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A cine-ilha

Um bandido vaidoso, que vira as câmeras em direção a si. Um narcisista, um psicopata, um suicida. Quer viver no espelho criado através do cinema – talvez porque seja sua única chance de continuar existindo, ou de pelo menos tornar-se visível. A empreitada implica um gesto mirabolante, radical: tomar de assalto o cinema, sequestrar os olhos da sociedade. Mas esse gesto, no fundo, não se encerra nem no puro narcisismo, nem em um ato de justiça social pelo qual os invisíveis se tornarão visíveis. Trata-se, antes, de um gesto de confrontação. Sequestrar o cinema para espantar dele a mesmice, realizar um abalo, afrontar o bom gosto da classe produtora de imagens. Afinal, estamos falando do Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) ou de Emerson, o protagonista de Ilha (2018), longa de Glenda Nicácio e Ary Rosa?

Não seria difícil imaginar o roteiro de Ilha sendo dirigido por Carlos Reichenbach ou mesmo Rogério Sganzerla. O encontro entre a marginália e o artista, o bandido e o intelectual, a crítica subjacente ao alheamento das classes “pensantes”, a vontade de comentário, de falar de cinema enquanto se faz cinema, a ironia, a troça. “Aqui os filmes são subdesenvolvidos por natureza e por vocação”, diz Emerson em algum momento, citando um bordão sganzerliano que define o imaginário de parte significativa do cinema brasileiro moderno.

A constatação dessas afinidades serve menos para “autorizar” o filme do que para dar conta da dificuldade de sua empreitada. Não é fácil referenciar um legado tão pesado sem permanecer na sombra, sem se paralisar. Além disso, não há “gênero” mais temerário para um cineasta hoje do que o metalinguístico, que raramente causa alguma surpresa. Há, assim, uma certa inocência que move a empreitada de Ilha, como se o filme não se desse conta dos riscos envolvidos na meta-abordagem e na avalanche de imagens mobilizada por sua premissa. Mas a essa inocência se junta uma tal falta de temor, uma ausência de medo e uma energia que é difícil não se contagiar pelo filme – assim como pelos outros da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa. No entanto, como explicar que o filme, com todas dificuldades colocadas aqui, seja ainda assim tão bem-sucedido?

Talvez seja importante começar pela ambientação: a ilha. Como definir uma ilha senão como um lugar isolado, um ecossistema à parte, dotado de leis físicas próprias? Ilha, como sugere a própria brevidade de seu título, lida antes com esse imaginário primordial da insularidade do que com a ilha como espaço social e geograficamente localizável. O filme de Glenda Nicácio e Ary Rosa se afilia a uma longa tradição de obras para as quais a imagem da “ilha” funciona como um portal no tempo e no espaço, fenda mágica que se abre para fora da continuidade do Oceano – que se pense em A invenção de Morel, o romance de Bioy Casares, ou, para ficarmos no cinema brasileiro, em Ilha dos Prazeres Proibidos (1978), de Carlos Reichenbach, Fome de Amor (1968), de Nelson Pereira dos Santos, e A Ilha (1963), de Walter Hugo Khouri.

Caberá ao cinema fabricar esse espaço em suspenso da ilha, com a sobreposição de diferentes registros: a ação do sequestro com sua estética de falso documentário, os ensaios do casting, as deambulações pela ilha e, enfim, o filme de memórias do bandido – que vem adentrar já adulto em um dos planos de sua infância, as pernas melancolicamente encolhidas entre os braços, observando a imagem de seu passado tal qual um Tarkovski do terceiro mundo. Na cine-ilha, não há passo não mediado pelo cinema. Não há imagem “limpa”, paisagem anterior ou exterior ao filme. A câmera é sempre intrusiva, deixa seu rastro de intenção sobre tudo. Ela está sempre próxima demais, é enfática demais, pronunciada demais, corpórea demais dançando montada sobre o steady-cam.

