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Valter Filé e a ficção da imagem popular

A experiência do vídeo e da TV popular no Brasil está diretamente associada ao processo de redemocratização que culmina com a Constituição de 88. Um grande fluxo de aporte financeiro internacional, através de agências e instituições como Oxfam Novib e CAFOD (Catholic International Development Charity), acorreu ao país durante este período, visando implementar uma plataforma de iniciativas voltadas para a reconstrução dos Direitos Humanos e do debate público no país. Surgem experiências de TV comunitária como a TV Viva, em Olinda, a Associação Brasileira de Vídeo Popular (ABVP) em São Paulo, e a TV Maxambomba na Baixada Fluminense, ligada ao Centro de Criação da Imagem Popular (CECIP). Dirigido por Claudius Seccon, pelo cineasta Eduardo Coutinho e pelo professor Breno Kuperman, o CECIP concentrou diversas iniciativas no sentido de utilizar o audiovisual como interface prática, capaz de encaminhar e trabalhar questões fundamentais relacionadas à recomposição do campo democrático que havia sido interrompido pela Ditadura de 64.

A atuação de José Valter Pereira, mais conhecido como Valter Filé, serve como fio condutor que nos auxilia a compreender não só as estratégias e dificuldades que marcam a eclosão da TV Maxambomba, mas os modos de intervenção em favor de uma ampliação da horizontalidade das relações, de experimentação com a linguagem e da relação com as comunidades envolvidas. Através de sua presença, percebemos que, conforme os embates concretos e os desafios da realidade se impunham, faziam desmoronar as ilusões pedagógicas e as expectativas institucionais herdadas, por um lado, da visão burocrática dos financiadores internacionais, e, por outro, pelo nacional-folclorismo, ambos investidos por uma visão “pedagogeira” do trabalho social. A atuação de Filé aponta para a superação destas duas tendências, através de procedimentos cuja complexidade fora marcada pelas dificuldades da produção audiovisual, pelo improviso como estratégias de relacionamento com os espaços públicos e, por fim, por uma abertura ao diálogo horizontal, capaz de produzir uma variedade de efeitos que, ainda hoje, nos desafia a pensar.

Valter Filé nasceu em 1955 na cidade de Jeremoabo, no sertão baiano. Professor, educador, comunicador que trabalha com as relações do audiovisual com questões culturais, políticas e raciais. Iniciou sua participação na TV Maxambomba em 1989, quando a equipe passou a ser formada com moradores da Baixada. Entre 1989 a 1998, atuou como técnico de audiovisual, produção e treinamento em produção de vídeos para a TV Maxambomba, além de ter desempenhado a atividade de pedagogo para o CECIP entre os anos de 1992 e 1999. Em entrevista, declarou, entre seus principais interesses, as relações entre as culturas, o audiovisual, a produção da igualdade em meio às questões raciais no Brasil. E, de fato, um olhar sobre sua trajetória mostra uma imbricação original entre esses registros, que funcionarão como diretrizes temáticas de projetos como a Maxambomba, mas também em outras iniciativas, entre as quais o Repórteres de Bairro (1994), onde moradores da Baixada produziram conteúdo sobre sua própria região; e a TV Pinel (1996), que resulta nas ações produzidas pela Maxambomba no Hospital Psiquiátrico Philippe Pinel, no Rio.

Filé chega na Baixada de forma súbita, frutos dos deslocamentos impostos pela longa história de remoções cariocas. Veio da Bahia e, na infância, morava em Vicente de Carvalho, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Desde sempre envolvido com as Escolas de samba, os Pagodes, o Movimento Black Rio, Filé partilhava desse espaço-tempo tomado de maneira transversal por uma cultura negra que vibrava sobretudo na música. Sua família se viu obrigada a mudar-se para Belford Roxo, município da Baixada, justamente quando o metrô inicia suas obras para a construção da Linha 2 em direção à Pavuna. Para o jovem Valter, esta mudança era sentida como uma espécie de contratempo que o afastaria de seus amigos e interesses principais. Porém, este mesmo jovem se surpreende positivamente quando percebe a Baixada como um lugar cheio de vida, onde, na ausência de tudo, a população dava “nó em pingo d’água”. A percepção da potência de criação e resistência da região muda sua vida e servirá de base para todos os movimentos subsequentes.

