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Um craque na periferia do capitalismo

Nem é preciso amar o futebol para se deparar com cenas do Rei do Futebol e tão logo se surpreender com cenas tão poderosas e não menos desconhecidas. A surpresa, afinal, rapidamente se traduz na contraprova de que o culto a Pelé, mesmo em solo nacional, é mais consuetudinário do que propriamente visto. Pelé, produzido pela Netflix e dirigido pela dupla David Tryhorn e Bem Nicholas, desafia a memória e se propõe a tarefa de apresentar não só os lances que certificam a sua genialidade, mas o próprio Rei Pelé, a figura mítica e ainda assim desconhecida que nos comove ao chegar de andador para entrevista logo no início do filme

No interior da plataforma do Netflix, Pelé vem na esteira do sucesso de Arremesso Final (The Last Dance, Jason Hehir, 2020), documentário sobre Chicago Bulls e Michael Jordan. É bastante provável que a subcategoria “documentários sobre esporte” ganhe ainda mais força ao longo dos próximos meses, e não apenas no Netflix, a exemplo da série Doutor Castor (Marco Antonio Araujo, 2021), que aborda a trajetória do clube Bangu, lançado na Globoplay na mesma semana de Pelé. A diferença entre ambos é que a característica global do Netflix implica que o documentário sobre o Rei, além de lançado simultaneamente em inúmeros países, assuma códigos mais facilmente reconhecíveis pelo público internacional. O risco não é outro senão que o sentido de exportação esprema o filme a ponto de torná-lo uma ilustração de Pelé abstrata e palatável às platéias do mundo interior, ao mesmo que trai o próprio fio da meada em que se estrutura o mito e homem Pelé.

Para narrar a história de Pelé, o arco do filme parte da traumática derrota na final na Copa de 50, passa pela redenção da seleção já com Pelé na Copa de 58 e então termina na Copa de 70, quando o Brasil se torna a única seleção tricampeã do mundo. Em um dos maiores clássicos da literatura futebolística, O Negro no Futebol Brasileiro, Mario Filho segue o mesmo roteiro histórico para narrar a afirmação do negro no futebol desde a falha do goleiro Barbosa em 50 que desencadeou infinitos episódios de racismo, até as vitórias seguintes com Pelé e Garrincha, um negro e um mulato. No documentário de David Tryhorn e Ben Nicholas retomam ao período para apresentar o papel da seleção brasileira e especialmente de Pelé na internacionalização e invenção da ideia de Brasil no exterior. O filme é hábil em contar que a derrota brasileira em 50 inspirou que Nelson Rodrigues forjasse o famoso complexo de vira-lata, bem compreendido como a relação reflexiva básica da autoconsciência do brasileiro que depreciava a sua própria natureza e idealizava a do estrangeiro. As vitórias em 58, 62 e 70, ao contrário, motivaram o deslocamento do amor próprio do brasileiro e recrudescimento da sua autoestima, sobretudo a cabo do simbolismo do Rei Pelé e o alcance planetário da sua fama justo no momento da passagem do rádio para a televisão. O jogador encarnaria como ninguém a promessa e dádiva de um país capaz de superar os percalços da modernização – segundo a caracterização feliz do crítico de arte Rodrigo Naves, “se a formação da literatura brasileira desemboca em Machado de Assis, a do futebol brasileiro desemboca em Pelé”.

O interesse do documentário pela internacionalização do Brasil puxada pelo Rei Pelé precisa sustentar uma complexa dialética entre atleta e país para avalizar seu ponto de vista. O perigo em um filme de nome Pelé é que a balança se desequilibre e penda ao culto pelo jogador como uma motivação arbitrária que não sustenta o lastro e vínculo primordial com o país que o acompanha. O Brasil, se for o caso, perde em complexidade uma vez que tornado raso e catalogável, somente lugar em que Pelé teria nascido por mero destino. Em Arremesso Final, por exemplo, é justamente quando a série se afunila em Michael Jordan nos episódios finais, em detrimento do restante do elenco do Bulls, que a obra perde se empobrece de significado e não à toa que fora duramente acusada de privilegiar sobremaneira o ponto de vista de Jordan sobre os acontecimentos finais. Já em Pelé, o foco no superastro global também estimula uma desatenção que fere a consciência de qualquer pessoa minimamente atenta a história do futebol brasileiro. Anoto três momentos reluzentes: a) não há quase nada sobre a carreira do jogador no Santos – seja os títulos mundiais, seja a parceria com Zito, Pepe e Coutinho – a não ser uma afirmação grosseira que o Santos não era nada antes de Pelé; b) na Copa de 62, o documentário se concentra apenas em Amarildo (que substituiu Pelé lesionado desde o segundo jogo até a final) e desmerece o papel mais decisivo dos demais jogadores, em especial de Garrincha, o Rei das Pernas Tortas que revelou um repertório surpreendente para conduzir a seleção ao título mesmo sem Pelé; 3) a complexa figura de Saldanha – cuja independência crítica incomodava a CDB e a ditadura militar – é reduzida ao episódio em que insinuou a miopia de Pelé, desmerecendo as suas qualidades e intuições (como colocar Tostão e Pelé para jogarem juntos pela primeira vez) sem as quais o Brasil não conquistaria a Copa de 70.

