Como ocupar uma abstração?

Filmes e documentários de, sobre e com ocupações são motes recorrentes no cinema brasileiro contemporâneo. Desde À Margem do Concreto (2006), de Evaldo Mocarzel, até obras mais atuais, como o curta O Teto sobre Nós (2015), de Bruno Carboni, costuma-se acompanhar o dia-a- dia e as motivações dos movimentos sociais que reivindicam moradia nas metrópoles derruídas pela especulação imobiliária. São filmes que revelam às câmeras um lado oculto, obscuro, desconhecido e alinham-se diretamente a uma causa, um tanto ideal, um tanto pragmática, ou mesmo emergencial,… CONTINUA

Heróis de lugar nenhum

Daniel Blake (Dave Johns) e Chesley “Sully” Sullenberger (Tom Hanks) são de mundos diferentes, com demandas, ações, desejos e ilusões diferentes. Acima de tudo, eles vêm de filmes diferentes. Algo, porém, parece uni-los em alguma medida: o caminho de transfiguração entre serem sujeitos ordinários e, por força de circunstâncias para além de suas vontades, tornarem-se sujeitos extraordinários. Tanto em Eu, Daniel Blake (2016) quanto em Sully – O Herói do Rio Hudson (2016) tenta-se atingir certa expiação por meio da cumplicidade e adesão do espectador… CONTINUA

O filho que é a mãe

Zilhões de eons atrás, quando patrulhas do politicamente correto ainda não haviam tomado a galáxia, certa homossexualidade masculina era vista como uma tentativa do individuo de ser a mãe, tomar o lugar simbólico do seu primeiro amor. Esse conceito (ou preconceito?) abarcava desde o machismo chauvinista até a psicanálise de botequim (não existe psicanálise fora do botequim). Padres, médicos e policiais acreditavam que o sujeito alucinava uma “mulher ideal” e, em vez de possuir a figura feminina e arrastá-la para a alcova, embatucava na ideia… CONTINUA

Discutindo “Alegorias do Nada”

O texto “Alegorias do Nada”, sobre o filme O Último Trago, motivou uma resposta do cineasta Luiz Pretti – com um adendo de Ricardo Pretti – além de uma réplica do crítico Victor Guimarães. Reproduzimos abaixo as cartas. * Carta aberta em resposta à crítica do filme O Último Trago por Luiz Pretti   É uma tarefa ingrata ter que responder ao seu texto. Num primeiro momento não tenho muito o que dizer e nem queria ter que dizer nada. Seria melhor esquecer e deixar que… CONTINUA

O outro em mim

Elle começa com um apelo do fora de campo: a tela negra, emoldurada pelo grito lancinante da estuprada; e, no contra-campo, uma advertência do fora de quadro: o close no olho do gato, que contempla aquilo de que só ouvíramos o grito. O estupro é diferido pelo incognoscível do olhar animal e pelo agonístico urro da vítima, duas formas de Logos que se acumpliciam com as Origens; uma história das profundezas começa a ser descrita aqui, e segundo o diapasão ditado por toda profundeza: cegos… CONTINUA

Câmera pétrea: cinzas do olhar

No início não havia verbo. Mas haveria um início? Num prenúncio imaginário murmura-se um cosmos, uma frase, um filme. Solon começa com raios de luz que atravessam o negro da tela, numa visão abstrata, veloz, que escapa e ilumina. A imagem, ao menos nesse primeiro embalo, não pretende tornar-se visível, mas ferir a câmera. E fere, de forma apenas luminosa, imbuída da mágica das suas partículas. Com notáveis granulações e o seu reluzir em 16mm, o filme situa-se diante das rochas, seus resíduos, sua cadência… CONTINUA

Alegorias do nada

Com os Punhos Cerrados (2014), de Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti, marcava uma guinada importante na filmografia conjunta que se iniciava com Estrada para Ythaca (dirigido pelos três realizadores e por Guto Parente em 2010), ao mesmo tempo em que continuava a trabalhar sobre os mesmos motivos (o luto; o lugar do sonho frente à mediocridade do cotidiano; a insurgência necessária contra um mundo hostil). A virada consistia em uma explicitação da verve política que anima o trabalho recente dos irmãos Pretti e… CONTINUA

A poesia está morta; longa vida à poesia

1. À primeira vista, Paterson parece um filme dedicado a simplesmente contar uma história, mesmo que de sua maneira levemente peculiar. Há, aqui, suficiente aderência dramatúrgica para não alienar uma plateia recentemente reconquistada pelo diretor, muito embora a catequese tenha sido fruto de um de seus piores filmes – Only Lovers Left Alive (2013). Nesta nova ficção (simultaneamente, o diretor lançou também o documentário Gimme Danger), essas estratégias narrativas tradicionais são colocadas na vitrine, como iscas sedutoras a um espectador que o filme sabe bem… CONTINUA

Os outros

Todo narrado pelo ponto de vista de Eduardo (João Miguel), o pai da família formada também por Julia (Marina Person), sua mulher, e o casal de filhos dos dois (ele, no limiar entre adolescência e idade adulta; ela, entre infância e adolescência – e estarem ambos nesse estado “de passagem” não parece nada desimportante para o que está em jogo no filme), Canção da Volta toma o partido da pessoa que “recebe o gesto” numa tentativa de suicídio – ou seja, não quem a comete,… CONTINUA

Elogio ao artifício

Café Society (2016), último filme de Woody Allen, se assume como uma espécie de fábula reminiscente de Hollywood. Mas no lugar de um gesto de reverência vigoroso a essa golden age do star system, Allen prefere a domesticação. A fotografia de Vittorio Storaro cria o cenário ideal para uma peça de legítima veneração – ali sim a reminiscência como um mote do encanto – porém o culto à estrela, ao legado cinematográfico icônico onde o filme é situado, se limita à exploração enfadonha dos conhecimentos… CONTINUA