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A TV Maxambomba nasce em meados dos 80, na situação da redemocratização. O nome da TV adveio da antiga nomenclatura da região, extraída da corruptela do termo machine pump — motor de tração com o qual se fazia o transporte da produção do engenho — que batizou, ainda no XIX, o rio e a serra que perfazem a história de Nova Iguaçu, importante município da Baixada. Nasce, portanto, marcada pelas dificuldades estruturais da região, como também pela já mencionada tendência internacional de aporte a reconstrução da democracia latino-americana; nasce incentivada pela experiência da TV Viva (Olinda, 84), responsável por abrir o debate sobre TV comunitária; e, por fim, surge para promover não só o aprofundamento da relação da comunidade com sua própria região, como também reverter a tendência incentivada pela Ditadura de desvalorização e esvaziamento do espaço público — a Maxambomba queria, ao contrário da Globo, tirar as pessoas de casa na hora da novela. É curioso observar que nesses três registros, a atuação de Filé parece propor uma radicalização da relação entre o processo e o produto das ações.

As experiências com a TV Comunitária no Brasil são diversas, possuem características próprias, assim como um papel importante a desempenhar em cada local de atuação. A maioria das experiências se dedicavam ao âmbito da TV popular, com programas educativos e institucionais voltados para a formação de público e produção de debates acerca de questões políticas e relativas aos Diretos Humanos. Entretanto, na medida em que buscava uma conexão arbitrária com o que se considerava “o povo” e o “popular”, de forma muitas vezes ilusoriamente unívoca, a formação da TV Comunitária brasileira demonstrava, ao mesmo tempo, a influência do legado e do debate social como fora colocado pelo pensamento brasileiro acerca dos sentidos do nacional-popular — de Sergio Buarque e Gilberto Freyre a Raymundo Faoro e Florestan Fernandes. Como reagir à mudança de perspectiva trazida pela Abertura? Na visão de Filé, a resposta residiria no recurso à experimentação como abertura para a improvisação e a substituição da ideia de TV Comunitária ou TV Popular por “TV de Rua”, baseada no seguinte preceito: se não se pode ter a melhor imagem, a difusão adequada ou a qualidade necessária para circular nos festivais de cinema, pode-se usar o audiovisual como ferramenta para encontrar as pessoas, o tal do “povo”, e criar um território comum, uma relação de troca real com essa comunidade.

O trabalho com as chamadas TV Comunitárias trazia contradições semelhantes aquelas que se identificavam as ações do Centro Popular de Cultura que foram interrompidas pelo golpe de 64. A salvaguarda dos valores considerados populares por uma elite, a visão paternalista, a tarefa reiterada de se colocar em situação de “salvar o povo”, ensiná-lo a sua própria cultura. Filé foi crítico ao modo como essas organizações lidavam com as representações do popular. É neste sentido que a presença e a prática de Eduardo Coutinho foi fundamental para a Maxambomba. Quando foram filmar Boca de Lixo (Eduardo Coutinho, 1994), a equipe se espantou com a primeira pergunta que Coutinho fez para um dos habitantes do Lixão. A pergunta de Coutinho era: “aqui é bom ou é ruim?” Uma pergunta enviesada, semelhante às provocações do jornalismo sensacionalista e que, ao antecipar a resposta, pressupunha, desde o início, o caráter e o tipo do personagem em frente à câmera. A resposta que se seguiu desmontou a percepção inicial da equipe e revelou a potência horizontal da pergunta-Coutinho: “Aqui é melhor do que casa de madame!” A declaração, segundo Filé, entregou de bandeja o prato indigesto da tragédia brasileira.

Assim, uma característica da TV Maxambomba era a experimentação em diversos registros, formais, técnicos e (anti-)pedagógicos. A necessidade de interação com o espaço público atravessava as atividades da Maxambomba, o que exigia da equipe outras formas de aproximação. Se a questão que se colocava, na falta de bons equipamentos e da vontade de ser escalado pelos festivais, era a relação com a comunidade, então seria necessário elaborar estratégias de encontro, modos de agência diferentes daqueles que orientavam os projetos filantrópicos. Seria necessário também ir de encontro ao mundo, isto é, encontrar essas pessoas tanto na rua como dentro de casa. Uma das ideias que a equipe pôs em prática consistia em pedir aos moradores para filmá-los assistindo a uma novela. No intervalo da novela, colhiam impressões de cada espectador e, depois, editavam o material às pressas para mostrá-los novamente aos entrevistados, com o objeto de desdobrarem a experiência. A imagem não é o registro arbitrário daquele que é filmado, o “outro”, mas “o registro do encontro entre os dois lados da câmera”, ambos envoltos pelas questões e necessidades da comunidade. Não era raro um personagem assistir ao registro do que falou e se indignar com suas próprias opiniões.

