No Lugar Errado, de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente (Brasil, 2011)

outubro 1, 2013 em Cinema brasileiro, Do Arquivo, Em Cartaz, Pedro Henrique Ferreira

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* Originalmente publicado em Novembro de 2011.

4+1 = 4+1
por Pedro Henrique Ferreira

Os dois longa-metragem anteriores dos Pretti/Parente – Estrada para Ythaca e Os Monstros – abraçavam a espontaneidade e a precariedade técnica para auto-encenar uma juventude afundada em uma abundância de referências e, sobretudo, trilhando um cinema de purgação que exorcizava fantasmas da arte para se libertar e retornar a seu status de ruído. Eram percursos contraditórios: almejavam a liberdade, seja na forma de um grande luto (Ythaca) ou na procura de um espaço no mundo (Os Monstros), mas por um mergulho afirmativo numa dramaturgia rígida e num universo repleto de citações artísticas. Os monumentos que estes filmes criavam, num ímpeto hiperbólico de circunscrever uma geração ou um estado histórico paralizante por um pequeno cosmos cearense, com energia vibrante e uma notável vontade de cinema, concluía-se numa romantização de sua condição: num panegírico do artista rejeitado pelo mundo (que, ao mesmo tempo, também o rejeita), que assume uma postura de rebeldia contra uma forma de vida dominante e, sem relutância, tapa os ouvidos e se exclui dela, encontrando eco para o seu fazer artístico na amizade, único castelo seguro a se erigir neste mundo imerso em escuridão.

O que salta aos olhos em No Lugar Errado é como este status é abalado por um duplo movimento. De um lado, des-romantização do isolamento, da amizade e da criação compartilhada. Do outro, abertura concreta para este mundo que anteriormente lhes rejeitava e era por eles rejeitado. Já não há mais jornada, trajeto pelo mundo disparado por uma perda/luto inaugural. Há um deslocamento para além de si mesmo, uma vontade de relação, numa postura de notável maturidade que também se demonstra no ritmo das cenas e na intensidade dos dramas, na forma como o espaço é construído e nos sentidos impressos em cada recurso estético. Maturidade não porque estamos frente a uma obra mais “velha” em comparação a uma mais nova, mas a uma obra que não grita e sacode, e que, em vez de romantizar o seu lugar no mundo, expõe de forma mais profunda o que é habitar este lugar.

Qual é, portanto, este lugar? No Lugar Errado se passa quase inteiramente em um palco onde é encenada a peça Eutro, de Rodrigo Fischer. Os autores, que sempre estiveram confortáveis com a co-autoria e uma política da criação coletiva, em princípio, teriam encontrado mais um aliado no autor de uma peça sobre dois casais de jovens que se re-encontram e vivem uma noite de loucura. A aliança está clara nas relações entre teatro e cinema que, em principio, parecem estar em jogo, mas somente até certa medida. Pois, quando adentramos a diegese da encenação teatral, não há mais motivos para se pensar que há um abismo ou uma ponte entre dois modos diferentes de representação – no que se refere à encenação e ao trabalho dos atores, No Lugar Errado é Eutro.

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A diferença entre os dois títulos (um que passa uma idéia de conciliação entre eu/outro, e outro que demarca justamente uma distância) não se justifica exatamente na dramaturgia, mas em um outro conjunto de recursos que denunciam a fronteira entre as obras: nas luzes que, diferentemente da armação da peça Eutro, se concentram somente em um ambiente, afundando o resto do espaço na escuridão; no cenário minimalista, esvaziado; na planificação das imagens, com rostos chapados contra fundos negros bastante semelhantes aos de Os Monstros; na decupagem que se esforça para pôr-se passiva frente ao desenrolar da ação, mas interfere diretamente na organização espacial; nas seleções das melhores tomadas em seis dias de filmagem de uma narrativa errática, bastante improvisada pelo elenco, diferente de vez a vez; nas imagens de uma Brasília vazia, com sua arquitetura moderna e seus sinais de trânsito piscando, que antecedem e concluem o filme.

Estes recursos se ajuntam para criar uma ambiência de devassidão, um mundo tétrico que, se não chega a ser claustrofóbico, tem com o palco onde se desenrolam as ações uma relação inconciliável – os tais planos de Brasília não “casam” com o cenário teatral, apenas demarcam a distância entre o grupo de amigos e o resto do mundo – e No Lugar Errado termina tratando com sobriedade desta distância, esta incapacidade de contato, este descolamento entre a cena daqueles quatro jovens e o fundo negro que é o resto do mundo. A narrativa se concentra no instante em que a amizade, a única coisa neste universo que resguarda dignidade, periga se romper. Longe do tom de elegia que a amizade adquiria em seus filmes anteriores, agora esta mesma sobrevive em meio a conflitos internos: numa noite, as relações são tensionadas por brigas, discussões, traições, culminando na cena do estupro para, no final, mesmo que constrangidos, todos se abraçarem e a amizade permanecer incólume: é ela o dado inaugural inabalável, a tábula rasa, e não o resultado. Mas é também um subterfúgio. O subterfúgio de um conjunto de jovens, ou de artistas que se agarram uns aos outros para sobreviverem à devassidão deste ambiente sombrio, desta falta de perspectiva que os desrumos históricos do cinema brasileiro lhes puseram ou que, pelo menos, acreditam estar lá.

O mérito de No Lugar Errado é problematizar e criar atrito no universo interno da amizade, mas também, e principalmente, abandonar as ilusões utópicas e românticas para, numa verve mais telúrica, pôr-se em relação com o mundo, ainda que esta relação seja distante, errada, inconciliável. Estar no lugar errado é não estar no Ceará, mas estar em Brasília. É não filmar a si mesmo, mas um outro conjunto de atores. É não filmar uma cena cinematográfica, mas uma cena teatral. É deparar-se com uma outra forma de amizade que até então não pertencia ao universo dos quatro. É fazer de seu próprio processo artístico uma forma de confronto e (talvez) imposição sobre o outro, empreitada que nos recorda vagamente as idas de Pedro Costa a Fontainhas para armar luzes e tableaux em uma realidade apartada que não lhe diz respeito. Encontrar a si mesmo, conhecer-se, sempre numa relação com este outro. Não por espelhamento, mas por distância. Por uma diferença inconciliável.

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