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Reina a felicidade plácida no reflexo de um freezer gourmet do Leblon

Um Filme de Verão começa com um plano-sequência andando com câmera na mão pelos becos de uma favela em contra-plongée. Muita poluição visual em primeiro plano, mas o céu azul cortante está sempre lá relegando um respiro harmônico aos nossos olhos. A câmera parece caminhar a esmo, virando em becos aleatórios, mas só parece – ela, na verdade, segue uma rede de cabos e fios que conectam aquele espaço. Fisicamente e virtualmente. Um Filme de Verão é um filme em rede, é um filme que parte de quatro personagens, mas está muito mais interessado nas eventuais conexões possíveis a se traçar a partir daquele universo do que no tradicional desenvolvimento de suas identidades em transmutação.

O artifício de criar profundidade a uma personagem é um exercício tão, mas tão difícil que o cinema brasileiro deste século preferiu investir boa parte de sua energia ora na “des-psicologização” de papéis, ora no laconismo poético das relações, ora na montagem elíptica, ora na assumida fuga da dramaturgia, ora em tudo issaí. Podemos ver um ou mais desses desencadeamentos de um certo minimalismo em Cinema, Aspirinas e Urubus, O Homem das Multidões, O Abismo Prateado, Elon Não Acredita na Morte, Eu Não Sou Daqui. Aos poucos essa desconstrução dramatúrgica se revigora por uma ambição de reencontrar-se com o Brasil que já estava lá, impassível de síntese, nos subúrbios, vilarejos, aldeias, periferias e outros rincões, não mais pelo puro registro – a recusa ao exotismo já transbordava a academia e cinefilia – mas através de apropriações das grandezas daquelas personagens encontradas, mesmo que às vezes figuras muito simples, delicados mistérios, deveras humanas. O realismo precisava ser adereçado, fantasiado, confabulado. Fabular o real como parte de um processo criativo conjunto entre quem chega com a câmera e quem hospeda e abre as portas de seu mundo. Víamos alguns desses processos de maneiras distintas em filmes como O Céu Sobre os Ombros, Avenida Brasília Formosa, Girimunho, Histórias que só Existem Quando Lembradas, Baronesa, Vizinhança do Tigre, Los Silencios, Corpo Delito, Bixa Travesty e só nessa Mostra Tiradentes 2019, pelo menos, em Currais, Quebramar e Um Ensaio sobre a Ausência.

Mas duas figuras proeminentes dessa exploração dramática – Adirley Queirós e André Novais Oliveira – incendeiam esse lugar do “achado”. São menos olheiros e mais artesãos do tempo e espaço. Apesar de trabalharem com figuras de seu convívio, estão menos interessados que estas apareçam como tal e mais numa subversão das possibilidades. André Novais Oliveira a partir da ficcionalização de outros retratos de família/bairro possíveis, Adirley Queirós na chave do gênero do docudrama e da ficção científica. O ganhador da Aurora desse ano, por exemplo, Vermelha, é um filme onde o diretor filma sua família e esse conhecimento é altamente desnecessário para sua fruição. Importa menos a familiaridade e muito mais a estranheza provocada por seus cortes e suas personagens.

Um Filme de Verão engrossa o caldo daqueles que se apropriam de uma realidade menos vista e conhecida, no caso, a periférica (sessão da tarde menos branca-eurocêntrica) para construir em cima o drama. Mas enquanto na maioria desses casos, a escalação de uma grande personagem remedia (ou reinventa) o processo de tessitura dramatúrgica, aqui vemos quase a situação inversa: aqueles jovens são como quaisquer outros, com alguns raros momentos de inspiração – cômica ou trágica – mas em boa parte do tempo sem fôlego para o escrutínio da alegria ou do ócio. Sem tanto brilho, sobrevêm o talento de uma rara artesania. Isso se dá porque o interesse parece vir primeiro daquele mundo para depois alcançar as personagens. Um interesse, até certo ponto, clichê pelo outro, pela distância, pelo abismo entre universos, mas que, a partir do mergulho e vivência intensa naquele espaço, alguma coisa se capta dessa visão tão rarefeita do estrangeirismo chocando-se àquela realidade.

Sobre o abismo espacial entre a geografia da cidade, está lá, transparente como o vento: segundo plano do filme Karol em slow se refresca meditando em frente a um ventilador. Aquilo é sobrevivência. Em algum momento é obrigada a atravessar a cidade em busca de emprego e se depara com a constatação de que existe um ar que dá frio na espinha da alma, é só pagar. Aquilo é luxo. Nenhum ar é tão frio quanto o de um freezer de uma padaria gourmet no Leblon. Em Um Filme de Verão há todo um “inventário de miudezas” (expressão que Ewerton Belico usou no debate sobre Vermelha mas que se aplica perfeitamente aqui) que evidenciam essa distância simbólica. Quando Ronaldo ajuda a amiga e a mãe da Zona Sul a empacotar suas coisas para uma mudança sobra uma panela de fondue a filha não entende pra que ela vai querer aquilo num calor infernal do Rio, ela reage “mas vai jogar fora? Ronaldo quer?”. Na ideia de que se for pra perder, melhor se sentir bem “fazendo caridade”. Ronaldo aceita mesmo a amiga não entendendo pra que. Como o mictório de Duchamp que perde sua funcionalidade no museu, a panela vira ready-made no jogo de rodar de um Verdade ou Consequência lá na favela.

