vermelha-header

“Meu amor é assim, bruto e sincero demais”

Poucas coisas podem te preparar para Vermelha. Abrindo o texto assim, pareço falar de uma obra de absoluta novidade, inovação, frescor e ousadia. É isso, mas também não é. O primeiro longa-metragem de Getúlio Ribeiro te instala numa ambiência reconhecível, tanto narrativa quanto esteticamente. Começa com dois homens na faixa dos 70 anos a baterem laje numa casinha simples de bairro. Falam amenidades, discutem quanto mede um alqueire e um hectare e qual a melhor lua para cortar cabelo. Nada parece fora do lugar, e de fato não está. O fenômeno de Vermelha será o de encantar com tão pouco, de extrair daquele espaço doméstico casual, daqueles corpos muxibentos, daquele dia-a-dia meio preguiçoso, um alto grau de poesia (não a poesia do simbólico, e sim a poesia da casualidade). Poucos artistas do cinema brasileiro fizeram tanto com tão pouco, Ozualdo Candeias e Alberto Salvá entre eles. Como estes, Getúlio Ribeiro encontra a força do indivíduo naquilo que ele (não) tem de mais singular, naquilo que o faz tão banal quanto grandioso, tão normal quanto extraordinário.

A ação de Vermelha se passa em Goiânia, espaço tão inexplorado pelo cinema brasileiro quanto era Contagem (MG) antes da produtora Filmes de Plástico (ápice no recente Temporada, de André Novais Oliveira). Da laje na casinha de Gaúcho (Osvaldo Marques), veem-se os arranha-céus da capital de Goiás, contraponto que logo nos primeiros planos diferencia o recorte que interessa a Ribeiro. Vermelha é um filme sobre o interior do Brasil ambientado numa capital estadual, na prática negando aos personagens aquilo que caracteriza uma cidade grande e deixando a eles apenas o essencial, apenas aquilo que a eles é suficiente para estabelecerem as relações que lhes importam. O filme se estrutura em vários subnúcleos, todos magnetizados por Gaúcho e Beto (Carlos Alberto Ferreira). Das micronarrativas, nada de muito concreto é revelado. Uma dívida (empréstimo? conserto de carro? boteco?), uma raiz de árvore cortada num lugar específico, uma cachorra resgatada da enchente num programa de TV, mãe e filha conversando na modorra do que parece um domingo qualquer. Nas arestas de cada movimento, estão Gaúcho e Beto, amigos que se relacionam aos moldes dos personagens mais cativantes de Howard Hawks ou John Ford, camaradagem masculina xucra, que se reforça na base da porrada e está sempre a postos em prol do outro quando a situação pede.

A amizade sem limites entre Gaúcho e Beto guarda muito de uma cultura bastante própria entre tipos de homens velhos que aprenderam a se entender num convívio diário e íntimo sem pedir licença para nada e no qual a grosseria e a impaciência entre si são elementos como quaisquer outros. O humor surge naturalmente das tiradas de um com o outro, mas o que realmente fascina na interação da dupla é o olhar encantado de ambos: o carinho genuíno que Gaúcho demonstra ao procurar Beto na oficina depois de uma contenda, ou a austeridade de Beto em compartilhar memórias que lhe parecem tão caras.

Vermelha absorve para si, sem fazer alarde, uma miríade de referenciais que pululam mais pelos vícios críticos de “enxergar” para além da imagem do que propriamente por intenções preconcebidas de Getúlio Ribeiro. A aspereza dos corpos envelhecidos leva o pensamento a Candeias, o aparente sobrenatural que se revela no terço final vai à espiritualidade de Apichatpong Weerasethakul, o devaneio carregado pela trilha sonora e entrecortada por imagens em fusão parece o mundo dos sonhos de David Lynch ou os delírios de Abel Ferrara (trocando as canções melancólicas e sintetizadas pelo sertanejo goiano de Jorge & Mateus e Guilherme & Santiago). O preponderante em Vermelha, porém, não são referências, e sim a lógica interna que o filme exige na sua fruição. Se não há nada que não pareça natural em cena, a atmosfera constantemente desvia o filme do fabular e o leva a sensibilidades outras que não denunciam entrada e que proporcionam, meio de repente, o fascínio hipnotizante a emanar de suas imagens. Eis a volta do parafuso em Getúlio Ribeiro: sua relação com os cineastas citados aí em cima está muito mais na lógica singular proposta por Vermelha e na importância de se relacionar com ele por vias inesperadas, insuspeitas e sempre surpreendentes. Sua chave de originalidade está essencialmente naquilo que, a princípio, não se apontaria como original e, por isso, quando vem, o impacto é tão grande.

