Entrevista com Caetano Gotardo

maio 14, 2013 em Cinema brasileiro, Em Campo, Entrevistas, Rodrigo de Oliveira

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por Rodrigo de Oliveira

A entrevista a seguir foi realizada na manhã da pré-estréia paulistana de O Que Se Move. Até aquele momento, mais de uma década se passa desde que Caetano Gotardo começara a alimentar este caminho de amor e perda que perpassa as três histórias independentes e radicalmente conectadas que este seu primeiro longa-metragem apresenta. Neste intervalo também, uma série de curtas-metragens que confirmaram Caetano como um dos cineastas que importavam no cinema brasileiro contemporâneo, entre eles O Diário Aberto de R. (2005), Areia (2008) e O Menino Japonês (2009). Nascido do núcleo da Filmes do Caixote, produtora que abriga também os trabalhos de Marco Dutra e Juliana Rojas, O Que Se Move teve estrutura de grande produção, guiada por Sara Silveira, com parte das filmagens em estúdio, no agora abandonado Pólo de Cinema de Paulínia. Apesar disso, mantém e expande o tratado de rigor e delicadeza que já conhecíamos dos curtas do diretor.

Mas o escopo é naturalmente maior e, por causa de sua estrutura, cheio de novas implicações. A entrevista tenta iluminar algumas das escolhas de Caetano ao lidar com estas histórias inspiradas em acontecimentos reais que povoaram, em maior ou menor medida, o imaginário nacional nos últimos tempos. E aqui talvez caiba um aviso de spoiler: ainda que conhecidas, parte do encanto da experiência de O Que Se Move vem do descortinar destas tragédias, ou melhor, da forma como são encenadas e na maneira como se ligam no filme – recomenda-se cautela ao leitor que ainda não o tenha assistido.

O suicídio de um jovem envolvido no crime de pedofilia, um bebê esquecido pelo pai num carro fechado, o reencontro com o filho biológico seqüestrado na maternidade: cada uma das situações preenchidas de conhecimento e de mistério, e nesta entrevista partimos do primeiro para tentar chegar ao segundo.

Cinética: Como se dá a passagem entre ouvir as notícias de jornal que inspiraram o roteiro e as três histórias que você conta e relembrá-las depois, em forma de filme?

Caetano Gotardo: Tenho a lembrança de que as notícias surgiram razoavelmente próximas, todas do início dos anos 2000. A mais forte é a que se dá na terceira história, [o filho seqüestrado na maternidade que é reencontrado pela mãe biológica já na adolescência], e me lembro que o jornal contava sobre esse reencontro numa churrascaria, o que foi uma imagem que me impactou muito. Este foi o único episódio que eu considerei filmar como curta-metragem, mas nunca nem escrevi o roteiro. Escrevi um poema, que inclusive está no livro [“Matéria”, que reúne poemas de Caetano, Marco Dutra e Carla Kinzo, lançado este ano pela Editora 7 Letras], chamado “Dezesseis Anos”. Mas existia uma pasta no meu computador chamada “recortes”, ou algo parecido, onde eu ia guardando estas histórias que apareciam na imprensa, as três que aparecem em O Que Se Move, mas também muitas outras. Me lembro de um senhor de 106 anos que tinha se matado no quintal de casa porque estava cansado daquilo tudo… Mas eu não sabia, naquela época, como me aproximar destas histórias. E com o tempo, foram estas as três histórias que começaram a voltar juntas: sempre que eu pensava em uma, vinha a outra colada a ela. Três histórias onde a complexidade estava nessa impossibilidade de encontrar um culpado, em delegar culpa. E uma incapacidade de compreender completamente uma situação. O que a gente tem é sempre um pedaço, um ponto de vista, nunca se pode enxergá-las por completo. E as três histórias, juntas, imprimiam ainda mais essa idéia da impossibilidade de totalidade, de um entendimento completo.

E a figura das mães, desde esta época, já estava no centro das histórias?

