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Dos encontros

. 49o Festival de Brasília .

Os primeiros minutos A Cidade Onde Envelheço, de Marília Rocha, mostram a chegada por ônibus à cidade de Belo Horizonte de Teresa (Elizabete Francisca), jovem portuguesa imigrante, cujo sotaque se revela ao interagir com personagens anônimos da rodoviária. Fala de amenidades, espera por algo que não fica muito claro. Ao longo do filme, ela caminha pelos espaços do centro da capital mineira, adentra bares, lojas, percorre as calçadas e atravessa as ruas, num estudo da “arte de andar pelas ruas de beagá”, gesto forte de filmar a feição comum e o ritmo cotidiano desta cidade, elemento pulsante da cinematografia mineira da última década.

Se isto é patente no conjunto, este encontro com a cidade é algo novo na trajetória de Marília Rocha. Seus filmes anteriores encontravam sua cosmologia visual e rítmica na perenidade da vida simples, seja na cultura quase esquecida dos boiadeiros (Aboio, 2005), no recolhimento afetivo das jovens mulheres de Curralinho (A Falta que me Faz, 2009) ou divagações possíveis no “mundo inapreensível para nós” do resgate memorialístico em imagens (Acácio, 2008). Mas se Acácio e Aboio tinham um vigoroso traço de mediação entre a cineasta e seu interesse, A Cidade Onde Envelheço aprofunda o olhar direto para as personagens e sua interação com o espaço presentes em A Falta… Se, em todos os seus filmes, o encontro com uma realidade outra demandava deslocamentos e aproximações diferentes, aqui Marília Rocha se concentra em encontros como matéria fundante de sua articulação.

Em A Cidade Onde Envelheço, Teresa reencontra Francisca (Francisca Manuel), amiga dos tempos de colégio e vinda de Portugal há mais tempo para residir na cidade. Este encontro é o ponto de convergência do filme, com a câmera orbitando ao redor delas na observação de seus gestos e olhares em busca do estado mais profundo das personagens nos pequenos vestígios traídos por seus corpos. Mais que isso: os contrastes, as pequenas variações de ânimos e diferença de impressões sobre a vida e o entorno cumprem o papel de verdadeira dramaturgia do filme. Em dado momento, elas conversam sobre o amor, casamento e sexo. Francisca não se prende a ninguém, ainda que algumas cenas antes ela tenha passado o dia com uma espécie de namorado, que ela chama apenas de “amigo”. Teresa acredita no amor e na convivência no decurso do tempo. Noutra cena, Teresa se mostra empolgada pelas possibilidades em Belo Horizonte, enquanto Francisca apenas avisa ser a euforia da novidade. Nessas e outras, Teresa e Francisca se revelam em camadas de sensibilidade diante da cidade, a primeira mais radiante e de fácil apreensão de sua alegria juvenil; a segunda, mais opaca, teimando em entregar sua melancolia silenciosa a qualquer olhar.

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A Cidade Onde Envelheço (2016), Marília Rocha

Se Francisca desperta mais atenção, sua inquietude interditada espelha na cena o olhar do filme, que se recusa insistentemente a dar mais. Onde se espera um drama ou atitude mais agressiva nos rumos das personagens – como a cena em que Neguinho (Wederson Neguinho), colega de trabalho de Francisca, vai dormir na casa da portuguesa, deixando no ar algum tipo de flerte – Marília Rocha repõe o filme em certa estabilidade. Persiste no gesto e no olhar, em rodear as personagens e tentar apreender as energias que Francisca transmite a Teresa e vice-versa. Como Francisca afirma, a alegria de Teresa em estar na capital mineira, que ela não sente mais, é contagiante. Este contágio é mais como ideia ou sorriso de canto de boca, em pequenos reflexos que não alteram a dinâmica suave das cenas. Mantendo certa frugalidade do cotidiano, da vida compartilhada entre duas amigas tão próximas, mas tão distantes, A Cidade Onde Envelheço é registro desse (re)encontro, mas também um olhar da câmera a conhecer as personagens. A atenção aos corpos das atrizes e uma interação agudamente sensualista entre as duas e a câmera criam um desejo de ver mais e ficar a acompanhar essa vida de sensações e deslocamentos pela aparência das coisas.