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Além da experimentação e do improviso na rua, a Maxambomba também colocava em prática algumas estratégias de intervenção que foram capazes de criar uma relação autêntica com os habitantes da Baixada, imunes ao paternalismo pedagógico que estruturavam os vídeos educativos. Por exemplo, se o debate era sobre as eleições, a Maxambomba apostava no xiste, no absurdo e no cômico através de dispositivos dramáticos que lembravam as estratégias ousadas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal e o Teatro de Rua de Amir Haddad. É o caso de Eleições Lindomar (Valter Filé, 1990), onde o ator Júlio César Fagundes, que encarnava um político que anunciava o seu desejo de comprar o voto dos eleitores. A Maxambomba monta uma barraca no Centro de Nova Iguaçu para vender voto e colhem todo tipo de reação da população. Gente que vende, gente que critica, que negocia. Para o espanto dos avaliadores internacionais, que não compreendiam o método em sua radicalidade, ninguém ficou imune ao caráter ambíguo da provocação, o que fez com que o tema viesse à baila com um singular sentido de eficácia e integração.

Como Coutinho, Filé mantinha uma percepção crítica acerca de ideias e noções que orientava o projeto de formação do pensamento brasileiro. A experimentação se constituiria como método inevitável, pois correspondia às formas de se pôr em prática uma ação concreta, visando, antes de mais nada, criar um laço, chamar a atenção, captar a energia, a presença das pessoas. E isso a pretexto de figurar em uma matéria de jornal ou video, o que remetia a um significado muito específico em um país atravessado pela atuação desmedida e autoritária dos magnatas da comunicação. O ponto de partida não poderia ser outro se não a rua, o encontro horizontal com as pessoas que estão na rua. A questão não seria somente a TV comunitária, aquela que fixa a representação do que é ou não é a comunidade, mas uma outra experiência, mais fugidia, que é a experiência real com a rua. Em sua tese de Doutorado, Filé escreve:

“A equipe de produção, mesmo variando alguns voluntários, dá ao projeto um saber que supera o saber técnico. Ou seja, não basta ser um ótimo câmera ou bom operador de áudio ou um milagroso produtor. Precisa-se sempre de outro tipo de saber, de sabedoria. Esse é um dos vácuos difíceis de lidar na “formação” quando se tentar vencer Satã só com orações decoradas e já sem força. A oração deve responder aos desafios das encruzilhadas – e de Exú – das tentações, dos perigos. Uma vez aprendida a reza, acha-se que se pode ir (às salas de aula), com as escrituras, água benta e crucifixo em punho, exorcizar os demônios, catequizar o “índio” e evangelizar o mundo.”

A TV de rua incorpora Exú porque é uma TV que habita a encruzilhada, uma travessia atravessada por travessias, um local de encontro entre singularidades, composições imprevisíveis e uma sinceridade muitas vezes incompatíveis com o ambiente do debate contemporâneo, excessivamente controlado por imagens estagnadas da realidade popular. Organizava-se, então, de forma inversa a alguns dos pressupostos a partir dos quais a elite intelectual buscava salvar e ensinar o povo. Filé discordava da abordagem trazida pela filantropia, sobretudo no que dizia respeito aos resultados das ações. Em filmes como Eleições Lindomar ou Praça do Pacificador (Valter Filé, 1990) podemos observar algo do método de improvisação que abraçava o acaso e abria a cena para todo tipo de acontecimento. Contudo, parece errôneo buscar a imagem popular na representação fechada do produto final, isto é, do filme pronto e acabado. E isso porque se a imagem popular encontra sua força no agenciamento com as forças da rua, através do qual uma coletividade, fixa ou provisória, instaura um campo comum, isso se dá por conta de um campo objetivo de relações e atividades que se abre para outros graus de experiência e percepção da realidade. Não me parece aleatório que esses filmes mantenham sua força singular trinta anos após sua realização. Acredito que parte dessa força emana de uma abertura que se deu dentro e fora do filme, enquanto busca por um espaço comum capaz de comportar experiências de aprendizado e construção mútuas com real potencial de transformação.

