O Touro, de Larissa Figueiredo (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Paulo Santos Lima

* Cobertura da 9a Mostra Cine BH

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E da ficção, renasceu um touro
Paulo Santos Lima

Nem se diz mais “documentarista”, e sim “cineasta”. Num país de cinema com rara e especial força nos documentários, a docuficção e o documentário reflexivo imperaram nestes anos 2000 e 2010, muito pela possibilidade de uma afirmação autoral mais patenteada. Mas não é simples distinguir filme de outro entre essas denominações, e nem as motivações de cada diretor, se por ética, interesse ou pura moda. Algumas balizas existem. Há a ficção vampira do documental, caso de Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (Marcelo Gomes, 2009), que faz com o material documentado (espaço e seus seres) o mesmo que um plantio de cana faz com o solo. Há a ficção a serviço do documentário, caso de Juízo (2007), onde Maria Augusta Ramos recorre a atores para revelar o que o sistema judiciário faz com menores infratores. Assim como há certa reflexão em Santiago (2007), um melancólico álbum de lembranças pessoais de João Moreira Salles, mas que, a certa altura, critica sua má postura com Santiago, antigo mordomo da família Salles, ainda que fique ambíguo (mas não desonesto) se a autocrítica é ao JMS documentarista ou ao JMS filho do patrão. Reflexivo, mesmo, é Jogo de Cena (2007), obra-prima de Eduardo Coutinho que escancara o intricado processo cinematográfico, encontrando finalmente a Pedra de Roseta nessa discussão entre verdade e trucagem (documentário e ficção), por meio de um detido exercício de cena (o tal jogo) que comprova que a imagem cinematográfica possui uma verdade intrínseca.

Também na ficção, porém mais forte no documentário, a ética é o que incide sobre o cineasta, inclusive onde está esse cineasta, como ele se relaciona com o material registrado. Este é um ponto fundamental em O Touro, de Larissa Figueiredo. O filme acompanha a atriz portuguesa Joana de Verona, que visita a  Ilha de Lençóis, no Maranhão, para pesquisar sobre uma versão local sobre o mito sebastianista lusitano. Originalmente, Dom Sebastião teria desaparecido numa batalha no Marrocos, no século 16, e desde então os portugueses esperam que ele retorne e reocupe o trono, devolvendo a Portugal seus tempos áureos. A outra versão diz que Dom Sebastião fincou sua espada na llha de Lençóis, ergueu ali um reinado, inclusive os moradores sendo seus descendentes diretos, e ressurge em noites de lua cheia, nas dunas, em forma de touro.

Joana vai a campo, conversa com os locais, passeia pela região, pesquisa sobre os meios de ir ao encontro de Dom Sebastião, experimenta carregar balde d’água na cabeça, dança com um morador. Mas essa Joana, portuguesa interessada no mito sebastianista relido no Maranhão brasileiro, é uma personagem, e Joana de  Verona, a atriz contratada atuando em encontros e situações parcialmente preparados. Claro que, nesse projeto híbrido, atriz e personagem confundem-se, e atuar não será interpretar, mas interagir (como documentarista). Situação típica dessa onda de docuficções, O Touro é documentário e ficção, e cada um dos procedimento gera efeitos que, em princípio, não condizem com os princípios éticos originais. Assim, está claro que Larissa Figueiredo esteve em campo, pesquisou e se entrosou com a população local, para aí pensar nesse projeto, que na verdade já havia iniciado com o curta O Rei (2014), detido no olhar do próprio São Sebastião. As imagens e o tempo que decorre nas tomadas deixam claro tanto uma aposta (ficcionalizante) na beleza e força dramática das locações da Ilha de Lençóis, que não se resumem na geografia mas também nas casas, nas pessoas, nos detalhes (característica documental). Há, sim, uma proba intenção em falar sobre a bela e desconhecida lenda duma pequena ilha no Maranhão: O Touro, em suma, conta a história de uma portuguesa que, resistente e cética, formada numa cultura-mãe do Velho Mundo, acaba se abrindo a uma nova crença, uma subversão do filho Brasil que afirma outra versão sobre o mito sebastianista português. Mas seu tom o coloca como documentário com índices de ficção, e esse tom documental dará outra cara à experiência: o filme parece ganhar, ao lado da Joana de Verona em cena, um olhar superior, de estrangeiro em contato com uma cultura primitiva. Basta lembrar da cena em que uma família mostra à Joana um trabalho artesanal que seria um touro e ela corrige lhes dizendo que aquilo não era um touro, mas um boi – o que não seria um problema no caso da Joana, mas seria na Joana de Verona fora da personagem Joana.

Essa fusão entre ficção e documentário, apesar de arranhar o filme, vai se afinando no terço final, mais precisamente após Joana rumar finalmente para o lugar onde o touro Dom Sebastião poderá ser avistado. O filme assume-se como ficção, apostando na dramaticidade do som, um vento e mugido ao longe, as dunas e até mesmo uma construção abandonada onde estão duas crianças brincando. O cuidado e empenho de Larissa Figueiredo no registro visual daquele lugar ganha sentido aqui, inclusive com Joana, agora personagem, seguindo para o desfecho que será uma negação àquela insinuação do encontro entre cultura e primitivismo. Na verdade, poderia ser o contrário, e todo esse final ser a experiência real de uma atriz estrangeira conhecendo outra cultura (afinal, Joana de Verona esteve in loco e, com os locais, conhecendo outra versão sobre um sagrado mito). A leitura é relativa, mas o efeito não. Nem sempre o empréstimo que a ficção faz ao documentário, e vice-versa, dá soluções aos filmes, e o que fica patente são esses efeitos, um tom que escapa ao controle do cineasta.

O painel que O Touro apresenta (como documentário ou ficção) começa e permanece  incômodo, insinuando uma adesão absoluta à Joana de Verona numa situação que parece colocá-la acima do tema. E o tema tem gramatura variável, de acordo com a proposta: Joana e o tratamento que o filme dá em seus encontros com os locais são discutíveis para o documentário, mas saudáveis para a dramaturgia ficcional. É uma moral a ser lembrada, não seguida à risca, porque o cinema nos deu diversos exemplos que quebram essa regra. Mas há uma questão de medida e de propósito. Quando Larissa Figueiredo leva, no final, seu filme ao terreno da ficção absoluta (se há um amálgama documental, não importa aqui), O Touro acontece como grande experiência cinematográfica, cujas escolhas a priori foram acertadas. No cinema, nem sempre essas escolhas o são, mesmo com as obras-primas. Inclusive porque as obras imperfeitas compõem a história da arte. Uma certa tendência, essa dos documentários ficcionalizados, quase abate um touro, que no final reage e levanta.

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