. O público participa do complô, o showman é a vítima.

Tudo em O Verdadeiro Motivo conflui para um efeito de oposição entre o todo e um indivíduo que está fora e ao mesmo tempo no centro da situação, pres-sentindo e sendo o último a saber ao mesmo tempo. Essa exclusão é partilhada apenas pela espectadora desse jogo hermético de gato e rato que é criado a partir de um quase-nada – mais uma das tantas entrevistas do programa de Jô Soares -, que traz no seu título a alusão à verdade, à razão, como promessa de uma revelação que é postergada – senão esvaziada – ao longo de repetições de closes-up em variações mínimas que re-atualizam sempre a suspeita.

Aí começa a trama paranoica do vídeo. Ruídos ínfimos como o som de um gole d’água, de passos ou de um beijo são tão acentuados que constroem já de início o desconforto e a tensão. Esses sons isolados e condensados que abafam o ambiente tomam espaço como sinais sensoriais de algo desconhecido. Não à toa, no ritmo de O Verdadeiro Motivo, os sons são alternados com estranhos silêncios, como nas muitas vezes em que Jô aparece paralisado (será de pavor?) em um milésimo de segundo, olhando para algo fora de quadro em replay nervoso.

O efeito de dilatação temporal – alcançado através do delay entre som e imagem, onde uma informação chega, mas é preciso buscar a outra metade – confunde o corpo, uma vez que o ambiente sonoro parece maximizado em relação à imagem. Não dá para confiar no visível porque o que vem do invisível o desmente e estranha. Paradoxalmente, para prever o que vem adiante, a montagem aposta em criar relações a partir do detalhe, procurando o escondido dentro do aparente. Que esse escondido esteja intrincado em uma trama de relações sociais – pois são sempre os olhares em close-up que serão buscados – alimenta uma relação de confirmação da suspeita a partir do outro que devolve o olhar. É quase uma relação de confiança com o ameaçador.

Mais do que os olhos, é a expressão facial que é buscada pela edição. As feições de riso distorcidas pela imagem excessivamente cropada se aproximam de um arsenal de cenas de complô do mal que é familiar ao campo da ficção, chegando na caricatura de si mesmas. Mas a feição não engana só pela sua capacidade de ser farsante – ela engana porque a própria leitura também trai. Na sua operação de montagem, O Verdadeiro Motivo transpõe a base do reconhecimento da imagem, tirando-a do terreno onde ela foi habituada e colocando-a em um lugar estranho dentro do acervo de impressões do terror. Reconhecemos os códigos do suspense e realocamos o olhar, mas mesmo assim a imagem escorrega e se desajusta na conversão, na impossibilidade de amarrar esses códigos sob um fio narrativo que é negado pela falta de sentido do material. O Verdadeiro Motivo esbanja sua arbitrariedade fabulosa – a arbitrariedade própria da imagem, o seu silêncio incômodo – e a paranoia se retroalimenta.

A todo momento, a atenção se bifurca entre o próprio artificio – a façanha da montagem em si, a brincadeira de alguém na internet – e a tentação de mergulhar na imagem através dos códigos que a ficção ofereceria – buscar o porquê, o como e o que se segue. É o sentido do termo “pisar em ovos” que parece fundir a experiência da espectadora à experiência da obra, tateando pelos sinais, buscando o feedback. Como quando Jô Soares vai fazer uma pergunta ao seu entrevistado, mas a montagem corta para um gesto de “não” que o garçom faz com a sua mão e a pergunta é prontamente interrompida, ficando sem resposta. Ou quando Gusttavo Lima toca apenas um acorde no seu violão e a música termina em uma salva de palmas da plateia.

Que a mídia televisiva possa ser assustadora e que os programas de auditório tenham um quê de ritual repetitivo e farsante, ou que as risadas tenham algo de autômato, é plausível, mas o festim diabólico que se coloca no vídeo a partir dessa situação de mediocridade é de outra ordem. Nos tornamos presa, e com consentimento, da tentação de construir sentido lógico-narrativo em uma imagem que explodiu seu conteúdo original e cujo grande trunfo – o seu verdadeiro motivo – é exibir-se em sua transmutação cheia de armadilhas.


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