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Cinema de Gira

Para esta conversa aqui, buscamos, em termos de método, nos aproximar de certas características que encontramos nos filmes dirigidos por Ary Rosa e Glenda Nicácio. Optamos, no texto, por nos deixar contagiar pela oralidade latente e por um inclinação de método, onde o ritmo, e uma certa velocidade e dinâmica das ideias prevalecessem sobre uma explicação esclarecedora do assunto. O que vocês vão ler é mesmo um diálogo, um chat, uma chuva de insights, e achamos por bem que conserve essa forma, de certa maneira “incompleta”. Esperamos que a leitura possa conservar pelo menos um pouco do prazer da feitura dessa troca.


Então: Glenda Nicácio e Ary Rosa conectam, de forma fluida e decisiva, a máquina cinematográfica a uma sensibilidade territorial até então desconhecida, que envolve traços, trejeitos e olhares oriundos da vida comum, da negritude nordestina, baiana, negra…

É curioso como isso acontece de um jeito diferente em cada filme. Ao mesmo tempo, não podemos chamar de “espelhamento”, essa sensibilidade territorial

Essas questões e personagens não surgem a partir do desenho por vezes excessivamente geométrico de uma “representação”, mas de um olhar (im)propriamente cinematográfico. As coisas e fenômenos não acontecem no discurso, ao contrário: muitas vezes o “discurso” é até ironizado (“inventiiiiiiiva…” diz a irmã mais velha em Até o Fim, de 2020)

Há a presença do discurso, mas, ao mesmo tempo, inúmeras forças de contraponto a ele. O que quero dizer: se discursa, sim. É um cinema que muitas vezes recorre ao discurso direto, até “dá recados”. Mas o “modo” me parece que prevalece.

Falando em modos, em uma analogia pobre entre a religião católica e o teatro ocidental, observa-se na liturgia cristã a missa de desenrolando no palco italiano, a comunhão se dando a partir da relação de aquiescência entre emissão e recepção, uma relação de transmissão da graça através da palavra, de uma organização ritual marcada pelo controle do movimento, pela organização do espaço, pelo controle semiótico. Um cinema cristão, protestante, se organiza a partir de pressupostos de precisão da emissão. Mas e um cinema que não nascesse do Vaudeville, do palco italiano e mesmo da relação tela-plateia? Um cinema que nascesse num terreiro de Umbanda em Jacarepaguá. A Gira é como o pagode de mesa, a comunhão implica em um investimento sócio-libidinal, em coletividade. Seria possível vislumbrar um cinema cuja relação com o espectador se aproximasse do tipo de partilha que se pode acessar em um ritual de candomblé ou de umbanda.

É uma boa hipótese no caso da Rosza Filmes.

Um cinema de gira? Cinema de roda: como um dispositivo de liberação coletiva. A forma da roda, a roda gira. Seus membros giram em torno da roda e em torno de si mesmos. A tonteira abre o espírito. Deixa a gira girar. O cinema faz girar o mundo, é indústria. Mas na ponta solta, na quarta parede, há uma película, um muro.

Soa bem preciso sobre o que acontece na filmografia deles. É uma estética da ponta solta. Inclusive os movimentos de câmera no Até o Fim) são radicalmente isso. O tempo todo. É um cinema da língua solta. Língua da fala, do sabor, do lamber, língua pode ser um verbo também. Trata-se de um cinema afeito ao linguajar – como verbo.

Trata-se portanto de outros registros, sensíveis e ensaísticos, do cinematógrafo: o cinematógrafo roda de samba, roda de bate papo, lavação de roupa suja e gargalhadas cúmplices; a fala específica das baianas, a palavra falada, performada como efígie e como indício de um turbilhão de pirações, não somente como discurso ou narrativa; os refrões na roda de samba, a cerveja e o copo de cerveja como personagens. O cinema como ritual afrobrasileiro de sondagens subterrâneas dos estigmas e de um registro afetivo contraditório, machucado, confuso… Porém, forte e purificador: os mestres loucos: esgarçamento da sensibilidade como processo de purificação.