Mas nessa câmera reside justamente a unidade do filme. Pois, ao contrário do que se poderia supor, Ilha não trabalha com a distinção de diferentes espaços diegéticos, que seriam “assinalados” por uma variedade de registros de câmera – realidade de um lado, ficção de outro, meta-ficção de um terceiro ainda. A câmera aqui é sempre a mesma. Ela não conceitualiza (ou pelo menos não muito). Na maioria das vezes, age antes de conceber, guiada mais pelo desejo de intensidade do que pela clareza do conceito. Nesse sentido, Ilha se diferencia de seu filme-irmão, Ladrões de Cinema (1977), em que o filme-dentro-do-filme se erguia como um palco carnavalesco sobre o espaço diegético e no qual a escolha da história a ser “contada” era decisiva. Para o filme de Fernando Coni Campos, o que estava em jogo era a constituição de um espaço discursivo pelos moradores de uma favela, no qual estes depositariam seu orgulho, positividade e pertencimento em relação à pátria e sua história. Já em Ilha importa menos o filme que dali vai sair do que o processo de feitura, uma espiral mútua de vivência e cura entre cineasta, bandido e câmera. É por isso que não há uma multiplicação de espaços diegéticos, mas um movimento justamente oposto, de estreitamento e compactação sob o rastro processual da câmera. Ficção e meta-ficção não formam espaços opostos e excludentes, mas aparecem entrelaçadas, uma dentro da outra, misturando-se, formando um nó inextricável por meio da câmera.

Esse nó criado pela triangulação entre câmera e personagens produz uma plasticidade elástica, um balé a três no qual bandido, cineasta e câmera dançam em falso em direção ao abismo. Há em Thacle, o personagem do câmera, como que um espírito de Dib Lutfi, em Terra em Transe (1967) – filme do qual Emerson mantém um cartaz –, mas sobretudo em Fome de Amor, que também constrói uma cine-ilha como lugar de deriva, ilusão, espiral em falso que tangencia o perigo. Por sua vez, essa sensação de deriva, impulsionada em grande parte pelo trabalho do próprio Dib mas também das experiências marginais, marcará parte significativa do cinema brasileiro moderno, em um conjunto de filmes cuja flutuação coreográfica produz essa mesma sensação de estreitamento e compactação: a impressão de que as coisas só existem ao serem apalpadas pela câmara, o filme como uma sucessão de figuras puramente visuais – Helena Ignez andando eternamente por Copacabana em Copacabana Mon Amour (Rogério Sganzerla, 1970), Jô Soares em Hitler Terceiro Mundo (José Agrippino de Paula, 1968), a perseguição de Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971).

É inspirado por essas experiências modernas que Ilha realizará seu exercício. A palavra “exercício” aqui não deve ser entendida como repetição formulaica. Ela aponta antes para o espírito tateante do filme, sua vontade de experimentar, de testar formas no calor da cena, sem congelá-las sob uma justificação a priori – espírito que define bem o cinema da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa até o momento. Nessa dinâmica, o erro naturalmente tomará parte, mas mais significativo do que o erro em si é justamente a ausência de medo de errar, como já apontou Maria Trika, essa falta de temor de que falávamos antes. Esse sentido experimental e tateante é também o que distingue Ilha da maior parte das tentativas dos últimos quinze anos de beber na fonte do cinema marginal, que raramente conseguiram ir além da apropriação cosmética e da paródia anódina. Subtraindo da fonte inspiradora o sentido de agressão e radicalidade, transformava-se o imaginário marginal em ícone congelado, empacotado para consumo. Eis a diferença entre imitar o mestre e aprender com ele.

Um traço no entanto separa Ilha do mar de imagens do cinema moderno que o filme, direta ou indiretamente, parece referenciar: a falta de cinismo e uma crença positiva no cinema. Há algo bonito na maneira como o filme orgulhosamente se apresenta como um filho de oficinas, como a ideia de filme-processo, filme-cura, se fecha em uma espécie de elogio da viabilidade. Pois ainda que seu roteiro se deixe levar alegremente pela imaginação absurda (o sequestro, o filme-bandido, a paixão homoerótica improvável), há na forma processual do filme a afirmação de um cinema viável, fruto de encontros, ensino, capilarização de políticas públicas. Nesse sentido, Emerson não encarna a figura mistificada e icônica do bandido (da Luz Vermelha, ou de algum filme de Reichenbach). Ele foi uma criança como outras: passou pela escola, mesmo que brevemente; por oficinas, mais ou menos precárias; foi tocado; existiu, em suma. Que tudo isso não tenha sido suficiente para criar outro desfecho, é algo que não torna sua trajetória em vão. O fundamental é o processo.


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