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No contexto da Maxambomba, mais especificamente em 1990, Filé começa a registrar depoimentos de sambistas. A começar por Romildo cheio de cantigas (Valter Filé, 1990), que enfoca o compositor pernambucano radicado no Rio de Janeiro. Romildo pertencia à Ala de Compositores da Mocidade de Padre Miguel, autor de sambas antológicos como “Conto de Areia”, “A Deusa dos Orixás”, “Vapor de São Francisco”, entre outras gravadas pela cantora Clara Nunes. Filé prossegue filmando sem compromisso, apenas pelo prazer de assistir ao depoimento desses compositores tão populares quanto esquecidos pela grande mídia. O valor do registro oral supera a própria noção de registro. Segue-se a entrevista com o mineiro Catoni, que resulta no filme Um preto velho chamado Catoni (Valter Filé, 1997), que ele filma por sugestão do Romildo; de Catoni para Luiz Grande, autor de pérolas como “Maria Rita”, gravada por João Nogueira. Luiz Grande o leva a entrevistar também seus parceiros Barbeirinho do Jacarezinho e Marquinhos Diniz. O primeiro, gravado diversas vezes por Zeca Pagodinho; o segundo, filho do portelense Monarco; juntos, formavam o Trio Calafrio. Assim se inicia, despretensioso, o projeto Puxando Conversa (1997), que se dedicou a registrar a história, o discurso e a inteligência de sambistas importantes como Zé Luiz do Império, Marquinhos PQD, Norival Reis, Dedé da portela, Efson, Wilson Moreira, entre outros.

Sobre as qualidades específicas do projeto Puxando Conversa, escreve em sua Tese:

“Outra sabedoria do ‘Puxando Conversa’ está na qualidade das relações. (…) Não se trata de criar uma bajulação submissa. Trata-se de reconhecer a importância daquele que é convidado a nos confiar sua palavra, sua história, sua memória. Trata-se de reconhecer o respeito e o cuidado que devem estar nas relações humanas. Não se trata de um conhecimento, uma prescrição. Trata-se de uma sabedoria. Uma sabedoria, um tato, um refinamento. Trata-se de uma sensibilidade que pode ser comparada à feitura de uma comida saborosa. Depende de uma certa manipulação dos ingredientes, da sua ordem de entrada, da ‘altura’ do fogo, da disposição espiritual de fazer a comida pelo prazer e entendimento de sua função de alimentar corpo e alma. Entendimento daquilo que a comida proporciona como ato celebração, justificando a vida. Assim, uns fazem do fast-food sua referência constante de comida, para matar a fome. Outros intuem sobre a grandeza dos encontros em torno daquilo que nos mantém vivos.”

É importante notar o subtexto teórico da atuação de Filé, que diz respeito diretamente ao seu engajamento na questão da educação e na produção da igualdade, mas uma igualdade que se afirma em meio às diferenças. Trazer à tona a genialidade vilipendiada dos sambistas, a generosidade das pessoas que circulam na Praça do Pacificador, mas também a alegria dos pacientes da TV Pinel, invertendo as imagens cristalizadas pela imagem hegemônica. A pedagogia partilha com a burocracia filantrópica e com o CPC da ilusão pedagógica de que a educação reduzida a ensinagem (ou a “ensignagem”, isto é, na inscrição de signos pedagógicos definitivos) corresponde a uma instrução neutra e que se justifica por suas boas intenções. O detentor de um saber, o representante da instituição e de uma determinada classe social, se distingue do outro pela sua posição, postura esta que denota uma relação de autoridade. Este encontro entre aquele que sabe e o que supostamente nada sabe, surge marcado pela manutenção da subalternidade, que inscreve no corpo do aprendiz a perene necessidade do mestre. Trata-se, assim, de perceber a grandeza e a potência de um “popular” real, sempre equívoco e aberto, que se encontra em meio a população da Baixada e que pode ser aferida pela criatividade e a capacidade de resistência que dela emana.

A “imagem popular” na Maxambomba seria constituída justamente por aquilo que lhe escapa ao produto final: o resíduo das vivências coletivas que confere força aos registro. O que nela corresponde a este processo de enriquecimento da experiência entre a equipe e a comunidade não se esgota com o fim das filmagens, tampouco com a edição do produto final. A “imagem popular” pode ser enunciada, então, como uma ficção oriunda da relação entre outras duas ficções provisórias e operacionais, utilizadas em função de uma relação de diálogo simétrico com uma comunidade. Primeiramente, uma imagem que, tal como o que reduzimos ao estatuto genérico da categoria “povo”, se apresenta necessariamente incompleta e polifônica. Ambos, filmante e filmado, constroem seu imaginário diante das câmeras, de modo que o filme é apenas um excerto de uma relação mais complexa que testemunha o encontro da equipe com as pessoas que estão na rua, dinamizando a rua, “circulando!”… Uma ficção em relação à imagem, que nunca resguarda a totalidade expressa pelo produto final, mas opera como meio de encetar uma dilatação forçada da segunda ficção, a ficção do “povo”. A imagem popular, portanto, como um nódulo de tempo, uma viagem de mão dupla capaz de propiciar um trânsito expandido entre o discurso e a prática.

*Este texto foi previamente publicado no catálogo da 15ª Mostra de Cinema de Ouro Preto. Agradecemos à Universo Produção. 


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