Os mortos vivos

Trama Fantasma é um filme sobre a superfície. A superfície da imagem: a fotogenia da película fotossensível como reverência artesanal a uma dimensão cinematográfica espectral de latitude muito específica. A superfície dos modos e costumes: a aparência que encobre uma intenção, a formalidade que oculta o indecoroso. Da moda como uma temática oportuna onde a ideia de roupagem funciona em diferentes chaves de significação à dinâmica doentia do casal protagonista que encontra em um perigoso jogo de encenação o escape para uma neurose edipiana, é… CONTINUA

Feitiço sem farofa

De que “negritude” se fala em Pantera Negra? O ponto de vista de Pantera Negra é o do modelo diaspórico que, segundo consenso geral, melhor se adaptou ao capitalismo mundial e, malgrado as tentativas incansáveis de dar consistência ao termo, à Modernidade. Uma tipologia específica que, com vestimentas características, música onipresente, modelos de resistência política e, até mesmo, hábitos alimentares, não cessa de servir como referência a outras populações diaspóricas do mundo. Pode-se afirmar que o pano de fundo do filme relaciona-se a correntes de pensamento ligadas a uma… CONTINUA

Nada é provisório

O golpe civil-militar de 1964 promoveu uma mudança paradigmática no tipo de cinema produzido pelos cinemanovistas. Dentre as muitas manifestações que surgiram a partir de Aruanda (Linduarte Noronha, 1960) ou Cinco Vezes Favela (Marcos Farias, Miguel Borges, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, 1962) até o catedrático ano, a perspectiva do grupo se aproximava de cenários da pobreza (como o Nordeste e a favela) e, em paralelo, defendia a autoria e a originalidade estética do movimento, tão bem descrita por Glauber Rocha… CONTINUA

Na órbita dos cínicos

Raramente curadores são protagonistas. Seja em filmes, peças, novelas ou romances, um eventual protagonismo dessas poderosas personas da cultura contemporânea tende a ocorrer pelas coxias, entre os bastidores, distante dos holofotes. Em The Square – A Arte da Discórdia acompanha-se uma sequência de enganos que circundam Christian (Claes Bang), curador de um prestigioso museu em Estocolmo, na Suécia, capital dessa monarquia já acostumada a ser o cenário de flashes mundo afora num dos principais festejos ocidentais de cada ano, o Nobel. Mais do que retratar… CONTINUA

O mundo não é seu

Em uma entrevista concedida a David Poland em julho de 2017, o ator Robert Pattinson comentou que abordou os diretores de Bom Comportamento propondo-lhes trabalharem juntos após ver um still na internet do longa-metragem anterior dos dois. Não havia ainda nenhum projeto. Ou melhor, o projeto de alguma forma começava a nascer ali. Acostumados a trabalhar com não-atores, com moradores de rua ou ex-viciados no elenco, como é o caso de Só Deus Sabe (2014), a reação deles foi imediatamente pensar em como lidar com… CONTINUA

A última Canaã

“A pintura não é nada senão um pano de algodão tecido pelo inferno, que dura pouco e tem pouco preço; ao retirar-se a fina película que a recobre, ninguém mais se dá conta do que acontece”. Carta de Pontormo a Benedetto Varchi, 1564 “Ce monde, je ne sais pourquoi dejà exténué, ne vient pas vers nous, ne nous entrâine pas em lui: il nous change momentanément- il exige plutôt pour être vu que nous percevions notre raccourcissement em face de lui, ou plus exactement que… CONTINUA

A lírica do exílio nos filmes de Leonardo Mouramateus

# What the hell am I doing here? O escape. Vazar. Dar no pé; sair fora. Os primeiros curtas-metragens de Leonardo Mouramateus retratam anseios como esses, nos quais seus personagens aspiram por terrenos bem distantes. Mauro em Caiena (2012) já sugeria algumas pistas. Em over, a voz do diretor evoca uma carta a um tio que fugiu dos “prédios feiosos de Fortaleza”, embrenhou-se clandestino pela Amazônia, tornou-se um imigrante ilegal, um refugiado. Nem aqui, nem lá, e ainda por voltar – a passar por um… CONTINUA

O bullying nosso de cada dia

Filmes sobre transições adolescentes são quase todos iguais. Principalmente os ruins. Lá pelo início dos anos 1980 o cinema norte-americano esquentou a fórmula, repetida ad nauseam, e um bom marco talvez seja Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984), de John Hughes, ornamento da Sessão da Tarde. Claro que ressalvas existem: o brasileiro As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodansky, e o mexicano Depois de Lúcia (Después de Lucia, 2012) trabalharam velhíssimos dilemas com criatividade e filiação à causa. Mesmo Hughes inventaria, em 1985,… CONTINUA

Caminhar entre fantasmas: estados alterados do tempo

Viver um festival de cinema pode significar uma experiência radical com o tempo. Num ritmo febril, entrar e sair de filmes que, embora consecutivos no presente das sessões, nos transportam para momentos históricos e estados da imagem drasticamente distintos, muitas vezes inconciliáveis, é habitar um palimpsesto temporal e imagético vertiginoso, prenhe de passados sobrepostos e de contaminações mútuas. Que isso aconteça em Mar del Plata, cidade que parece assombrada por outro tempo – dos edifícios decadentes às piscinas vazias à beira-mar, dos corredores sombrios do… CONTINUA

A máscara da máscara

O cinema, arte radicalmente situada – espaço, tempo, como a figuração do homem e da terra a desbravar, com suas endemias características –, foi cruelmente propício à práxis de uma ciência que soube sincretizar seus dons de observação meticulosa e mensuração heurística em um instrumento privilegiado de mapeamento holístico do real: da entomologia. Da entomologia vivissecante-jansenista de Luis Buñuel à trilogia “autopsista-institucional foucaultiana” de Stan Brakhage, como da ruse libertina de Erich von Stroheim à ruse “tchekoviana do degelo” de Alexei German em Meu amigo… CONTINUA