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A rústica tensão do jogo

A Mesma Parte de Um Homem (2021), terceiro longa-metragem de Ana Johann, é um filme que aposta na pujança dramatúrgica que cada cena é capaz de oferecer. Como se estivéssemos assistindo a micropeças, as cenas são costuradas pelos arroubos e pelas tensões que atravessam as relações entre os personagens que transitam entre o espaço recluso da casa e da amplidão da serra. A mise-en-scène lateja entre a constrição, as breves amenidades e os rompantes de raiva e, conjugada a um enredo que escala nos diálogos, faz do mistério e dos conflitos ponto de partida para sua edificação.

O ambiente do interior paranaense, onde se passa o filme, é palco de duas mulheres (mãe e filha) que se ajeitam entre o medo e a liberdade frente a um universo inexplorado. A casa, portanto, é o espaço cênico central, onde a mãe, Renata (Clarisse Kiste), se encastela e do qual a filha Luana (Lais Cristina) deseja se desvencilhar.

Entre Renata e Luana paira não apenas o abismo entre as maneiras pelas quais ambas se relacionam com o ambiente doméstico, mas também a existência de dois homens que bifurcam a narrativa: o pai Miguel (Otávio Linhares) e Lui (Irandhir Santos), o homem sem memória. O início do longa é marcado pela masculinidade do pai de família, Miguel, e por sua morte trágica em um acidente de carro. A cena inaugural de pai e filha caçando, que sugere um possível abuso do pai, assim como a brutalidade de Miguel que ordena sua mulher a fritar mais um “ovinho” quanto ela ainda está comendo, fornece material para que compreendamos que se trata de uma redoma familiar organizada pela misoginia e pela autoridade da figura masculina. Ao passo que a esposa se recolhe ao lar, Luana, figura tomboy, desbrava o mundo roceiro. A mise-en-scéne, ainda muito rígida, se dá na imobilidade em torno da cozinha e da mesa de jantar. Com exceção dos momentos em que Luana foge em rompante, a primeira parte do filme se restringe à organização constrita das cenas, sempre tensas.

A morte do pai de família abre, ainda no início do filme, para o agravamento das posturas dessas duas personagens femininas. O medo, para Renata, antes presente tanto na figura do pai quanto no mundo lá fora (do qual o pai supostamente as protegeria), se aprofunda e se pulveriza a partir do acidente do cônjuge. Em Luana também é incutida a vontade ainda maior de se desgarrar daquele espaço. No ínterim do antagonismo de posturas, surge Lui, como se para revolver o solo fértil que seria cinematograficamente a relação conflituosa entre mãe e filha.

Lui aparece no crepúsculo, machucado, na porta da casa de Renata logo após a morte do marido. Como se tivesse sobrevivido ao acidente ao qual o pai sucumbiu, Lui é ajudado, a contragosto de Renata, pela filha e por ela própria. Lui não tem memórias do que aconteceu, e, em estado de amnésia, é absorvido por aquele núcleo familiar. Renata e Luana passam, então, a inscrever Lui na figura paterna: como um oposto-complementar do pai morto, o substituto opera em função da história e do passado que as duas mulheres conferem a ele. A pretensa introjeção do mistério por parte das três figuras naturaliza o absurdo da situação. Lui a todo momento se pergunta de onde vem, como é sua relação com seu pai, onde fica a cidade, e Renata e Luana se dispõem a reconstruir esse homem. O importante é a agência dessas mulheres sobre um homem-tábula-rasa, que passa a agir como pai e marido de completas estranhas. O jogo da dominação inversa entre mulher-homem, filha-pai, esposa-marido é o que gerencia as escolhas poéticas de A Mesma Parte de Um Homem.

Lui tem sotaque diferente, é bonito, letrado. Morou na Alemanha e sabe a pronúncia correta da palavra “Spätzel”. O doppelgänger do marido morto passa, então, a ser o objeto que permite a transformação de Renata. Não apenas no que tange à descoberta do prazer e da prosa, mas também como corpo estranho que evidencia, na sua distância com aquele universo, a proximidade entre mãe e filha. O constrangimento proveniente do deslocamento de Lui, que escolhe, também, a fabulação coletiva acerca de sua existência, é a chave para a autocompreensão de Renata. O truque proposto pelo filme é esperto e alicia o espectador para dentro da trama meio misteriosa, meio farsesca.

Apesar da incorporação completa de Lui na personagem que se cria dele mesmo, o estranhamento constante entre as personagens incute, ao filme, uma névoa tensa, como se o dispositivo estivesse sempre prestes a ruir. Como se digerisse a fragilidade e o medo que rondam aquelas personagens, as encenações estão sempre a um passo da desestabilização: os diálogos parecem desconjuntados nos tempos entre perguntas e respostas. A natureza do que se questiona parece não ser decifrada pelo destinatário, e se há um primor pela dinâmica das relações na amarra do enredo, a atmosfera melancólica está no descompasso da comunicação.

A Mesma Parte de Um Homem soa como um filme de disfarces. Os arranjos farsescos compactuados entre as personagens ressoam nas paredes que edificam e constringem as cenas. Perturbando a aparente performance naturalista, o estranhamento desse universo para com seus habitantes e dos personagens entre si permite o aparecimento de lapsos de entendimento, de discordâncias silenciosas. Os anteparos erguidos pela mise-en-scène são similares àqueles que se ajustam à história forjada de um homem em estado de amnésia, que não apenas é moldado como, também, se auto- inflige essa persona outra.

Ao invés de provocar um rompimento formal a partir de uma estética antinaturalista ou de dramaturgias fora do tom, o filme de Ana Johann é esquisito nos vãos-livres. Nas lacunas de uma memória, naquilo que não se responde e no desconcerto mútuo, A Mesma Parte de Um Homem encontra sua suspensão.

Renata, ao fim do filme, se dirige a Lui e o convoca para ir ao médico. Como se suprimisse toda a encenação da família pós-luto do pai que incorpora um novo integrante, Renata une o momento, ao início do filme, em que Lui está machucado, ao fim do filme. Havendo retirado desse homem o que necessitava e compreendendo que o homem sem memória começa a estabelecer-se na função de organizador-dominador, suspende-se a encenação. Levantaram-se as cortinas, sem aplausos. Mãe, filha, cachorro e sapo vão à cidade deixar Lui na porta do hospital, e seguem viagem na caminhonete azul, serra sulista adentro. O destino não importa, desde que não mais se encene, desde que as regras do mundo sejam comportadas nessa nova relação que acontece entre as duas mulheres. O jogo precisava ser jogado, e elas definitivamente ganham.


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