Nas notícias elas não eram o centro, não. Falava-se das famílias, mas não das mães em específico: em algumas nem se mencionavam as mães. Imediatamente eu pensei que não queria ter um olhar fatalista sobre estas histórias, e que eu precisava me descolar de um tratamento realista. Nenhum traço obrigatório de verdade, de “baseado em histórias reais”. Me interessava o entorno, aquilo que estava ao redor dessas situações, o cotidiano. Não queria condená-los à tragédia no filme, no filme inteiro. E que houvesse algum momento de descolamento, de transbordamento… e aí a primeira idéia é que o filme fosse inteiro cantado. Eu liguei pro Marco Dutra [co-autor das canções de O Que Se Move], contei as histórias reais, mas ele só se empolgou de fato quando eu sugeri a música. E já há alguns anos eu queria trabalhar com [as cantoras] Cida Moreira e Andrea Marquee, não necessariamente no mesmo filme. E esse desejo vinha exclusivamente de vê-las em cena, no palco: a presença delas ali era muito forte. E quando surgiu a idéia de fazer um filme com canções, as atrizes surgiram ao mesmo tempo. Daí vêm as mães, porque eu gostaria de filmá-las cantando. E nunca sequer cogitei cruzar estas histórias, mas eu gostei deste elemento recorrente, estas mães que cantavam – e aí sim elas foram se tornando o centro do filme.

Algo curioso de se partir de fatos reais sem encená-los de fato é que uma parte do encanto, e da proximidade do espectador com aquilo, é que nós acompanhamos o desenrolar dessas histórias com alguma memória sobre aqueles eventos, algo ali o fundo da cabeça, mas que nos vem sem precisão nenhuma. Só que há um signo de realidade ali que é inescapável. No terceiro episódio, quando a Fernanda Vianna está sentada na churrascaria, diante do filho que acabou de reencontrar, a avó de criação do menino diz que ela é “muito diferente” do que eles imaginavam, e ao longo do filme todo há uma certa expectativa e uma imagem da “mãe sofredora”, da mãe que se penitencia pela tragédia dos filhos. Como você equilibrava estas duas idéias: lidar com um signo de realidade que inspira naturalmente uma imagem e, ao mesmo tempo, apresentá-las por outro viés? E isso me parece estar bastante ligado à figura da mãe: se este fosse um filme sobre os pais, talvez ele fosse muito menos dominável.

Sinto que o filme aborda todos os personagens de maneira parecida, não havia um olhar diferente sobre estas mães em relação a todos os outros. Fundamental para isso foi não retornar às notícias reais na hora de escrever o roteiro: eu fiquei só com aquela lembrança distante dos fatos, mas queria construir algo de novo a partir disso. Nunca reli essa pasta dos “recortes”. Não me preocupava me aproximar ou não desta imagem anterior que se tem da “mãe sofredora”. Houve um momento do roteiro, por exemplo, em que eu mostrei um tratamento para o Marco e ele me disse que não entendia porque não era o pai [Romulo Braga] que cantava, na segunda história. Ali, é como se nada no roteiro desse à mãe o direito de cantar o final, ao invés do pai. A partir disso eu criei aquela cena em que a mãe [Andrea Marquee] está sozinha na cozinha na manhã seguinte. Era também o pai que contava à mãe toda a história do filho morto no carro, e na versão final do filme é o contrário. É como se, a partir do acontecimento, a mãe tomasse o controle da história. Como modo de sobrevivência, inclusive: ela assume para si a condução daquele drama, a proteção daquele marido, da memória do filho, e com isso ela ganha o direito de cantar. Era a dramaturgia que ia pedindo estas decisões, mais do que um conceito anterior que valesse para todos.

Pela maneira como as histórias estão organizadas – não exatamente numa linha evolutiva, mas vai-se da tragédia mais misteriosa para a possibilidade de esperança mais improvável – estes três episódios se influenciam mutuamente, e algo que se depreende de um contamina a visão do seguinte. A que distância estão de fato estas histórias umas das outras?

