O Fim de uma Era, de Bruno Safadi e Ricardo Pretti (Brasil, 2015)

janeiro 25, 2016 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Juliano Gomes

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Nada além
por Juliano Gomes

“Impuro e desfigurante é o olhar da vontade. Só quando nada cobiçamos, só quando o nosso olhar nada mais é senão pura observação, é que a alma das coisas, a sua beleza, se nos revela.”

Roland Barthes, Fragmentos do Discurso Amoroso

Fábula
O Fim de uma Era é o terceiro filme lançado pela Operação Sonia Silk. É constituído por material gravado durante as filmagens de O Uivo da Gaita, de Bruno Safadi, e O Rio nos Pertence, de Ricardo Pretti. A partir desse material foram gravados em áudio fragmentos narrativos por Helena Ignez, Fernando Eiras, Maria Gladys e Otávio Terceiro. Trata-se de uma espécie de filme de sobras; não exatamente um making of, nem mesmo um documentário ou uma ficção. O filme de Bruno Safadi e Ricardo Pretti é uma composição de fábulas, que, dentro da filmografia dos dois e dos teus pares, chega como um acontecimento singular.

Nada
Há uma dificuldade primeira em falar sobre o filme pois, a rigor, ele não fala sobre nada. Não exatamente sobre nada, mas um filme que não diz nada, ou melhor, um filme que não está preocupado em dizer. O perigo de um impulso retórico, do poder da declaração, do declarar, que se apresenta em alguns dos filmes Pretti+Parente e nos dois primeiros longas de Safadi (parece haver uma relação íntima entre esse impulso e uma certa atitude de cinefilia, ligada a uma ansiedade por filiação), essa pulsão de um falar por si próprio, chega arrefecido no terceiro filme da trilogia. Há uma serenidade aqui, inédita na obra pregressa de ambos, uma tranqüilidade em se avizinhar de uma certa nulidade enunciativa (esta é uma obra que tranquilamente pode ser vista como um grande engodo. Se há algo que se pode chamar de urgência de arte, este filme se localiza no espectro oposto a isso).

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Autoria
Talvez o êxito mais palpável da operação estética do desenho de produção do filme seja um tipo de autoria desinflada. Grosso modo, este não parece um filme de nenhum dos dois diretores. Dificilmente se achará a marca sólida de uma autoria, no sentido de uma continuidade da apresentação de elementos e procedimentos. No princípio do projeto, inclusive, este terceiro filme seria dirigido por um terceiro diretor. A estrutura de realização final é resultado de um certo campo de possibilidades e impossibilidades gerada por um estrutura de produção sui generis. O fotógrafo Lucas Barbi habitava o set fazendo planos sobre outra coisa, enquanto os dois outros filmes eram gravados. A posição de Barbi reflete uma estratégia notável: estar junto, mas estar separado, no mesmo lugar, mas fazendo algo outro. Tal tática revela em alguma medida a singularidade da posição do filme, essa possibilidade de uma realização indireta, de algo que é feito, mas que em grande medida se faz só (se há uma reserva permanente de salvação de o que se chama cinema, ela é justamente o involuntarismo – no sentido humano – do registro, das máquinas).

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Desintenção
O Fim de uma Era é a prova cabal do sucesso do desenho de produção da Operação, muito mais que os outros dois. O filme nos afirma, a cada imagem: o cinema não precisa de nada. Se o desejo era produzir filmes baratos, homenagear a estratégia de produção mais rentável da história do cinema narrativo (o filme B – basicamente a pedra fundamental de todo repertório estético do cinema moderno), a radicalização do processo se mostrou como a operação mais singular do conjunto. O mais barato dos três filmes, o filme que se faz depois dos outros, quando tudo acabou, o filme do que sobra, é o que de realmente novo o conjunto apresenta em termos de desenho de produção (a operação dos outros dois parece de condensação de um modelo pré-existente).

O êxito aqui parece resultar de uma fração de sem querer. E esse é um dado decisivo. Quando se generaliza a lógica de um público-alvo, de uma hiper- mercantilização de tudo, é um alento um filme que parece não querer nada – talvez nem mesmo o espectador (é preciso o contrário, que nós queiramos o filme). Um filme que, distribuído no circuito comercial brasileiro, não se adequa a nenhum nicho (documentário; filme ensaio; making of), que não exatamente começa nem termina… um antifilme, onde a possibilidade de fruição depende de um apetite para as fugacidades, feito de reaproveitamentos, isto é, de algo que em alguma medida é virtualmente público, de outros. Não há nada que lhe seja particular além da composição que ele realiza (ele é verdadeiramente uma operação). As imagens são de outros filmes, ninguém está ali engajado nela a não ser o câmera, os personagens estão fazendo outra coisa (atuando para outro filme, realizando outra obra). As falas soam como de um outro cinema, outro filme que foi feito e que não foi feito, que representa de fato uma era – há algo de geral no seu poder de evocação que visa um máximo divisor comum entre as idéias de cinema e de amor. Os atores parecem todos de outros filmes, na tela ou no som. Nada lhe soa como próprio.

ofim4Solidão
A estratégia de coletividade do projeto é contraposta por um insistência da figuração da solidão (o que causa um louvável curto-circuito na retórica de uma linha direta entre processo e obra). O que vemos aqui são pessoas sós no quadro. Ou mais: o estado de absorção do olhar de alguém que filme um cena, ou que dorme, é um estado tão radical que nem mesmo nós estamos ali. A insistência desse corpo só, que olha para fora, é a figura desses personagens que são mais sós que a própria solidão, pois nem eles mesmos estão de fato ali. Trata-se de um raro trabalho de observação sobre o trabalho de filmar que o configura como um esquecer-se. Como estar só se não se está consigo mesmo? A solidão mais radical é uma forma de pertencimento essencial a uma coletividade de outra ordem. Maurice Blanchot fala de uma solidão essencial da obra, uma solidão que não é recolhimento, voltada para fora, antídoto radical de toda retórica de coletividade consensual e auto celebratória. Curiosamente, este é um dos filmes que melhor responde uma pergunta fundamental para esta geração: “o que é um coletivo?”

