Permear dissonâncias, resistir aos deslumbres

Restaurar possibilidades de interlocução, cuidar das ausências, reelaborar o luto – a força desses gestos constitui Los Silencios, de Beatriz Seigner, um filme que, não à toa, se compõe não apenas em uma zona indefinida de fronteiras, mas também sobre o fluxo inquieto dos rios. Ao abordar uma guerra, em que os homens geralmente ocupam o fronte, importa que o filme se dedique, sobretudo, às mulheres e às crianças, a sua capacidade de resistência e reinvenção. Essa sensibilidade voltada àquelas que encontram refúgios, abrigos e… CONTINUA

Os destroços da civilização europeia

A Portuguesa é o sétimo longa-metragem de Rita Azevedo Gomes, cineasta da linha de frente do cinema português que apesar de três décadas de uma produção rica, só nos últimos anos veem recebendo timidamente um pouco da atenção merecida. Recentemente o filme circulou pelo Brasil, primeiro no Olhar de Cinema e depois numa pequena retrospectiva dos seus filmes em São Paulo. O cinema de Gomes traz à frente alguns elementos da tradição do cinema português, sobretudo na sua relação com a literatura e aristocracia, com… CONTINUA

A política para além do quadro: cinema brasileiro em tempos de incerteza

Não é fácil realizar um festival de cinema num cenário tão turbulento quanto o do Brasil hoje, ainda mais quando o financiamento para cultura (incluindo de forma bem direita os festivais) está sob questão. Era difícil não pensar nisso cada vez que passávamos pela entrada dos cinemas e víamos com destaque nos cartazes “o Ministério da Cidadania, Governo do Paraná e Copel apresentam…”. A simples mudança do ministério responsável, um lembrete bem direto sobre o momento presente. O perfil do Olhar de Cinema nessa oitava… CONTINUA

A burocracia não nos servirá em tempos de guerra

Estamos situados em uma sala escura. Nela, dois corpos posicionam-se um diante do outro. Raros os planos em que ambos serão dispostos no mesmo quadro, mas é a partir da interação entre eles que acessaremos um dos momentos mais paradigmáticos da história recente do país, seus ecos e seus fantasmas – atualmente sempre à espreita, em busca de um corpo no qual encarnarem. O momento: aquele Brasil pós-1964, os interstícios de uma guerra travada entre as forças do Estado e qualquer uma que ousasse contestá-las.… CONTINUA

O pau de Deus: a extrema direita na vanguarda do cinismo pornográfico

O filme Obsessão (2004), dirigido por J. Gaspar, faz parte do selo pornográfico Brasileirinhas. Na capa do filme está a atriz Chloe Jones, “a número 1 dos EUA”, nos braços de Alexandre Frota, ator pornô e hoje deputado federal pelo PSL. Ainda no cartaz de divulgação Chloe surge vestida com um top verde-amarelo e com a bandeira brasileira amarrada ao quadril. Não, Chloe não chegaria a entoar o canto “sou brasileiro, com muito orgulho” e suponho que nem faria coro às nossas torcidas futebolísticas. Obsessão,… CONTINUA

Afetos “in natura”

Os primeiros planos do filme espanhol O Que Arde (título em galego) mostram as árvores de uma floresta por ângulos e iluminações quase sobrenaturais, acompanhados de uma trilha sonora que aumenta a estranheza até o momento em que as árvores começam a ganhar movimento de forma ainda mais inexplicável – leva um tempo de contemplação até o filme revelar os tratores que estão derrubando uma série de árvores, numa ação de limpeza de terreno. Já no filme brasileiro Sem Seu Sangue, os primeiros planos mostram… CONTINUA

Esse assombroso passado

Se hoje um criador precisa lidar com as lembranças de tudo que existiu antes no cinema, ele ainda pode contar com uma constante: o poder do fascínio da ficção, da necessidade humana de fabular, encontrando no cinema uma ferramenta poderosa pela maneira como consegue acessar um imaginário e fazer literalmente que se veja o mundo por outras lentes. Nesse sentido, poucos cinemas são tão informados pelo poder da imagem cinematográfica e pela mitologia por ela criada quanto o de Quentin Tarantino. E se isso é… CONTINUA

Projeções do real

Não é preciso nenhuma grande interpretação crítica, até porque tal fato está falado com todas as letras no testemunho de um dos entrevistados com maior acesso ao personagem-título de Diego Maradona: na combinação desses dois nomes havia na verdade duas pessoas diferentes com quem os próximos a ele precisavam se relacionar. E se não se pode dizer que a ideia dessa necessária separação entre “Diego” e “Maradona” não chegue a ser uma novidade (afinal, Pelé – sempre ele assombrando narrativas de Maradona – já falava… CONTINUA

Às armas, cidadãos

Não tenho lembrança da competição em Cannes começar com três filmes em diálogo tão claro e direto, entre si e com o mundo à sua volta. Vindos dos EUA, da França e do Brasil, os filmes de Jim Jarmusch, Ladj Ly e Kleber Mendonça Filho/Juliano Dornelles conversam não apenas pela chave mais fácil da incorporação dos códigos de distintos cinemas de gênero (filme de zumbi, filme policial, filme de ficção científica/ação/gore) mas principalmente pela forma como, ao propor um olhar absolutamente grudado no presente sócio-político… CONTINUA

Jardim dos detritos

Considerado por trinta anos como um filme perdido, O Jardim das Espumas voltou à circulação no Brasil com a descoberta de uma cópia na França, em 2014. Marco do que se convencionou chamar de Cinema Marginal, trata-se ainda de um filme muito mais conhecido do que propriamente visto. O descobrimento de uma cópia tida como desaparecida não apenas tem permitido que outra geração tenha acesso a este trabalho de Luiz Rosemberg Filho, mas atribui ao filme a condição de uma ação diferida. O atraso com que… CONTINUA