A que risco?

Nesses primeiros dias de festival um tema (que deve voltar mais vezes ao longo do evento) tem ocupado nossa atenção: os riscos muito reais de se fazer cinema/arte num mundo onde tanto ainda parece frágil. Há, por exemplo, em competição no festival ao menos dois filmes cujos realizadores encontram-se em situação de prisão domiciliar (caso de Jafar Panahi e do russo Kirill Serebrennikov). As implicações de como criar e lidar com a censura (e a autocensura) são questões que parecem cada vez mais presentes –… CONTINUA

Passeio por uma Europa banal

Já no primeiro dia de projeções oficiais, Cannes deixou bem claro na abertura de distintas seleções, alguns dos códigos do que é considerado pelo Festival como “o lugar do cinema terceiro-mundista” (o termo “terceiro mundo” anda fora de uso nas análises mais sérias da geopolítica, mas no cinema continua fazendo todo sentido). E nisso é importante entender que Cannes é apenas um termômetro bastante preciso do que, na verdade, é um quadro bem mais amplo do eurocentrismo valorativo do “bom cinema” no mundo dos festivais.… CONTINUA

Balaio de gatos

Em algum corredor da minha infância, lembro da mitologia em torno de uma peça de teatro, chamada Greta Garbo, Quem Diria, Acabou no Irajá. Com o passar dos anos, o que era espanto – muito pela sonoridade do título, que eu adorava, entre chicabons e cigarrinhos de chocolate – transformou-se em algo concreto. Os pedaços foram se encaixando, contextualizei a peça no imaginário GLS, que, assim, ganhou outro sentido. Pois bem, o mesmo ocorre com Garota de Ipanema (1967). O suburbano Leon Hirszman, quem diria,… CONTINUA

O lugar do “lá”

Em crítica, fala-se comumente em efeitos de fora de campo, retórica destinada a ativar na cabeça do espectador a ideia, sugerida embora, de que ao campo preexiste sua alteridade incomensurável, de natureza tópica (a equipe, a câmera de filmar) ou transcendental-significativa (a Memória, o Imaginário): a pontualidade ou vastidão do fora de campo desvelado vai decidir em geral da grandeza do filme; pensemos, por exemplo, em thrillers, neste travelling dianteiro que progressivamente vai se aproximando do corpo a quem segue, na noite alta; não é… CONTINUA

O mundo desde o fim

No trato com o romance de Antonio di Benedetto, há uma omissão significativa em Zama. Já na jornada final, quando o destacamento reunido para a caça do bandido Vicuña Porto se depara com o grupo de índios conhecido como “os cegos”, di Benedetto invoca uma anedota marcante. Depois que a tribo inteira tivera a visão extirpada pelos inimigos, os homens e mulheres encontraram uma insuspeita liberdade na mutilação: em terra de cego em que não há sequer um caolho, todas as convenções tradicionais são, de… CONTINUA

Espelhos do poder

Terremoto Santo é possivelmente a manifestação mais desconcertante da pesquisa atual dos artistas Bárbara Wagner e Benjamin de Burca. Conscientes da função apaziguadora que uma certa ideia de cultura popular ocupou na formação dos imaginários nacionais e regionais, e ao mesmo tempo muito sensíveis às ambivalências políticas do cinema e da fotografia etnográficos, os artistas têm se lançado a um questionamento das formas de visibilidade do que chamam de “corpo popular”. A pesquisa tem resultado em um conjunto notável de filmes de curta duração, inicialmente… CONTINUA

Entre ver e ser visto

O cinema guardou, ao longo de sua história, uma relação ambígua com sua pulsão escópica. O cinematógrafo – arte da ação = imprimir gestos, movimentos, ritmos num espaço-tempo determinado pelo próprio ato da impressão – tinha na curiosidade do olho-câmera uma espécie de ponto de atrito, usado tanto como metáfora de si quanto como motivos do olhar pela fechadura, adentrar espaços interditados ao público ou explorar dimensões da vida cotidiana inapreensíveis por diferentes razões. Porém, ao mesmo tempo que o cinema anedotiza o mundo, aguçando… CONTINUA

Desterrar, irromper

Diante da terra, perfurada e remexida, como contemplar o horizonte e o desconhecido? Ali, onde o céu já não é capaz de englobar uma coletividade, como se dava em boa parte dos faroestes norte-americanos, como ir ao encontro de uma comunidade? Western é um filme que reverbera latências, que opera nos intervalos, entre a precariedade das fronteiras, das formas de vizinhança e da comunicação. Não basta, então, que o herói solitário de Valeska Grisebach seja apenas um forasteiro alemão, um pistoleiro envelhecido e melancólico que… CONTINUA

Destino manifesto

A montagem de 15h17 – Trem para Paris reforça sempre a ideia de destino final, um funil que aponta para o encontro inevitável no trem do título entre os três protagonistas e o terrorista do ISIS que virão a desarmar. Algo reforçado pela opção por deixar que as primeiras etapas deste evento fatídico se desenrolem via flashforwards interrompendo periodicamente a progressão narrativa entre os blocos centrais da ação. Assim como no pouso forçado de Sully, Eastwood volta aqui seu foco para um evento dramático real… CONTINUA

Sobre as formas positivas

Na superfície, A Forma da Água organiza todos os seus elementos nos lugares mais apropriados e adequados. A fábula característica do cinema de Guillermo Del Toro se desenvolve na fricção entre a representação de um mundo e uma época fáceis de identificar num mínimo conhecimento histórico (a Guerra Fria e a corrida armamentista entre norte-americanos e russos) e a entrada do fantástico como desestabilização das regras desse mundo (o homem-anfíbio encontrado num rio da América do Sul, referência extraída diretamente de O Monstro da Lagoa… CONTINUA