Preensão persecutória
A forma dessa solidão é esse estado de alguém que está atrás de uma câmera. Alguém que tem um poder (que em alguma medida criou as condições específicas para a filmagem), mas que está em duelo com sua própria falta de poder. Toda gravação é evidência acachapante de uma falta de poder individual – por isso os grandes sets, não raramente, se transformam em grandes duelos pelo poder, e isso imprime. E esse olhar para a cena (que aqui não vemos) é o olhar dessa perseguição, essa perseguição do imaginário, que é fadada ao fracasso, em graus variados. Esse fracasso toma forma de apreensão e melancolia na tela. É esse amor que o filme não cessa de repetir que nunca se realiza, cuja possibilidade de realização já passou, e que sobrou somente como insistência. O fracasso é o sucesso do que não se quis, é o triunfo da não-vontade, e a tomada cinematográfica é um terreno fértil para essa exploração. O Fim de uma Era é um filme de planos, interessado numa certa dimensão ontológica deles. E um plano é sempre um duelo entre a vontade e seu oposto; uma tomada é uma aposta e um mergulho (plongée)

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Parentes
A concepção do projeto da Operação SS é em si uma ação sobre e na história. A evocação da personagem de Copacabana Mon Amour e da Belair Filmes quer verificar as possibilidades de atualização daquela experiência de Bressane, Sganzerla e sua trupe. Um mínimo de tempo de filmagem e um “máximo” de obras tem hoje um sentido distinto do que na década de 1970. Seria vão e tolo emular strictu sensu as estratégias da dupla inspiradora de mestres. Pretti e Safadi se utilizam da Belair como motivo para refletir sobre uma estética da produção e uma produção de estética hoje. Além disso, é um elemento decisivo do filme a presença de narrativas que evocam um imaginário do cinema clássico americano. Há, no mínimo, esses dois campos de referência para podermos pensar o que de fato se opera. Por uma lado, a herança de um cinema utópico, anárquico, e, de certa maneira impossível, por definição, e, por outro lado, um cinema excessivamente possível, que se tornou um fenômeno comunitário de grandes proporções, que funcionou como mapa afetivo de gerações, mas que se apóia numa experiência de mundo que hoje é insustentável. As matrizes de O Fim de uma Era são, essencialmente, impossíveis de emular. Daí seria possível que sua filiação real, seu regime de criação, seja um cinema do plano que evoca uma tradição, um repertório que liga os Lumière, Michael Snow e Kiarostami, ou mesmo Guerin. Essa preensão persecutória está olhando pra eles, para estes. Além de Sganzerla, Bressane, Ignez, Frances Farmer permanecem-se olhando, sabendo que é impossível filmá-los, mas sua sabedoria é compreender que o que faz a obra é a persistência desse desejo (uma possível definição de amor). O desejo nunca sabe verdadeiramente o que deseja, sempre deseja outra coisa. O sufocamento cinéfilo e a ameaça de uma retórica das intenções (que povoa em graus variados filmes anteriores dos dois diretores) são o inverso desse processo, são um excesso de saber o que se deseja

ofim6Era?

Daí a pergunta: de qual fim, e de qual era se fala? O filme de 2015 tem como premissa um contexto onde tudo acabou: uma experiência como a Belair, naqueles termos, seria absolutamente inviável, assim como um acontecimento como a Hollywood dos anos 1930 também seria. Está tudo acabado. Mas a existência do filme é justamente este “algo a fazer” quando tudo já acabou, quando tudo já está feito. Sua opção é por uma dramaturgia fragmentária de um recomeço incessante. Diante da tragédia consumada, depois do fim, o filme escolhe fazer essa sucessão de fragmentos, de números (curiosamente próximos a estratégias dramatúrgicas dos filmes de entrevista de Coutinho, onde blocos de dramas trágicos, de fábulas sobre a desilusão se sucedem em diferença e repetição: canções, enfim)… números que exercem sua função de suspensão e graça, mas sem recorrer a exercícios de expectativa ou suspense. Não se promete futuros aqui. Um filme que narra esperas (gente parada olhando pra fora do quadro, tirando sonecas) do qual não esperamos nada.

O Fim de uma Era é uma espécie de ficção sobre a impossibilidade alegre do cinema. Ele realiza a tarefa obrigatória de toda obra digna desse nome: nos perguntar “o que pode o cinema?”. De certa forma, o filme responde a isso com pedagogia: pessoas que olham, câmeras e luz. É isso que o filme mostra e é disso que ele é feito. Um documento justo sobre um trabalho. Sua extrema superficialidade é a ferramenta de um otimismo da possibilidade de recomeçar a cada instante. A ruína é um jardim. Nada além.

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