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para Rodson, com amor

Há que se agasalhar bem a sensação de perda, Rodson ou (Onde o Sol Não Tem Dó) (2020) é um luminoso excesso. A tela suporta muito mais do que nela cabe, alguma coisa vai escapar aos olhos. Rodson nunca será capturado por inteiro. O filme de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Orlok Sombra é efeito de um acúmulo. Nascido de uma longa investigação vivida pelo coletivo Chorumex desde 2015, Rodson é o terceiro acontecimento da Trilogia do Terceiro Milênio, precedido por Tsunami Guanabara (2018), de Cleyton Xavier & Lyna Lurex e Os anos 3000 eram feitos de lixo ou (Quando a dignidade da raça humana se afogou no chorume estático da arte da hipocrisia) (2016), de Cleyton Xavier, Clara Chroma e Ana All. O acúmulo reaparece enquanto motivo do filme em suas formas, concebidas desde um cruzamento entre as tantas estradas que Rodson percorre.

A maneira como a sequência inicial de créditos encerra dá uma pista sobre o que virá, depois de navegar por uma galáxia, a tela é preenchida pelo interior de um corpo celeste até que tudo fique cego de luz. Conhecemos a casa, o pai golpeia um pedaço de madeira com uma faca. Rodson é esculpido por um domínio primorosamente bruto das ferramentas. A mãe observa e conversam, ela e o pai, em idiomas diferentes. Rodson é um filme de muitas línguas. A banda sonora marca o peso das relações domésticas. E aos catorze minutos de filme, Rodson rompe com a Casa e descobrimos que pai e mãe eram só um ponto dentro do mapa que será exaustivamente gasto pelas pegadas da criança crescida.

O pavimento de cada conflito se soma à exagerada fartura de presenças, luzes, sons, cores e grãos. E ser um excesso sem fim significa também ser uma falta inesgotável. Falta que se verte em fome e, novamente, na busca por um excesso. Rodson nos convoca a sentir esse apetite pelo experimento de qualquer coisa que é muito vasta. Do inapreensível, guardo cinco gestos que me fizeram sofrer, sem dó.

corpo vulnerável

A pulsação pré-adolescente de se estar diante de uma máquina descobrindo o passo a passo de como piratear arquivos. Essa sensação frente a todos aqueles botões de download. Pode ser que o clique aconteça no botão errado, e um vírus chegue. Para bem embarcar na jornada é preciso se aceitar corpo frágil, corpo fraco, muito menor que o perigo e depois muito maior, porque se lança com desejo ao risco. A preparação do corpo para assistir Rodson é a mesma de quando aprendemos que podemos tirar outras lições da água.

[“Porque se juntar à Marinha se você pode ser um pirata?”, mensagem do crack no pacote adobe]

a orquestra de pianinhos sintetizadores

Cinema mudo, ou aquilo que nunca existiu, quando o filme chegava na companhia de instrumentos musicais durante a projeção. O filme acontecendo duas vezes, assistido na tela e nas teclas e nas cordas e no sopro das tocantes. Vendo Rodson uma cena vívida: uma orquestra de pianinhos sintetizadores, suando chorume nas teclas enquanto o filme passa, sentindo as imagens em música. A dimensão da trilha que é constante reacontece o filme.

o caleidoscópio passando de mão em mão

Algo se parece com uma roda de pessoas naquela brincadeira de escola em que alguém começa a contar uma história e de súbito interrompe a narrativa para que a pessoa ao lado siga contando. É uma brincadeira que guarda um potencial imenso de rinha, porque se começa uma história pra entregar pra outra, tem aí o perigo de não saber que contorno vai ganhar na próxima boca. É uma brincadeira que guarda um tanto de graça quando se entrega ao jogo de extravios e bagunças que a teia pode criar. A narrativa da jornada de Rodson, que até admite certa linearidade, é o corpo entrando nesse jogo, atendendo aos chamados e seguindo pelos descaminhos de uma viagem que só começa. Sem se escrever em uma caligrafia só, o filme é uma roda de gente passando um caleidoscópio de mão em mão.

a mão pedindo carona

Isso aos vinte e um minutos de filme, depois de um tanto de firulas e da demonstração de um domínio absoluto das ferramentas, o amadorismo segue se reafirmando por paixão.

Uma mão pede carona. O gesto que antecede as infinitas estradas. O braço em riste, os dedos posicionados, e um zoom abrupto, o foco oscilante, buscando, buscando, o tremor contínuo, voluntário, vulcânico daquela mão. A precariedade daquela imagem, a quantidade de grão. Aquela mão pediu carona a mim e eu dei. Entra.

o riso preso

Por último, guardo essa coisa que talvez nem tenha sido. É um talvez, que marca. É algo que achei que vi – tem um pouco disso no filme, como se Rodson, por não se fazer caber em forma alguma, acolhesse essas imagens que nem filme são. Foi filme? Foi eu? Foi o rádio que a vizinha escutava? Foi a lombra que tive aos 17 anos e agora decidiu voltar? Talvez eu tenha inventado essa parte – Duas vezes achei que vi um riso preso. Na festa, na sitcom, uma mão cobrindo uma boca que teima em rir. Se é roteiro ou não é me parece a última discussão que interessa, o riso preso é alguma coisa grande. O riso preso é uma negociação do corpo com o corpo. A boca pede, alguma coisa freia, a mão tenta ajudar a esconder, ele acontece. O riso preso é esse acontecimento que, bem aqui, delata um cinema feito em alegria. Negociei com meu próprio corpo enquanto assistia a Rodson, os deslimites do risível. Frente ao desencanto do terceiro milênio que já nos escalda perto demais, o riso preso é uma das coisas mais livres que experimentei durante a sessão.


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