Sempre pensei numa linha emocional única, que atravessaria o filme inteiro ainda que as histórias específicas nunca se comunicassem diretamente. Eu nunca quis que este fosse um “filme de curtas”, como cheguei a ouvir de alguns examinadores das bancas de laboratórios de co-produção por onde o projeto passou – a falta de uma ligação factual entre as histórias parece incomodar algumas pessoas. Mas havia esta linha emocional, que era do filme inteiro e que atravessaria as três histórias: o segundo episódio só pode começar naquele momento, com o Romulo Braga, o pai, naquele estado, porque a gente acabou de sair do que aconteceu no primeiro episódio [do suicídio do adolescente suspeito de pedofilia].

Cabe ao personagem do pai na segunda história ter a reação à tragédia anterior que nós não pudemos ver e que ele também desconhece.

Exato. E a segunda história é um caminho para aquele casal aprender a viver aquela ausência do bebê morto, e desemboca no casal da terceira história que já convive com aquele drama há dezesseis anos. É como uma elipse mesmo. Eu tinha o medo de abandonar aqueles personagens, de vê-los no auge do sofrimento e então largá-los em nome da história seguinte. Mas existia sempre a história seguinte, que ela refletiria e alimentaria aqueles que eu abandonei. Nessa opção havia um corte, algo violento, o abandono. Mas era importante que os personagens ecoassem uns nos outros.

Eu queria que você falasse um pouco dos homens agora. Dentro dessa estrutura de histórias que se comunicam sem se falar, existem algumas simetrias. A mais evidente é a dos dois adolescentes, o do começo e do final: o primeiro cuja identidade é um mistério porque nos é secreta, e secreta também a todos que o cercam, e o segundo que é um mistério justamente porque parece não ter identidade nenhuma (tem dois nomes, dois passados), uma identidade em construção. E no meio disso há o pai da segunda história, que me parece ser visto, sem meios-tons, como o perpetrador, o mais claramente culpado num filme que tenta livrar todos de alguma culpa imediata. 

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Primeiramente eu acho que os três filhos se espelham: o Francisco também, o bebê que nós nunca vemos, está implicado nos dois adolescente. Em alguma medida eles me parecem o mesmo personagem, o espelhamento simétrico dos dois adolescentes é o mais claro, mas o bebê também poderia se tornar aqueles adolescentes. Esse mistério me interessava mesmo, nós só podemos ver parte de alguém, nunca a totalidade. Os adolescentes são muito fortemente isso. Uma das chaves, pra mim, está no verso que a Cida Moreira, a primeira mãe, canta: “Mas isso não diz tudo sobre ele”. Estes meninos não podem ser definidos por uma única ação, por algo que ela faz ou deixa de fazer, qualquer uma dessas situações não pode dizer tudo sobre eles. Eu vi uma coisa muito bonita no processo do filme. Nós filmamos em Agosto, e em janeiro eu fui ao Festival de Rotterdam apresentar o Desassossego [filme no qual Caetano dirigiu um episódio], depois passei dois dias em Amsterdam e fui à casa da Anne Frank. Havia um vídeo do pai da Anne Frank falando que ele sempre se considerou muito próximo a ela, uma relação muito boa, e não é uma ilusão: você lê o diário e vê que ela de fato se sentia assim, muito mais próxima dele que da mãe. E que quando ele leu o diário, ele entendeu que não conhecia a filha. Que existia um universo subjetivo inteiro dela que ele sequer intuía – e eles viviam escondidos num lugar ínfimo, convivendo diretamente um com o outro. Isso já era um tema do filme, e com esse detalhe se tornou algo mais forte ainda. Mesmo com o bebê Francisco, no segundo episódio, a mãe se pergunta no que ele estaria pensando. Os três filhos são e permanecerão um mistério.

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O personagem do Eduardo [Romulo Braga], o pai do segundo episódio, talvez ele tenha sido o mais difícil de lidar. Todos os outros, de algum modo, passam por estágios diferentes até chegarem à tragédia, enquanto ele já está instalado nessa sensação desde o começo. No recorte do filme, é o único que está condenado. Na história original, eu li uma entrevista com a mãe, um ano depois do acidente com o bebê no carro, dizendo que nunca culpou o marido, que ele era um ótimo pai e que ela sabia que aquilo era uma fatalidade. Esse era o olhar que eu queria ter, olhá-lo do mesmo modo que esta mãe da vida real fazia. Ainda que o filme o condene ao estado da tragédia exclusivamente, eu não queria estigmatizá-lo. Era importante que ele fosse complexo o suficiente para evitar esta facilidade, ainda que seja de fato a única história em que existe um “assassino”. O ato de matar não é um ato em si, é um esquecimento inconsciente. O choro dele no começo do episódio tem muito mais a ver, no filme, com o drama anterior, que não é desse pai, e isso o retira um pouco deste lugar enclausurado onde eu o coloquei. Vendo o filme hoje, no entanto, eu ainda me sinto culpado por essa crueldade com ele.