Esse curto-circuito se dá num crescendo a cada nova imagem e a cada personagem que adentra a ação pacata de Vermelha. Enquadramentos do alto e planos por baixo recortam o espaço do filme e levam o olhar para pontos que, a princípio, não chamariam atenção. E de repente a relação se estabelece não só com corpos (humanos e animais), mas também com objetos, alguns deles ganhando proeminência. Logo no começo, Gaúcho e Beto sobem e descem do telhado por uma escada de trabalho encostada na parede da casa. O elemento “escada”, tão prosaico, surge fundamental no telejornal sobre a cachorra presa na correnteza (é por uma escada que uma criança salva o animal) e mais ainda para a dupla protagonista na cena da cobrança, quando Jonas exige dinheiro de Gaúcho.

A cena é exemplar do tipo de relação do filme com seu universo e seu material. Há a casa e a rua, Gaúcho e o grupo que lhe persegue. Para se proteger, ele sobe ao telhado pela mesma escada lá do começo. Os cobradores, na calada da noite de uma rua vazia, aparecem com outra escada para chegarem até Gaúcho. É uma sequência digna de bangue-bangue à brasileira encenada como se fosse uma comédia de Buster Keaton. A situação se amplia com a entrada de Beto, cabo de vassoura em riste, num ato de brodagem para proteger o velho amigo. Em nenhum momento a luta chega às vias de fato (basicamente ninguém encosta em ninguém), mas ela efetivamente acontece diante dos olhos do espectador. É o resumo de todo o filme: nada está em cena para parecer alguma coisa que não seja o que efetivamente é. Os significantes são os seus significados. Uma raiz é uma raiz.

Essa objetividade de Vermelha não o impede de se conectar a instâncias para além da mimese. Gaúcho fala mal de Beto, eles brigam no quintal da casa, de repente a câmera mostra, do alto, Gaúcho se arrastando pelo chão rumo ao buraco cavado para enterrar a raiz; logo em seguida, retoma-se a cena anterior, agora com Gaúcho elogiando Beto. Sequência misteriosa, tanto por seus sentidos possíveis de entendimento quanto pela absoluta naturalidade com que o filme trata cada uma das ações. Inexiste hierarquia (temporal, causal ou espacial) na concepção das cenas de Vermelha, pois tudo parece igualmente fascinante ao olhar de Getúlio Ribeiro.

Um dado extrafilme: as pessoas e a cachorra filmadas em Vermelha são todas próximas a Getúlio Ribeiro. Pai, mãe, irmã, vizinho, animal de estimação. É, na essência, um filme de família – da família do diretor – sem jamais se apontar como tal. Assim como no cinema de André Novais Oliveira (Fantasmas, Pouco Mais de um Mês, Ela Volta na Quinta, Quintal, Temporada), a fabulação supera as relações pessoais. A intimidade de se filmar parentes em casa é tão somente o disparador de voos muito maiores, que independem de se saber previamente os mecanismos anteriores ao filme. Porque é tudo um grande jogo de ficções, uma dramaturgia do gesto e do movimento, das expressões da face e da perscrutação de paredes e móveis. Em Vermelha, essa dramaturgia se acumula no rosto vincado de Gaúcho, na postura firme de Beto, no olhar enigmático de Débora (Débora Marques), na personalidade de Vermelha (a cachorra), na desolação de Jonas (Jonatas Borges) em busca do dinheiro post-mortem, no churrasco de fim de semana (ou de qualquer outro dia), na conversa à fogueira cheia de memórias gastronômicas. Nada disso é meramente pessoal, pois tudo o é. Getúlio Ribeiro e André Novais atualizam a máxima de Tolstói de que, para ser universal, que se comece pintando a própria aldeia. Para falar do universal, que se mostre Goiânia e Contagem como nunca antes se pôde ver.

O apreço de Vermelha a Goiás é tão explícito quanto também inevitável dentro da mecânica proposta pelo filme. Os personagens pertencem à terra (às vezes literalmente) e todo o referencial sempre volta a eles (ao conversarem sobre a medição de territórios Brasil afora, um dos amigos questiona: “Não sei se vale aqui em Goiás ou só lá no sul”). Por maiores suas peregrinações, mais contidos serão os retornos (na fogueira, Beto conta das comidas que provou pela Europa, para terminar valorizando mesmo a comida goiana). O gesto de fincar-se ao território originário é uma forma de compreensão da importância desse território para que a arte do filme surja diante dos olhos. Só esse amor a Goiás e a essa gente de Goiás – com as contradições e as fissuras de qualquer amor – permite a existência de Vermelha.


Leia também: