A alteridade está morta; longa vida à alteridade

1. A Garota Desconhecida se passa em grande parte dentro de uma clínica médica. Diferente de um hospital, o espaço funciona mais como uma unidade de atendimento familiar, onde pessoas daquele bairro ou região recebem consultas médicas básicas, mediando a triagem para núcleos mais especializados. É o tipo de estrutura que se beneficia de uma maior intimidade entre o clínico geral e seus pacientes, e permite um acompanhamento que conjuga alopatia com certa atenção social – serviço que serve também, mas não só, como escada… CONTINUA

O simbólico está morto, longa vida ao simbólico

1. Sieranevada, de Cristi Puiu, abre com um plano visualmente desequilibrado de um carro parado no meio da rua. Lary (Mimi Brănescu) salta de trás do volante e entra em um prédio, deixando o veículo em ponto morto por um minuto. A câmera não acompanha seu trajeto, abandonada junto ao carro, atrapalhando o tráfego. A duração do plano é estendida além de qualquer eficiência, mantendo o paradigma de realismo observacional da recente onda romena no world cinema, que tem em Puiu um de seus mais… CONTINUA

A palavra está morta, longa vida à palavra

1. Há três momentos em Certain Women, novo filme de Kelly Reichardt, que amplificam seu dilema central. O primeiro acontece bem no princípio, na primeira das três histórias individuais que compõem o filme: Laura (Laura Dern), advogada que há meses tenta convencer seu cliente (Jared Harris) de que ele não tem direito à aparentemente justa compensação por um processo já previamente acordado, expressa seu desconforto ao vê-lo concordar de pronto com um advogado que diz exatamente o que ela vinha falando desde sempre. “Seria tão… CONTINUA

O novo ópio

No 17 de junho de 1989, uma noite agradável de outono, a Rede Globo apresentava no Supercine, 21:45, o filme Chuva de Milhões (1985). Dirigida por Walter Hill e estrelada por Richard Pryor, a comédia encaixava-se perfeitamente no gosto da criançada da época. Mas duvido que, naqueles tempos dos aparelhos de TV escassos e pais vigilantes, muitas crianças tenham adiado o sono para darem boas risadas. A Globo (sempre) foi esperta e reprisou o filme na tarde do emblemático 1 de janeiro de 1990, no… CONTINUA

As esquivas com Histórias outras

.49º Festival de Brasília. Rosa (Yoná Magalhães) e Manoel (Geraldo Del Rey) correm. Eles estão de mãos dadas; numa paisagem sertaneja, áspera, inóspita, quando ambos os personagens, logo na sequência escolhida como a abertura de Cinema Novo, de Eryk Rocha, alcançam o clímax do célebre filme de 1964, de Glauber Rocha. A cena acontece, mas, calma, eles ainda não alcançaram o mar. Apenas fogem, já ao som de Villa-Lobos, escapam e precisam, urgentemente, sair dali, sair de si; e, em meio ao fôlego da fuga,… CONTINUA

Da tradição

.49º Festival de Brasília. O início de Antes o Tempo Não Acabava, de Sergio Andrade e Fábio Baldo, retrata de maneira bastante descritiva um ritual indígena. A câmera solta, na mão, observa os detalhes do ritual, maneia os cortes entre corpos em movimento no espaço, revelando a locação, as pinturas e vestuários tradicionais, com planos fechados mobilizados pela ação do evento. Os personagens fazem uma poção, cujo teor exato desconhecemos, sabendo apenas que é ”muito poderosa”. Ao redor de homens mais velhos regendo o ritual,… CONTINUA

Da centralidade do corpo

. 49º Festival de Brasília . Diante da parede desgastada de seu apartamento, Elon (Romulo Braga) faz uma espécie de exercício – inapreensível ao espectador pelo plano mais fechado – que agita seu dorso nu. De costas para a câmera, os ombros do personagem se contraem e relaxam com intensidade cada vez maior, como se o homem corresse sem sair do lugar. Os músculos se tonificam e criam um desenho gráfico de pele e ossos em movimento que transfigura no corpo a condição atormentada da… CONTINUA

As cidades onde vivo, temo e enlouqueço

.49º Festival de Brasília. Três filmes no Festival de Brasília 2016 – o curta-metragem Estado Itinerante , de Ana Carolina Soares, e os longas A Cidade onde Envelheço, de Marília Rocha, e Elon não Acredita na Morte, de Ricardo Alves Jr. – têm Belo Horizonte como ambientação, menos na geografia da cidade como ponto de partida do que nos espaços urbanos a servir de moldura para deslocamentos ou prisões, trajetórias erráticas ou desvios de caminho. São, antes de tudo, filmes sobre como o enquadramento desvela… CONTINUA

Dos encontros

. 49o Festival de Brasília . Os primeiros minutos A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha, mostram a chegada por ônibus à cidade de Belo Horizonte de Teresa (Elizabete Francisca), jovem portuguesa imigrante, cujo sotaque se revela ao interagir com personagens anônimos da rodoviária. Fala de amenidades, espera por algo que não fica muito claro. Ao longo do filme, ela caminha pelos espaços do centro da capital mineira, adentra bares, lojas, percorre as calçadas e atravessa as ruas, num estudo da “arte de andar pelas… CONTINUA

Que fazer?

Em Corumbiara (2009), a locução de Vincent Carelli atestava um fracasso: após inúmeras tentativas frustradas de fazer das imagens uma evidência do massacre sofrido pelos índios, restava ao filme recolher os cacos e ensejar uma narrativa possível de um processo que já durava vinte anos. O caráter fragmentário da montagem se assentava no acúmulo de ruínas – ruínas do mundo, ruínas da História – que o filme se dispunha a reunir, sem nunca cair na tentação de “enfileirar fatos no espeto da cronologia e amarrá-los… CONTINUA