Não é difícil adivinhar que uma razão para as omissões seja o imperativo de inserir a duração do filme na métrica do Netflix, onde os documentários esportivos giram em torno de uma hora e meia e nunca chegam a duas horas. Pelé tem quase isso e, para além do que não entrou, o incômodo advém do tempo que o filme desperdiça para a discutir a suposta relação entre Pelé e a ditadura militar. Decerto que assim o filme se torna mais palatável à curiosidade internacional por democracias periféricas em curso de desaparecimento, como assistimos em Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019) da mesma da Netflix. Por outro lado, no afã de construir uma cena forçosamente conflituosa, a mesma se revela com energia dramática rarefeita, muito aquém da solenidade e epifania que o filme almeja.

O documentário se esforça em despertar uma confissão, arrependimento ou crítica militante sobre a ditadura, mas o Rei reage apaticamente – ligeiramente desconfortável, embora ainda assim sereno – tal como alguém que não tem muito o que dizer. O efeito, na verdade, desemboca no exato oposto: em lugar da pressão complexificar a questão, a infertilidade da interrogação a depõe contra a própria questão, tornando-a mais frágil e exemplificativa. A dialética entre Pelé e Brasil novamente se desequilibra, mas desta vez não porque o mito sobrepõe o país, e sim porque o filme age como se Pelé devesse alguma coisa ao Brasil – e paradoxalmente, o filme cai no complexo de vira-lata de Nelson Rodrigues, para quem o brasileiro é um “narciso às avessas que cospe na própria imagem (…) se vence de cinco, o torcedor acha que o adversário não presta. Se empata, quem não presta somos nós”.

É óbvio que as discussões sobre a conivência com ditaduras militares são importantes. A questão é que essa parece deslocada e pouco ilustrativa, sobretudo quando falta tempo para tratar de outras questões. A obra filma muito apressadamente os encontros de Pelé com o ex-companheiros do Santos – a cena do seu almoço com os ex-companheiros do Santos mal dura dois minutos – sem que o filme aposte numa estética da companhia em que o (re)convívio entre os personagens tem força dramática, como vemos em Maradona (2008) de Emir Kustrica. As cenas das partidas são sempre muito restritas aos lances de gols, misturadas com clipes musicais e sem atenção às jogadas trabalhadas e tabelinhas, o mesmo defeito de outro documentário famoso, Pelé Eterno (Anibal Massaini Neto, 2004), em que a profusão de imagens contradiz a máxima de Carlos Drummond de Andrade para quem “mais do que mil gols de Pelé, nada vale um gol de Pelé” – e o ônus é que sequer notamos a diferença entre o futebol juvenil e impetuoso das seleções de 58 e 62 em relação ao estilo tardio e cadenciado do time de 70. Nesta que é a principal lacuna do filme: o próprio Pelé mal tem a oportunidade de falar abertamente das suas dores e temores. A fotografia e a direção de arte das entrevistas tematizam a dor do Rei através da contra-luz e os contrastes, sem que o documentário lhe dê a chance do mesmo expressá-la. O rei chega a chorar e admitir que por vezes “eu não queria ser Pelé”, um transbordamento que é rapidamente traído pela suposta eficiência narrativa e montagem burocrática que rapidamente salta para outro “conteúdo”.

Se a pressa do filme trai a sua profundidade, isso se deve mais aos procedimentos e timings do que aos demais personagens entrevistados. Desde FHC, Benedita da Silva e Gilberto Gil até Juca Kfouri, Paulo Cesar Vasconcellos e José Trajano, os entrevistados dão as respostas certas para as perguntas erradas sobre a ditadura, mostrando que “é querer demais que o atleta do século, um gênio no patamar de Machado de Assis, ainda exercite com maestria a arte da política”, como disse Xico Sá. Trazendo outro entendedor da bola para a conversa, se Eduardo Galeano dizia que Maradona é o mais humano dos deuses, então Pele é certamente o mais deus dos humanos – não apenas pelo domínio absurdo e divino de todos os fundamentos do futebol, mas pela personalidade lacônica e retraída a denunciar o fosso latente que separa o Edson do Pelé.. Se o filme nos aproxima mais das imagens e parte da história que o tornaram célebre, pouco aproveita da sua companhia para conhecê-lo melhor e revelar outras possibilidades de apreensão do Rei.


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