A cidade ganha a potência de casca simbólica das relações. Quando a música de Jards Macalé entra para expressar a última lufada de sensações de Francisca com a cidade, a câmera se desloca pelas ruas apontando para fachadas de prédios e a parte visível do centro de Belo Horizonte para quem habita as ruas, sem adentrar os interiores. São nos espaços internos que as moças podem se resguardar e se expressar livremente, rimando Teresa e Francisca com a pequena comunidade de mulheres de Curralinho de A Falta que Me Faz, que se afasta do corpo social para confessar-se à câmera. Aqui não há confissão, há existência. Se ambas têm uma sociabilidade restrita ao longo do filme, isso é mais por dificuldade pessoal que por amarras conjunturais, pois, em sua intimidade acompanhada pela câmera, a dupla discute sobre a imigração, a esperança, os costumes locais, os acabamentos de um apartamento que pretendem alugar.

Esses jogos de interações e forças, encontros mais intensos ou apenas ocasionais com colegas de trabalho, amigos recentes ou desconhecidos – e a cena em que Neguinho dorme na sala do apartamento da duas e Teresa chega de uma noitada completamente bêbada, se conhecendo numa situação trivial e bastante cômica, é talvez o exemplo mais potente das possibilidades de encontro – se firma numa atração entre câmera, atrizes e nas energias trocadas entre esse trio, realizando um projeto de cinema sensorial clairedenisiano, especialmente em suas obras de feição mais doméstica como 35 Doses de Rum (2008). Contudo, por mais epidérmico, fluido e íntimo que o olhar da cineasta francesa possa ser, a troca entre suas personagens extravasam o âmbito doméstico e permite antever certas questões que estão além das paredes e objetos de uma casa ou da pele das personagens, como a imigração e as relações sociais de uma certa comunidade, em geral conflituosa com outro grupo. Aqui, o olhar sensível para o frugal, que se nega a avançar para além das energias, cria um cotidiano fechado para o contexto social. Isso não parece questão ao filme, mas é patente que é a dimensão subjetiva a motivadora da melancolia de Francisca, e não qualquer outra coisa envolvendo relações com o Brasil ou sua dificuldade de sociabilidade. Ou ainda de Teresa, que não parece ter vida para além de seus amigos de balada e a casa de Francisca – o trabalho e as dificuldades financeiras não participam dessas coisas… Há uma leveza ao encontrar a cidade que se contrapõe ao peso do real do grosso da produção recente do cinema brasileiro, mas essa delicadeza encontra seus limites ao reduzir a realidade das ruas que percorre a uma membrana de aparência entre as personagens e o mundo.

A Cidade Onde Envelheço deixa claro que a primeira investida ficcional de Marília Rocha sobrepõe questões de seus filmes anteriores com novidades próprias tanto da ficção quanto da presença de novos interesses, ainda mais no curso de uma obra de filmes com diferentes tonalidades entre si. Tendo mergulhado de cabeça na produção do jovem cinema brasileiro surgido em meados da última década, é interessante me encontrar com a nova obra de cineastas centrais após o salto no passado, num trabalho mais sistemático que tentava, em meio à flexibilidade dessa jovem produção, costurar traços comuns e posicionar os filmes dentro da história do cinema brasileiro. Como este trabalho buscou articular desejos comuns com olhares particulares de jovens artistas, é notável perceber os caminhos tomados por um projeto de cinema – espontâneo, afetivo, feita na tensão entre a simplicidade e a ambição artística – comum que agora desemboca em propostas tão distintas quanto este filme de Marília Rocha e O Último Trago. O novo filme de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti traz para o tom geral a dimensão mítica presente nos filmes anteriores, que até então residia na esfera extemporânea de alguns temas – a amizade, o deslocamento, a potência da arte na vida – que se destacavam da vida prática em um senso de urgência (“não temos tempo de temer a morte”) fiador e, ao mesmo tempo, catalisador de certos limites (Os Monstros é seu exemplo mais nítido); ou na reverência ao cinema como expressão do “divino maravilhoso” e à modernidade do século XX em suas vertentes mais inquietas, o risco que mistura arte e vida, especialmente sensível em Com os Punhos Cerrados (2014), quando a preocupação política salta para a estética a partir do diálogo com as vanguardas históricas como consciência. Aqui, o mítico contamina o corpo do filme numa tessitura de signos que ultrapassa o dado da citação e arma uma cadeia de cenários, personagens e situações que habitam um universo descolado do concreto.