Penso no plano que apresenta mais diretamente esse sentimento de culpa, que é aquele em que este pai está dentro de um estúdio ouvindo uma gravação, mas que o enquadramento e a montagem suprimem essa informação, suprimem o contexto, e nós só temos a imagem desse homem de olhos marejados. A música mesmo me faz lembrar a trilha sonora dos filmes mudos, onde é preciso se dizer algo sobre a cena que o personagem mesmo não pode verbalizar. É um plano tradicional da experiência de culpa, mas é premonitório – ele ainda não sabe. E aí surge a idéia que o filme faz do tempo presente como este estado desejável, talvez o único onde se possa ter algum controle. A mãe da Joana, a criança que aparece naquele plano longo da cozinha, ao responder a mãe de Francisco, que já está morto àquela altura sem que ninguém saiba, diz que a criança não está pensando em nada, ela está apenas no presente. Na canção final da Fernanda Vianna o tema é retomado, e ela canta “tudo o que, em você, se move pela duração mínima do presente”. Ao mesmo tempo, o filme só está em marcha efetivamente se nós pensamos no passado. O filme demanda a retrospectiva: no momento em que se abate a tragédia, é preciso retornar ao que já se viu para que esse julgamento sobre o fato trágico se torne mais complexo. É um filme que faz uma propaganda sobre a vida no presente, mas que só nos coloca nesse lugar se nós voltamos ao passado. Há uma diferença entre o tempo do filme e o tempo do universo ficcional que ele representa. O filme já sabe, ele tem esse privilégio – e é por isso que o pai pode ser filmado daquele jeito no estúdio, o filme tem consciência do que se passou e do que ainda vai acontecer, e ao mesmo tempo depende da ignorância do personagem. Como você percebe essa diferença de consciências, entre o filme e aqueles que ele retrata?

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Tento o tempo todo não impor aos personagens aquilo que eu já sei, e conseguir criar, nos espaços desse cotidiano, dessa vida comum que o filme apresente, o lugar desta vida sem peso – não condená-los à tragédia, como já falei antes. Mas essa dinâmica entre o passado, o presente e o futuro é o próprio cinema. A experiência de assistir a um filme já é assim, o que está filmado já se deu no passado, e no momento em que o filme é projetado ele se presentifica. Qualquer filme é passado e presente ao mesmo tempo, a princípio. E O Que Se Move busca isso, uma experiência compartilhada do tempo presente entre platéia e personagem, sem esquecer que ele é impregnado do passado, já é passado necessariamente.

O que me parece mais definidor da forma como o filme se apresenta é a decisão de não encenar o suicido do Pedro no primeiro episódio. A irmã dele fala no jantar com a família que ela gostaria de ter “uma conversa normal, como uma família normal”, e a maneira como ele se apresenta, em todo aquele trecho inicial do parque, é absolutamente normal. Mas aquilo que ele poderia dizer sobre si na hora em que escolhe morrer nos é vetado pelo filme. Qual é o impulso de suprimir a imagem da morte, e figurá-la daquele jeito: a janela aberta, a cortina branca, o ruído em off. Quando esse menino perde o direito de se apresentar complexo por conta própria?

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Isso tem muito a ver com o que falei sobre a segunda mãe assumir a história, o controle do drama, e por isso cantar – ela, e não o marido. No primeiro episódio, a partir da chegada dos policiais na casa, é como se o menino passasse para a mãe o controle. Em todo aquele plano ele fica de costas, e perde o movimento inclusive, uma presença física de costas para a câmera, e é a mãe a condutora. Ela sequer sabe o que está acontecendo, e a partir deste momento o filme se torna ela, este mesmo filme que era o menino até aquele momento, e é por isso mesmo que nós não o conheceremos completamente. É o movimento da própria mãe na relação com ele, nesta mudança do ponto de vista: algo conhecido, que se torna instantaneamente misterioso, e nós não vemos porque ela não vê. E a janela aberta é o anunciador da morte, o símbolo da morte para ela, a mesma janela onde ele está no começo do filme e onde ela o enxerga – e na segunda história o símbolo da morte é uma janela fechada, de uma morte que também não se encena.

As canções do filme, cantadas por cada uma das mães ao final desse ciclo trágico, claramente não estão tentando explicar alguma coisa nem sanar qualquer dor imediata. Mas o pendor musical adianta algum tipo de harmonização, um respiro de articulação sobre a dor que, sem a música, talvez as mães não conseguissem alcançar. Respiros em meio a alguns signos de crueldade espalhados pelo filme todo. O plano da menina Joana brincando na cozinha enquanto a personagem da Andrea Marquee a observa fora de quadro é talvez o melhor exemplo destes signos de crueldade de que eu falo: é o plano que nos mostra que ela é boa mãe. Esta mãe sente prazer na companhia de crianças, se admira e se espanta, e definitivamente não se infantiliza para lidar com elas. Que equilíbrio possível te parece existir então entre estes momentos de crueldade deliberada e a necessidade de respiro ao final de cada uma destas histórias?

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A Fernanda Vianna, a atriz que faz a mãe do terceiro episódio, até brincou com isso durante as filmagens. No abraço que ela dá no filho que lhe foi roubado, nesse reencontro na churrascaria, eu sempre pedia para que esse abraço durasse um pouco mais a cada nova tomada. Ela dizia que eu era todo delicadinho, mas no fim queria mais abraço, mais abraço [risos]. Deixar este abraço durar é muito cruel sim, mas é só uma anedota que eu lembrei por causa da pergunta. Mas eu não sei se eles são conscientes estes momentos de crueldade, porque eles têm a ver com o olhar. Para algumas pessoas, este plano da Joana é cruel porque elas acham que o bebê vai engolir uma das bolinhas com que está brincando, vindo da primeira história.

É, o filme alimenta uma expectativa de tragédia, por causa da sua estrutura.

As pessoas acham o plano tenso, e isso é absolutamente inconsciente: para mim é um plano de maravilhamento. Então há a possibilidade desse olhar mesmo sobre algo onde não havia nenhuma intenção de crueldade. Outras pessoas acham que colocar a Andrea sozinha na cozinha, chorando antes do café da manhã, é esgarçar ao limite a possibilidade de dor daquela mulher, e para mim é o contrário, é o tempo de entender e acomodar aquela dor dentro da vida.

Neste plano especificamente há um respiro literal, a personagem se coloca numa posição para tomar ar e continuar a preparar o café.

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Essa cena vem do Jogo de Cena, do Eduardo Coutinho, uma cena em que uma mulher que teve o filho assassinado fala que ainda naquela altura ela acordava vinte minutos antes da outra filha acordar, para chorar tudo o que precisa e seguir com a vida. Com esta personagem se dá o mesmo, o tempo necessário para experimentar aquilo e poder continuar o dia, chamar o marido para o café, enfim. O filme quer assumir essa dor. Sem um olhar fatalista sobre estes personagens, mas sem fugir dessa dor, não negá-la. Nesse procedimento, a crueldade surge, mesmo sem que nada tenha sido pensado para sugerir isso.

Você pensa no futuro destes personagens? Isso é algo importante pra você no processo, ou mesmo hoje, como espectador “qualificado” do filme, onde eles estão para além do que o filme mostra?

