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Cantar no escuro, aprender a voz da noite

Fazer o caminho de volta demanda um corpo que guarde a estrada a ponto de saber narrá-la. Regressar – seja a mulher à sua casa, ou o cinema ao exercício de si – é tarefa que estremece o mundo tal como está. É justo aí, no instante do retorno, que o terceiro longa de Ary Rosa e Glenda Nicácio acontece. Passados 15 anos de distância, quatro irmãs regressam à sua cidade natal para sentarem-se juntas em uma só mesa, no correr de uma só noite. A arquitetura do filme nos é entregue como um anfiteatro: Geralda (Wal Diaz), Rose (Arlete Dias), Bel (Maíra Azevedo) e Vilmar (Jenny Muller) dividem a arena enquanto esperam o anúncio da iminente morte do pai se concretizar. Em meio a conversas a céu aberto, Até o Fim (2020) se debruça em seu trabalho de sofrer o regresso, abraçando pelo menos três caprichosos esforços: o de lançar-se ao experimento da voz, o de desenhar a vida em retrato e o de propor um encontro com a música.

Geralda revira um quarto escuro procurando por alguma coisa que não sabemos o que é. A cena aqui se mantém no mesmo enquadramento, quase trêmula, distante como em nenhum outro momento. Até o Fim se inaugura com essa busca do que mais tarde descobrimos ser uma carteira de cigarro, que permanecerá sumida. O que será de fato encontrado já estava ali desde o início, encoberto, ocupando a frente do primeiro plano do filme, um acordeon guardado em sua capa empoeirada. O filme enseja a devolução de vida, em sua própria forma, ao instrumento que até aqui repousava no abandono. Em oposição à rigidez da primeira câmera, a cozinha de Geralda nos é mostrada na distância mínima, com toda irregularidade de movimento e iluminação. No preparo de uma moqueca, Geralda se corta com uma faca, xinga e caminha para fora do restaurante ainda cheio de clientes. Ao alcançar a beira do mar senta-se, mirando a água. Enquanto o corte de seu dedo sangra, anoitece. Geralda está só, quando Rose chega para lhe fazer companhia. Com a chegada dessa presença o desejo e a busca pelo cigarro se tornam coletivas, e só aí é que encontram o acordeon. Era preciso mais de uma para topar com o instrumento. Daqui em diante, aguardaremos, entregues à conversa, o momento de entrada do som do fole na noite.

Tem que ter gogó

Glenda e Ary realizam um cinema vocal. O palco das irmãs convoca a insurreição da voz em toda sua tactilidade. A câmera precisa ser móvel, dançante como a conversa, procurando pelas mãos entre as frases, encontrando as mãos, permitindo-se perder o foco. Esses momentos de concentração nas mãos – o quase-sopetão do reenquadramento no meio da fala – não se portam exatamente como planos-detalhe. É uma espécie de corte que acontece dentro do próprio plano. A vocalidade deixa rastros no corpo inteiro: não seria Até o Fim não fosse a constante presença desse rastreamento. A câmera medindo os rastros da palavra no corpo, no instante em que ela é dita em voz alta. A movimentação nunca cessa, reparte nossa atenção, nos damos conta da conversa em todas as suas frestas.

Como filmar uma conversa? Como acolher os tropeços, as passagens não-anunciadas de um tema a outro, o giro da chave num susto, o tom mudando antes que a frase termine? Há uma necessidade vital da voz pela tomada da palavra e da palavra pela tomada da voz, e o filme é tomado por elas, se tomando. O evento e o experimento da voz em Até o Fim se dá pela boca e pelo ouvido, ao passo que o filme mostra o som de quem fala e guarda os olhos de quem escuta.

A luz oscila, a luz acaba, a luz volta, a voz é sem fim. Seja iluminada por um candeeiro quando falta energia no bar, ou envolta por um cor-de-rosa fantástico que banha as sombras na cozinha, a gramática do filme segue em seu manejo da oralidade. Narra-se o passado, sente-se o choro, o riso, experimenta-se o grito, faz-se as pazes, conta-se a história de Logun Edé com toda a pompa que lhe cabe, numa performance de pé, em cima da mesa. As camadas de palavras se acumulam, se sobrepõem, duas, três, quatro, dez mil vozes a um só tempo. O calor do filme nasce naquilo que os próprios realizadores chamam de “embocadura” das atrizes.

