obanquete-header

… ma non troppo

O Banquete começa com um close up de uma planta carnívora comendo uma mosca em uma sala de jantar. A imagem difere ligeiramente do tipo de registro que pautará o restante do longa-metragem, porque se quer metafórica e premonitória, pronta a ecoar nos momentos seguintes do filme: o jantar é uma armadilha. Logo descobriremos o setup – uma mesa com oito lugares vazios frente a um enorme espelho, que servirá para, no reflexo, emoldurar e retirar de quadro sequencialmente as figuras que o adentram – neste cômodo é que se passará praticamente toda ação do filme. A trama irá se revelando aos poucos, na medida em que cada uma das visitas vai chegando e depositando suas pistas. A anfitriã (Drica Moraes) chora, e demonstra haver alguma tensão no ar, depois sai para tomar banho. O anfitrião (Caco Ciocler) entra bêbado, sem entender nada, e é surpreendido por um jovem garçom. “Me explica o que está acontecendo aqui”, indaga, e o espectador ganha a sua primeira informação, colocada diretamente na boca do garçom: é um jantar para comemorar um aniversário de casamento. Este será o cacoete narrativo de praticamente todo o longa-metragem, que somará mais e mais informações à medida em que uma nova visita vai tomando o seu lugar à mesa.

Não demora também para que o espectador perceba que tipo de ambiente é este: uma casa chique (“de arquitetão”, diz um dos personagens ao adentrá-la), habitada por figuras de uma suposta elite intelectual – críticos de teatro, atores prestigiados, advogados e colunistas de jornais – que tomam vinhos chiques e importados, e são conhecidos uns dos outros. Usam aparelhos de celular antigos, e em dado momento, fala-se no presidente Fernando Collor de Mello, revelando estarmos no início da década de 1990. Percebemos também alguns dos dilemas que rondam aquelas relações. Os dois principais, em torno dos quais tudo gira, são: que as visitas para o jantar são amantes do marido (Rodrigo Bolzan) que comemora os seus 10 anos de casamento, e foram constrangidas à presença pela anfitriã, também sua antiga amante; que o marido, por sua vez, está sob o risco de ser condenado à prisão, por ter publicado em seu jornal uma carta que denunciava o despotismo do presidente. Estes dois dilemas se imbricam, contrapondo a intimidade da sala de jantar mostrada no filme com fatos históricos mais significativos (é o primeiro governo eleito após a ditadura, e o filme indiretamente se inspira na história pública de um diretor de redação da Folha de S. Paulo) que surgem aqui e acolá trazendo um fora-de-campo social para aquele conjunto de relações moralmente degradadas. “Se você não for preso amanhã”, diz a anfitriã no final ao marido dormindo no chão, “levanta porque amanhã a gente precisa salvar este país de merda”. Enquanto isto, assistimos ao rosto da esposa que acabou de descobrir a traição, rindo e chorando ao mesmo tempo.

obanquete01

A visão do filme quanto a este fenômeno é o resultado de um conjunto de escolhas cinematográficas, e um regime de representação que se impõe através destas opções formais. O “quebra-cabeça da mesa de jantar” de David Bordwell (“Você é um diretor de cinema. Hoje, o roteiro pede quatro personagens conversando em volta de uma mesa de jantar. Como será a montagem da cena e a filmagem?”) é aqui uma premente necessidade de resolução da mise-en-scène. A armação cênica (o espelho) já resolve parte do problema de juntar figuras em quatro ângulos diferentes no mesmo quadro, e a escolha de Daniela Thomas é pelo frequente uso das lentes fechadas em cinemascope com focos cambiantes; a câmera levemente trêmula, povoando os arredores do centro da imagem com pessoas e corpos fora-de-foco, e dando ao espectador uma sensação de proximidade, entre o intimismo e a claustrofobia; uma montagem que desliga os espaços e as referências visuais. Deste modo, agarramo-nos menos ao espaço cênico e sua ordenação geográfica e voltamos nossa atenção mais aos atores, suas expressões e gestos, e aos diálogos, excessivos e sempre muito autoexplicativos sobre o drama que cada um deles vive. O esquema, típico de uma quantidade enorme de filmes contemporâneos, aproxima o espectador com algum naturalismo da situação, na mesma medida em que correlativamente, lhe deixa aprisionado nesta proximidade que carrega alguma tensão. O filme preocupa-se com eles, e só com eles. O problema começa por aqui: a encenação destas situações, que adquirem um aspecto muito teatral e exagerado, quase novelesco, não nos dizem rigorosamente nada. Tudo que está em latência se dissolve pela necessidade em construir uma forma aparentemente límpida de encenação, enfraquecida por personagens unidimensionais, falando muito, mas nunca passando da primeira palavra em relação a nada do que dizem. Reiterando, a todo tempo, as mesmas coisas banais.