Mais uma anedota então, que foi muito bonita pra mim: no dia seguinte à exibição do filme em Gramado eu estava na fila do café da manhã e à minha frente o Kleber Mendonça Filho, meio distraído. Quando ele percebeu que eu estava ali, me cumprimentou e me disse que estava pensando ainda nos meus personagens, “e eu queria saber como eles estão?”. Ele acordou com os personagens na cabeça e se perguntava sobre o agora, sobre o depois de tudo. Eu fico nesta chave também. Apesar de estar distante das notícias, eu acabo me referindo a elas para pensar neste futuro. A primeira não teve muita conseqüência na imprensa, mas as duas seguintes sim. Aconteceu uma coisa muito bonita no processo dos ensaios, onde nós fazíamos algumas improvisações em torno do roteiro, não necessariamente das cenas em si. Uma improvisação que fiz com o Romulo e com a Andrea [os pais do segundo episódio], em que fizemos um café da manhã um dia antes da morte do bebê, e outro um ano depois, foi a única projeção de futuro que ensaiamos mesmo. Essa cena do café da manhã um ano depois foi muito forte, e isso impregnou os personagens e os atores, imaginar este futuro. Uma pergunta que me faço sobre o futuro, mas também sobre antes, sobre tudo o que está no filme de fato: como estas pessoas andam, jantam, sobre o que elas conversam?

O próprio título do filme sugere uma teorização, uma teoria sobre o movimento: ele pode virar uma pergunta, “o que se move?”, mas também “como se movem essas coisas?”. E você filma aqueles momentos esportivos, que estão entre os mais anti-esportivos de todos, justamente porque se nega a completude do movimento. 

Os esportes vêm junto a várias outras coisas que pontuam o filme inteiro. Percorreu o filme inteiro a idéia de registrar movimentos sem objetivo: o plano do cisne no parque, o plano do bebê na cozinha, a brincadeira de parar e se movimentar no parque, a máquina de dança. Seres se movendo sem um propósito objetivo, e os esportes fazem parte disso, uma simples expressão do movimento. A pulsão de vida no sentido mais simples, terreno, material, nada grandioso. O atletismo vem de um banco de imagens, mas a ginástica a gente filmou, e eu acho a ginástica um esporte muito cruel. Nas Olimpíadas você escorrega e cai de bunda no chão, e aí lá se vão quatro anos da sua vida jogados no ralo por causa de um deslize. E os atletas todos parecem muito sofridos, sempre muito tensos. E é uma competição subjetiva, notas que podem mudar de acordo com o olhar de quem viu. E não há o objetivo, colocar uma bola no gol: são movimentos e a precisão deles, só. E nós queríamos filmar a ginástica desconstruindo a busca da exatidão, que é o caminho natural do esporte. As imagens vão para o lugar do inexato, pensar no que não é feito: quando se está nas argolas, o que não se faz é olhar para o lado, respirar, se acomodar na trave, e é isso que nós queríamos filmar. O movimento decupado, organizado, misturado ao movimento desorganizado que é o nosso, da vida.

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E qual é a força que faz com que o mundo em torno da Cida Moreira, a primeira mãe do filme, se apresente em forma de coreografia a partir da exposição da dor dela? Quem os faz dançar?

É uma absoluta subjetivação. O estado dela é o estado de tudo o que está ao redor. É uma contaminação total, transbordando no filme: formalmente o filme também se torna ela. Neste episódio isso é mais evidente, porque todos dançam ao redor dela, mas isso se dá em todas as histórias: os meninos na máquina de dança na canção do segundo episódio, os atletas no ginásio durante a canção da terceira mãe. Estas são também coreografias, mais sutis, mas são coreografias sugeridas pelas canções, pelo drama destas mulheres.

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Por fim: no que você está trabalhando agora?

Desde o fim do curta O Menino Japonês eu tenho pensado num projeto, que agora se chama Seus Ossos e Seus Olhos, que ainda está bem inicial, mas que quero fazer com uma estrutura bem diferente do O Que Se Move, que teve uma estrutura mais padronizada, maior e mais cara. Este filme novo é para ser filmado aos poucos, com bem menos dinheiro. Um outro projeto é com o Marco Dutra, que se chama Todos os Mortos, que nós estamos escrevendo juntos e que vamos dirigir juntos também, pela primeira vez. Este, apesar de já ter roteiro, também precisa desta estrutura maior do O Que Se Move. E também estou colaborando com o Sérgio Borges num roteiro, e vou fazer como ator um curta do Leonardo Mouramateus. Essas interações e trocas todas que tem acontecido, e que são muito boas, sempre.

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