A vida em retrato

Eis a ideia de retrato: expressão de pintura que ensaia uma fisionomia forjada a partir de modelo vivo. O que puxa é a atenção ao detalhe, o motivo é mapear um corpo e guardar algum segredo. Pensar o retrato é lembrar do enigma dos sorrisos, dos objetos escolhidos para posar junto que, encantoados, contam algo do retratado em tom de sussurro. Entregando-se à batalha que é conceber um rosto, Até o Fim, de uma só vez, fecunda logo quatro. O filme se debruça no desenho cuidadoso e singular do perfil das irmãs, se opondo a esse algo que “pesa sobre a história do cinema: uma certa uniformização generalizada das personagens femininas, em especial negras” como bem lembraram Juliano Gomes e Júlia Noá em conversa sobre o filme, na Mostra de Tiradentes de 2020.

Ainda que o filme tenha isso de acontecer simultâneo – a mistura das conversas e a inquietação da câmera que tudo toca – há um tempo individual, destinado a conhecer cada uma das mulheres que ali se expressam. A demora nos rostos se dá na proximidade do primeiro plano, um estreitamento do mundo para a aprendizagem de uma presença. Outro gesto constante é o cuidado em guardar a anatomia do lugar que as rodeia, o valor dos objetos que estão diante delas, um copo de cerveja, um doce de abóbora com coco, o som da fogo-apagou cantando ao fundo, a lâmpada fraca no topo da árvore, a beira do mar. A composição do quadro é toda feita de um manuseio artesanal das técnicas, sempre as mãos, dentro e fora do quadro.

Um encontro com a música

Não paro de pensar em como é o instante em que se concretiza o convite para que uma atriz cante. Com que corpo a pessoa que atua recebe a notícia de que sua personagem canta? Qual o volume de entrega que esse convite demanda? Me parece um convite querido por Glenda e Ary, que desde Café com canela (2017), criam personagens que cantam. Há ainda uma maquinação do filme para receber a música em sua própria forma, destreza que em Até o Fim se materializa de maneira fulminante no findar da história.

A tecla preta é a matéria inexata do piano, o lugar entre. A tecla preta é um semitom, mistério desafixado de nome, que desvia dos batismos e se refaz a cada escala. Até o Fim dedilha a tecla-tela-rosto-preto quando na última sequência do filme assistimos: o retrato das irmãs aparecendo, tela sustenida, rosto bemol, a um só tempo. Ajuntados os retratos, a tela preta se sustenta por dois longos minutos, a canção de Moreira, “Silêncio Odeon” é cantada por Wall e Arlete, a subida dos créditos fica em suspenso, ainda é filme demais. O semitom é a menor distância: “meu peito acordeom /quando você chegou”. O filme, peito aberto, ampara a chegada e a partida daqueles rostos, até que já nem os vemos mais. A música existe porque há o silêncio. O cinema acontece nessa noite da imagem.

O semitom é um acidente. E um pequeno abalo toma nossos olhos quando os olhos do filme decidem fechar-se. Os três esforços de Até o Fim se forjam em língua acidentada, entrecruzando-se na escuridão do plano final. A voz, primeiro instrumento que o corpo aprende a tocar, quando num grito a criança inaugura sua chegada no mundo, é experimentada mais uma vez de olhos cerrados. O desenho da vida em retrato, que consiste nessa dedicação a conhecer o mais inacabado dos terrenos – um rosto – só poderia ser com as luzes apagadas. Porque sentir um rosto no breu é o mais cabal dos toques, quando os olhos nos são arrancados e é preciso acordar todos os outros sentidos. A manifestação das faces de Geralda, Rose, Bel e Vilmar persiste até quando já não as enxergamos mais. E por fim, o encontro com a música: acordeom foi feito para tocar sem direcionar o olhar às teclas. Respirar no compasso do fole é saber de cor as distâncias, aprender o espaçamento das teclas, o caminho que os dedos precisam abrir e fechar para que a nota se cumpra. Quem bem conhece, toca de olhos fechados. Até o Fim é solo incerto, de relevo a ser percebido enquanto se anda. E se fazer o caminho de volta demanda um corpo que guarde a estrada a ponto de saber narrá-la, escolher regressar cantando no escuro é lançar-se no não-saber estrada alguma. É permitir que a estrada se faça em todas as cavidades por onde vibra a voz.


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