O Último Trago (2016), Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes
O Último Trago (2016), Luiz Pretti, Ricardo Pretti e Pedro Diógenes

Com exceção do primeiro ato, aparentemente situado no presente, O Último Trago se desenrola num espaço estético e num tempo deslocados, com traços similares ao tempo histórico da realidade, mas repleto de elementos de composição que, não sendo falsos, tampouco são naturais. São orgânicos na medida em que o filme está preocupado com a força dessa composição e o jogo de faz de conta próprio da consciência moderna do cinema – e que só pode se pensar “clássico” num faz-de-conta de sua historiografia.

No início, o filme aproveita o presente para inserir elementos de estranhamento que serão vigorosamente trazidos a primeiro plano posteriormente. É o caso da cena de strip tease que encerra esta primeira parte, numa boate poeira. Filmada frontalmente em plano aberto, a câmera se fecha lentamente enquanto Valéria (Samya De Lavor) tira a roupa sem sensualização, de modo truncado e artificial, num ponto de vista que não emula o olhar de personagem alguma ou mesmo de um sujeito onisciente. O erotismo truncado da cena contradiz o seu conteúdo, desestabilizando o equilíbrio fetichista do espectador. O ritmo pausado da performance robótica da atriz destrói o sentido da cena, rebatendo para suas próprias estruturas e para o senso de prazer que deveria despertar, mas não desperta. A violência do momento é uma miragem dentro do filme. Por outro lado, carrega uma “inteligência de cena” e preocupação com a mise-en-scène bastante inédita no cinema do grupo.

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Este aspecto é mais sensível na segunda parte, ambientada em um bar isolado pelas montanhas de um lugar não-identificado. Chama a atenção o investimento na encenação enquanto força expressiva, a posição dos corpos no quadro, o ritmo de entradas e saídas, a posição da câmera em relação à ação, as formas e linhas dos elementos do quadro quanto à sua ocupação no espaço gráfico da imagem. Marlene (Elisa Porto), única mulher naquele ambiente completamente masculino, canta. Sua música envolve a todos, mas é na dimensão espacial, com a distribuição dos corpos no quadro, que sua atração se manifesta. O uso da locação como centro de organização e não apenas como limite é um ganho ao cinema do grupo: diferentemente de Estrada para Ythaca (2010), Os Monstros (2011), No Lugar Errado (2012) e Com os Punhos Cerrados (2014), a imagem ganha em profundidade e espacialidade. Nunca se viu tantos sobrenquadramentos e reenquadramentos num filme dos três diretores – antes, acompanhados por Guto Parente.

Há aí uma ambivalência, pois as estratégias de encenação organizam o filme, tornando uma relação intelectual (o significado) em estética (o visível), ao mesmo tempo que remetem para fora da obra. O Último Trago tem cheiro de filme antigo, perambulando “no beco da noite, no vinco dos dias”. Sua mise-en-scène pontuada da segunda parte, com o texto assumido em sua artificialidade e personagens trazidos de matrizes combinadas do faroeste dos anos 1940 e das releituras mais sujas do gênero no Europa anos depois, além do cinema brasileiro dos anos 1970, assume o artifício e repõe certas camadas de mediação para composição da tonalidade de cada personagem, cenário e monólogo, o que denota uma consciência bem mais apurada da força expressiva da linguagem, se descolando do gesto apaixonado primitivo do cinéfilo.

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O filme desemboca, porém, numa dificuldade inescapável desse manejo que por vezes parece articular um significado bem menos forte. Isso é mais marcante no volume que a postura mítica toma no filme. A trama aposta num sentido de ancestralidade para costurar os tempos e energias da narrativa, dando unicidade ao que cada encenação compunha de forte. Mas a transcendência indígena de Valéria está mais para folclore sofisticado, e o imaginário dos filmes de pirata se mistura ao desbunde numa frágil rebeldia política que tenta, pela apropriação das vanguardas, falar ao contexto político de hoje. A fantasmagoria do “cinema antigo” toma corpo numa alegoria que não se completa, pois a força das construções se impõem ao conteúdo que parece sempre mais ralo. O fantasma que rodeava o filme tenta fechar um ciclo de tempos, corpos e imagens já autônomos. Nesse sentido, o filme foge do agora e suas questões mais sensíveis – representações indígenas, femininas, revolta política -, faz a volta para mirar nele, mas acerta no vazio, como as flechas disparadas por Valéria para o fora de quadro no epílogo. Em O Último Trago, a organicidade do artifício impede a naturalização da força assombrosa do específico.


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