Dos Disparos (Argentina, 2014), de Martin Rejtman

agosto 12, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

dosdisparos

O longo verão
por Filipe Furtado

Na safra do cinema argentino de 2014, Dos Disparos é possivelmente o trabalho aguardado com maior expectativa. Trata-se, afinal, do primeiro filme para cinema do diretor Martin Rejtman desde o média de não-ficção Copacabana, de 2006. Rejtman pode ser um nome menos reconhecível para o cinéfilo brasileiro do que um Pablo Trapero ou Lisandro Alonso, mas ele foi uma figura central na chamada nova onda do cinema argentino, com trabalhos-chave do período como Silvia Prieto (1999) e As Luvas Mágicas (2003). Seu retorno ao longa-metragem após mais de uma década é um evento dos mais importantes para o cinema local. Desconheço os motivos que o mantiveram longe dos cinemas por tanto tempo mas, para os interessados na vitalidade do cinema argentino, um filme novo de Rejtman é decerto um evento. Dos Disparos não representa uma reinvenção do seu cinema, mas este longo intervalo sem filmar aponta para novas ênfases, com um pouco menos de humor e uso de repetição e acaso do que nos seus primeiros trabalhos. Entre os cineastas da sua geração, Rejtman é aquele que melhor faz uso do gosto do cinema local pelo minimalismo e, ao mesmo tempo, Dos Disparos complica tal ideia ao erguer o filme a partir de uma situação limite como uma tentativa de suicídio e então expandi-la.

O ponto de partida de Dos Disparos é uma ação sem explicação: Mariano, um jovem de 16 anos encontra uma arma no meio da bagunça de casa, e atira contra si duas vezes, uma na barriga e outra na cabeça. A sequência que mostra Mariano do mergulho da piscina e a cuidar das tarefas de casa até encontrar a arma sugere um trabalho de observação, mas há algo distinto na forma como o suicídio é apresentado: é um evento sem lógica (mesmo a dramatúrgica, já que Mariano atira contra a cabeça e só depois contra a barriga) ou sentido. Tudo que vem a seguir pouco faz para iluminar este evento inicial: Mariano sobrevive – uma das balas nem é achada, nem deixa o corpo do jovem – e todo o seu comportamento pouco sugere o de alguém que recentemente tentara cometer suicídio. Não há explicações possíveis, somente o ato, a forma como a personagem se sente compelida a cometê-lo. O episódio persiste fora da ação, como uma mão autoral perceptível sobre tudo mais que acontece, e, ao mesmo tempo em que a bala dentro do corpo de Mariano persiste alegorizada, seu retorno constante – seja como o som dissonante que atrapalha os ensaios do seu quarteto musical, seja em seu fracasso de passar por detectores de metal – só reforça seu caráter simbólico.

Se a primeira surpresa de Dos Disparos é a chegada abrupta e sem explicações do ato inicial que lhe empresta o título, a segunda é a constatação de que o filme tem pouco interesse em se fechar sobre Mariano. No lugar disso, toma para si o longo verão desencadeado por este ato inicial e o desdobra em vários blocos dedicados não só a Mariano, mas também ao irmão, à mãe, à jovem que entra para seu quarteto e aluga um quarto na sua casa, aos amigos que a mãe faz numa abrupta viagem de férias, etc. Aos poucos a tentativa de suicídio se torna um detalhe: enquanto Dos Disparos vai expandindo o seu escopo e acrescentando novos personagens e situações, Mariano é abandonado por longos blocos, e o que permanece dele é a arbitrariedade do ato inicial e a sombra que ele joga sobre tudo.

Não se trata, porém, de um filme painel. Martin Rejtman tem pouco interesse em coincidência, paralelismos ou nos grandes picos dramáticos que dominam filmes multiplot. Dos Disparos parece voltado apenas para ideia de colecionar personagens e situações. A certa altura já próxima do fim, a mãe de Mariano encontra um cachorro igual ao cão da família que desapareceu no dia da tentativa de suicídio e resolve seguir o dono dele até sua casa. O filme então inverte o foco e oferece o cotidiano daquela outra família enquanto se prepara para sair de férias e precisa esperar a clínica que ficara com o cão neste ínterim ir buscá-lo. Outro filme poderia usar a oportunidade para fechar as pontas, usar o cachorro para tornar a ação circular, mas Dos Disparos usa o momento apenas para expandir ainda mais seu escopo: da família, retira-se somente o que as suas ações demonstram, e, se nada no filme terá o peso do choque da tentativa de suicídio inicial, aos poucos ele ensina a ver estas ações com a mesma opacidade, o mesmo misto de natural e coreografado para a câmera, uma curiosidade que é acompanhada da certeza que seu mundo jamais se tornará claro. O cinema de Martin Rejtman sempre foi assombrado pelo inexplicável – pensemos, por exemplo, na outra Silvia Prieto, cuja existência atiça a curiosidade da protagonista do filme homônimo. Em Dos Disparos, o olhar preciso do diretor serve só para reforçar mais a opacidade de cada uma das ações: elas existem por si mesmas, sejam elas um tiro, um beijo, uma fuga. Uma garota pode lhe dar bola e quase forçar a barra numa festa na presença do namorado e desaparecer da sua vida semanas depois, ou uma bala pode sumir dentro do seu corpo e seguir ressoando como um fardo constante. Se Dos Disparos tem menos do humor à Kaurismaki que marcavam os filmes anteriores do diretor, traz também o mesmo gosto por situações absurdas, como o momento em que a mãe toma um calmante e dorme por três dias.

Essa abordagem faz com que verdadeiro protagonista de Dos Disparos não seja Mariano, mas o verão, e a passagem destes meses surge naturalmente do acúmulo de personagens e situações. Rejtman opta por filmar seus personagens quase sempre no seu momento de descanso – em férias, em festas, na saída do trabalho – e esse escorrer do tempo só serve para reforçar o enigma que envolve cada ação. Ao final, um personagem pode ou não ter revisto uma garota que conhecera meses antes; o longo verão só reforça o mistério do mundo.

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