É crucial ter o contraditório na mistura. O contraditório e o não aparente. Essa linguaralha voraz e sua dinâmica polirrítmica são para fazer aparecer.

Lembrei duma coisa que Negro Léo me disse, que Charlie Parker falou sobre a improvisação: algumas notas chegam à superfície, mas há o clangor das variações internas e epidérmicas. O que é mostrado reivindica o que não é mostrado e vice-versa. O que não é mostrado? Turbilhão sensorial: de afetos e afecções, da percepção, das sensações e da imaginação.

É um cinema umidificado pelo vivo, tem um vitalismo muito particular, que afeta inclusive os mortos. Acima de tudo, um drible nas expectativas, no bom cinema, no cinema correto, no cinema curado. Acho quase enganoso quando vejo falarem que é um cinema afetivo, de afetos. Entendo, mas…

Distinguir afeto de afecção no cinema: afeto é o que varia, nem sempre no domínio do que é mostrado. Afecção é o que é mostrado, no caso desse cinema, a objetividade da composição e a transcorrência dos acontecimentos. A lacunaridade se encontra não na “narrativa”, mas naquilo que escapa das expectativas.

É uma ética do drible. Drible no quê? Na moral, no estabelecido, nos bons sentimentos. Ao mesmo tempo, um cinema da convivência. E dos embates, inclusive. Em todos os filmes os embates são um signo fundamental.

O confronto não-trágico, o confronto duro, mas submetido também a uma cumplicidade amorosa. Não há Édipo, não há culpa ou, pelo menos, do peso da culpa não se infere necessariamente um amargor infinito. O amargor volátil que comporta a gargalhada e a purificação. Esse cinema reivindica a cumplicidade.

A volatilidade é o sangue desse cinema. Variação acima de tudo, liberação coletiva.

Não há portanto os registros comuns da afetividade dos circuitos de cinefilia e crítica brancos. É preciso notar que esse giro do cinematógrafo se distancia frontalmente dos modelos de apreensão estética do racial.

Sim. É um cinema que está sempre acima ou abaixo do bom gosto. Acima ou abaixo do humano. Nunca na medida. A cabeça do ritmo na síncope.

Afirmar que esse cinema é “cinema de afeto” é mais uma estratégia racista de associar a experimentação da imagética negra (ou xs negrxs mesmos) a uma lógica de extravasamento, de associação a uma afetividade da terra, em tudo oposta à “lógica”, ao “rigor” etc. Lembra Fanon criticando os poetas da Negritude.

De fato essa oposição não procede. Não é um cinema de oposição. Mesmo o que parece “errado”, segundo as convenções, é embebido de tamanha convicção que se impõe como poética.

Os erros? São quebras de expectativa, construções propositais para forçar a emergência de novos registros sensíveis dentro do cinematógrafo.

É um cinema da abundância. Compadre Washington não estava brincando não.

Não regula mixaria. Não há discurso elíptico: abundância, extravasamento. Anti-festival europeu. Mais próximo de Apichatpong e Getúlio Ribeiro. Mas sem emular nem um nem outro. Próximo no sentido de uma gramática que se forma a partir de caracteres singulares e não de códigos consolidados como signos de aceitação.

Isso eu acho decisivo. É o oposto radical da moral da Retomada e de seus sucessores. É anti -cosmopolita. Anti-linguagem da cartilha de festivais. É Bichaponga do Recôncavo. Sem culpa e sem vergonha.

Um cinematógrafo territorializado (os trejeitos, os sotaques), e desterritorializado (os efeitos dramáticos, as frases feitas, os confrontos excessivamente polarizados). Assim como em Apichatpong, a sensorialidade e a intelectualidade se encontram.

Uma máquina de cinema muito particular, altamente conectiva. Pegajosa e contagiante, que engole as convenções e as revira com gosto e prazer. Um cinema de gira, explorador das velocidades do visível e do invisível.

É isso.


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