O ponto culminante dessa apreensão estrangeira é o clipe dentro do filme. Se existia alguma chance (sempre há) da exploração do exotismo, ali ela é exterminada por um processo de entendimento psicanalítico-sociológico (ou seja, um entendimento do eu e da comunidade), onde a autora percebe e denota que aquele mundo retratado não é simplesmente uma favela, mais uma do Rio de Janeiro, enclausurada e ensimesmada em seu reduto por conta da militarização expansiva de uma cidade partida, mas também um alargamento do que ela quiser, no caso, o cruzamento entre a avenida Jacarepaguá e Japão, o baile de favela que pode ser permeado por cosplays que peidam rosa. “Sou um pássaro livre. Estou preso numa gaiola”.

Repito uma história já contada em outro texto antigo: Jean Rouch no estágio de chegada à sala de montagem abandonava o monitor e se virava para a montadora para saber pela sua reação quais planos eram atribuídos de “Graça”. Falar bem da montadora Cristina Amaral hoje é redundante independente do uso crítico dos pleonasmos, mas, diferente da relação Jordana Berg – Eduardo Coutinho que se inspirava em Rouch, o que é da ordem da primeira grandeza aqui não é uma espécie de feeling messiânico ou espiritual do que pode dar certo ou não, do que é dotado de Graça ou não (mesmo todo mundo no debate do filme tendo corroborado com essa ideia). A montagem aqui (que vale dizer, está também incrustado fortemente no papel de Jo Serfaty, visto que esta também se faz na hora da filmagem) está mais para evidenciar certas banalidades e através delas estabelecer diferentes tipos de conexões. O único plano padrão que vemos no filme – o enquadramento clássico de entrevista em documentário – é usado uma vez somente: quando Carol está fazendo entrevista de emprego. Aquela instauração do doc de impor à personagem, ali na cadeira, sobre o ângulo da lente, uma perscrutação da sua alma aqui é feito pelo mundo real, pelo capitalismo, pela velocidade e necessidade do dinheiro que pressiona Karol e exige que ela comova o mercado, surpreenda positivamente o mundo real, não a nós espectadores.

Karol sai à noite. Isso parece ter relevância para o filme, afinal “perdemos” mais de cinco minutos com ela vendo o show de rap em Marechal, voltando para casa e desviando o caminho para sentar com as amigas e pedir uma catuaba com açaí, jogar uma sinuca ouvindo feminejo… Coisas triviais que qualquer um faz e nada, absolutamente nada de extraordinário ou engraçado acontece. Jo Serfaty estabelece, diante desse mundo, microvisões da banalidade. Não seria essa a essência dos stories? Muito de Um Filme de Verão é superfície. O relacionamento amoroso não se estabelece como um grande laço de amor mas se apresenta quase que de forma casuística (que casal que não dá um beijo sequer – com exceção de um estalinho na hora do clipe, da alter-realidade – ao longo de um filme inteiro?), a briga, clímax dramático, se faz no extracampo e na elipse; Ronaldo tem sua história inconclusa não pela delimitação temporal de “um verão na vida daquelas pessoas”, mas por nem sequer ser construído um arco dramático de início; e o que mais relampeja evocações de quebrantar a superfície é a ligação esquizofrênica e adoradora que Caio tem com as religiões. São suas frases intempestivas debitárias da fé – “só acredito no que não vejo”, “Eu sou o que eu nunca fui. Eu não sou” – que nos interpelam de forma incitadora, como só a poesia interpela, aquela que nos provoca desconcertando a estabilidade confortável de nossos pensamentos.

Em tempos onde a felicidade precisa reinar soberana diante de nossos perfis de Facebook e Instagram, onde os sorrisos falsos viram bitcoins para digital influencers, onde a própria tristeza e depressão é afagada por likes e emojis de corações, a voz militante muitas vezes precisa se impor mais alto por uma causa mais nobre que no fundo é o próprio ego, essa banalidade ganha um peso de transtorno a essa lógica. Esses quatro personagens não precisam estar se vendendo, como nas mídias sociais, por crescerem de tamanho em uma tela 2D. Eles precisam estar ali e cumprir com suas obrigações – sejam as obrigações mundanas de viver o que precisa ser vivido, sejam as obrigações de personagem de um filme acordado, deixando ser filmado e ocasionalmente se filmando por celular. Numa noite de chuva torrencial, Junior desce para uma sala branca e esvaziada e começa a cantar e dançar The Smiths filmando em modo selfie. Esse poderia ser o plano antítese de todo este parágrafo, mas sabendo que a integração da filmagem se mistura com o olhar dos próprios personagens, da câmera profissional ao celular deles (afinal, a internet está aí para desordenar a narratividade das imagens), olhamos para o plano (e para os cortes que o precedem e sucedem) e vemos que sua entrega é dedicada a este momento último de Rio de Janeiro, que é preciso cumprir com o roteiro de “me filmar sozinho”, mas que isso não impede dele expressar um certo tipo de morte simbólica. Uma morte que não é cheia de graça, mas interiorizada, que prevê o isolamento no exílio paraibano. “Hoje a guerra começou. Amanhã eu devo morrer”. A guerra que cerceia a mobilidade urbana/a morte que nos condiciona a vida adulta aqui é reconfigurada à sua existência, não mais de “periférico”, mas de indivíduo. Mais um. Mais um que deposita a câmera do celular na grama para jogar a pedra – que não quica – em um lago e correr para os foras de campo que abrigam sua solidão. Mais um. Não exatamente uma odalisca androide, talvez um manequim mutilado, provavelmente um disco voador.


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