O caráter de denúncia quanto a esta classe social retratada, em alguma medida dirigente do país, fica absolutamente soterrado pelo enorme fascínio que o longa-metragem demonstra por aquela dinâmica interna a eles, tratando-a com uma seriedade muito, mas muito obtusa, como se os sentimentos ali expostos pelos atores fossem excessivamente nobres ou dignos para serem banalizados; como se a corporificação das falas ácidas pelo elenco tivesse uma grandeza e, em si, sustentasse a obra e isentasse de preocupação com qualquer outra dimensão que o longa-metragem pudesse perseguir; como se este modo de encenar o tema e o drama não fosse por si só de um grandíssimo elitismo cultural, e toda as repetidas trocas-de-farpas e indiretas daquele baile sádico que perdura por uma hora e quarenta e quatro minutos não fossem igualmente despropositadas, porque incapazes de mergulhar a fundo em suas próprias contradições. Porque nada ali é, no fundo, nem sádico, perturbador ou visceral, mas uma versão domesticada e límpida destas coisas, de forma que o sentimento mais notável que participamos é mesmo o do (nosso) constrangimento em relação a eles.

obanquete02

O banquete, em si, é menos uma denúncia de classe que uma adaptação barata do clássico platônico (e repetidas vezes, o filme precisa nos relembrar disto e de todas as referencias canônicas que insiste em fazer), onde, ao redor da mesa, filósofos discursam sobre a essência do amor (repete incessantemente a anfitriã), em um molestar mútuo dos personagens que, filmados por uma câmera que observa seus atos como realizações diáfanas de um elenco iluminado, nos fazem no máximo uma cosquinha. O que há de soberbo, ridículo, pérfido e realmente incômodo nesta elite cultural brasileira aqui não existe, pois o filme é, em suma, uma afirmação estética e política da própria classe. Uma classe que tem por excelência o axioma da elegância e o dogma de nunca ir fundo demais em nada do que prega, para poder falar sem machucar e sem ser machucado, falar quase que por falar. Há uma espécie de medo ou pudor em explorar tudo que ronda aquele ambiente e que tem algum potencial de vir à tona – em uma premissa de argumento que poderia potencialmente gerar coisas interessantes -, uma falta de vontade ou esforço de cutucar a ferida um pouco além do risco da superfície, como se este gesto fosse também terminar por ferir a si mesmo. Acaba sendo um filme sobre sexualidade sem sexo (sem desejo carnal ou luxúria real), pecado sem transgressão, vulgarismo com classe, violência pacífica (e uma constrangedora cena de briga de bêbados), constrangimento de gênero e classe sem direcionamento nenhum; tudo sempre allegro ma non tropo. Sobretudo, uma falação sobre o amor – suas maravilha e horrores – sem conseguir em momento algum evocar nada de real sobre ele. O que é um perigo pois, aos poucos, a degradação moral da classe retratada torna-se uma paisagem moral aceitável. Moralizante, inclusive.

A primeira imagem é realmente um bom resumo para O Banquete: uma planta carnívora comendo o mosquito. Uma planta carnívora bem pequena, em um vaso também pequeno, na sala de jantar.


Leia também: