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O dorso da imagem

Seus Ossos e Seus Olhos é um filme que trabalha a eminência do Verbo e a caligrafia do Corpo pela chave do antinaturalismo. Na história da pintura, o antinaturalismo, herança do período bizantino, se consolidou, por um espaço irreal, sem profundidade, posturas não muito naturais, composições simples porém agudo expressionismo das imagens. Assim como na arte pictórica, todo filme dessa natureza põe em xeque o que vem a ser natural ao cinema e à vida. Aqui, há não só um aprofundamento e uma radicalização dessa superfície do exposto em relação ao filme anterior de Caetano Gotardo, como esse jogo transforma-se na própria matéria do filme. Depois de O Que Se Move, O Que Se Diz.

O filme nos exige um compromisso grande de cara. Se cruzássemos com Caetano Gotardo na esquina, o choque não seria só pelo esbarrão surpresa, mas por essa entonação e impostação corporal tão própria e sua dicção que cristaliza cada sílaba. Sua figura é uma espécie de evocação a um libelo antinaturalista, trazendo aos nossos ossos e olhos uma aspereza na melopeia do filme. É duro, duríssimo, entrar no jogo e não só por uma certa estranheza darwiniana, mas por que o registro antinaturalista é o tempo inteiro friccionado quando outra personagem, sempre menos rígida, é inserida no quadro, mesmo que esta ainda esteja enclausurada pela secura dos gestos. Isso parece menos parte do jogo, do que um deslize de tom.

Rompendo essa barreira – seja acostumando-se, passando por cima ou simplesmente ignorando-a – fica o convite aberto à transposição de outros mundos artísticos, especialmente a poesia e a pintura. Para o filme, a poesia vem menos da referência literária citada em versos e mais dessa transfusão melódica onde o timbre de voz torna-se palavra decantada e em última instância, sentimento; a pintura vem menos do quadro onde a moça vê uma foto, mas nas emoldurações que a câmera faz do mundo. Enquanto Irene (Malu Galli) fala no sofá, corta-se para seu colo e sua mão contorcendo suavemente, tão distante daqueles já viciados cortes de documentário para a mão de entrevistado; enquanto Irene desabafa no museu, vemos um plano – aqui parece infrutífero falar de contra-planos – de João (Caetano Gotardo) estático escutando-a, onde o grande abalo são seus olhos arregalados antes que contorça o pescoço em direção à pintura; da pintura da moça, faz-se pequenos quadros, sejam de seus pés, da tranca de madeira da janela ou do braço direito segurando toda a emoção para si ao ver a imagem que nunca vemos.

Vemos uma imagem (o plano) contendo uma imagem (o quadro) onde alguém vê uma imagem (a foto) que nos escapa. Esse vaivém de perspectivas é como a reorganização da estrutura de Seus Ossos e Seus Olhos. O que nos é auferido ver? Uma montagem que se reorganiza como mise-en-abyme de perspectivas narrativas: o que se diz no ensaio é causo, mas pode ser cena, vida em filme. Um boy do metrô num plano pode ser namorado de anos num outro plano. Nesse sentido, a cena chave do filme é da mixagem, mais especificamente o plano em que João e o editor de som veem a cena de Irene chegando com a cerveja na sala de casa. Se na vida – que é cinema – não há cerveja, que o cinema proporcione o álcool e a dança e a graça. A possibilidade do cinema não é só maior do que o “real”, é retroativamente infinita.

É famosa a classificação de Bazin: “o quadro (da pintura) polariza o espaço em direção ao seu interior, tudo aquilo que a tela [cinematográfica] nos mostra, contrariamente, pode se prolongar indefinidamente no universo. O quadro é centrípeto, a tela é centrífuga”. A estrutura narrativa de Caetano Gotardo é toda construída para evidenciar as linhas que arquitetam essa centrifugação. O material do cinema não é a revelação de um mundo específico, mas o próprio cinema como possibilidade de mundo.

As proposições do mecanismo são perto do inesgotável e, no entanto, Seus Ossos e Seus Olhos tateia tímido nessa exploração. Há uma ousadia na cobrança de um compromisso com o espectador nessa secura diante de uma crônica de um drama burguês moderno – eu diria até um pacto de fé do autor – mas pelo outro lado, o que ele entrega ao abrir a fenda é pouco além da própria descoberta do artifício. É como um antigo carpinteiro que adentra uma floresta, avista uma árvore atípica que, ao ser derrubada, tomba sobre sua oficina.

No(s) monólogo(s) sobre Nicolás, ouvimos menos um causo e mais um fluxo de consciência de Irene. A ação é mínima da primeira vez: o gringo dorme, enquanto o bafo de luz do banheiro e sua posição na cama impulsionam os pensamentos dela: “vamos se despedaçar pra essa memória ser difícil depois?”. Na segunda vez, menos um momento específico, mais questionamentos que ela se faz até o derradeiro “como se esquecer da sede enquanto se tem sede?”. A mesma ação – o encontro de Nicolás do outro lado da rua, sem conseguir alcançá-lo a tempo – que a leva a diferentes projeções da vida. Um plano quando posto em outro ponto da timeline torna-se outro plano. Por que então não assumir frontalmente isso? Nenhuma imagem se encerra em si mesma. “Nenhuma palavra é um poço do que não é dito”. O filme tem um poço, mas a água é muito limpa.


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