Isto não é um filme político

1. Política como colheita Nem à frente, nem soterrado pelos cataventos do tempo. A Mostra de Tiradentes não poderia ter um timing mais preciso ao abrir sua programação na praça da cidade. Empate é uma espécie de transmutação fílmica das já históricas últimas palavras libertas de Luiz Inácio: “eles” não podem prender Lula, por que suas ideias estão por aí, semeadas / “eles” podem até matar Chico Mendes, mas não destruir o legado que plantou. O filme de Sérgio de Carvalho (e adicionaria Beth Formaggini)… CONTINUA

A dívida, o segredo, o labirinto

“Queriam nos queimar vivos”, Nuno, personagem de No Quarto da Vanda, de Pedro Costa “Estes genealogistas da moral jamais viram até aqui, nem que fosse de maneira vaga, que o conceito de Schuld (falta, culpa), por exemplo, conceito fundamental da moral, remonta ao conceito bem material de schulden (dívida); (…) Durante o mais longo período da história humana, não punimos de maneira alguma porque pensávamos o malfeitor como responsável por sua ação, portanto de forma nenhuma pensando que apenas o culpado deve ser punido; não,… CONTINUA

Beleza difícil

Filmar o existente, as existências, o existencial Quando o filme começa, Fernando (Konstantino Sarris) já é o destaque do time de handebol da escola e bastará uma partida para que seja chamado para jogar e terminar os estudos na Alemanha. Entre esse primeiro momento e a partida definitiva de Fernando ao final do filme, a mãe, Irene (Karine Teles), é quem mais fortemente reage enquanto a família se prepara para o momento em que, pela primeira vez, um membro da família que vai ao estrangeiro.… CONTINUA

Roma e os limites do visível

Toda imagem nasce sob um desafio: durar além de si mesma. Ir além de sua extensão, de seu presente. Prolongar-se na memória. Não ser relegada ao campo do esquecimento após passar diante do espectador. Transcender sua própria materialidade, sua condição de fato ordinário, em suma. Esse desafio das imagens vem à mente diante de um filme como Roma. Como em outros de Alfonso Cuarón, encontramos aqui uma afirmação da imagem como presente e visibilidade absolutos. Em sua ambição, as imagens de Roma parecem querer tudo… CONTINUA

O instante é um rio das almas perdidas

Nos lugares sérios em que as opiniões são como rochas que não racham nem tampouco se olham, lugares dos quais o cinema não só não está excluído, como talvez, aliás, já tenha se circunscrito em caricatas exemplaridades, tem se tornado terminantemente pueril e quase ofensivo sugerir que indivíduos são por vezes movidos por sentimentos que mal lhes cabem – sentimentos inchados, latentes, indivisíveis de muito do resto do que se faz. Digamos por um momento que este Hotel às Margens do Rio é um filme… CONTINUA

Em busca do afeto

A abordagem do espaço extraterrestre como ambiente fílmico é uma tarefa estética delicada, porque impõe aos corpos, que por ali transitam, uma invariável interação com um denso volume de percepção codificada. É uma paisagem impassível de ser subtraída dos significados implícitos de materialização da infinitude do desconhecido, assim como de tudo que um status representacional de tal ordem deposita sobre o sujeito ali localizado. Sedimentar significados sobre o “personagem espacial” se torna, pois, um jogo de negociação com uma bússola insuflada de iminência significante. Como… CONTINUA

Notícias da Paraíba ou não acredito em paradoxos que não saibam dançar

Quando recebi o convite para acompanhar a I Mostra Walfredo Rodriguez, realizada pela prefeitura de João Pessoa para reunir filmes que surgiram do edital de mesmo nome na capital paraibana nos últimos anos, um motivo me impeliu a aceitar: a rara oportunidade de testemunhar, do meu lugar de estrangeiro sudestino, um processo cinematográfico local em curso, com suas nuances próprias, seus tempos fortes e seus tempos fracos, com uma diversidade e uma amplitude difíceis de apreender nos festivais de escopo nacional. Entre movimentos comuns e… CONTINUA

Deixa eu pintar o meu nariz

Qual a natureza desta sensibilidade que surge do nosso olhar demorado sobre rostos cansados, maquiagens e adereços exagerados, cobrindo-lhes como procurando dar cor ou vida ao que parece sucumbindo à exaustão; corpos brutos enfurnados entre paredes carcomidas, mas cobertas por um véu rosa-choque translúcido e brilhante, coloridos por luzes como as das árvores de natal e embalados por músicas pops e bregas? Estes rostos andróginos, cheios de rugas, vestindo-se como personagens dos mais clássicos filmes ou cosplay de super-heróis norte-americanos, como que vivendo a ressaca… CONTINUA

A vida deles

A realização de um documentário sobre uma cidade pequena americana parece um passo natural dentro da trajetória de Frederik Wiseman, que, desde o início dos anos 1960, tem se dedicado a observar uma determinada instituição dos Estados Unidos contemporâneo, um filme depois do outro, seja a escola, o hospital, a universidade, o departamento de polícia, o zoológico ou biblioteca. Monrovia é uma cidade do Meio Oeste de cerca de 1400 habitantes, localizada no estado de Indiana. Pertencente ao distrito de Morgan, que em 2016 elegeu… CONTINUA

Traumas e perturbações: o fantasma do Pai

Não são poucos os filmes ao longo da nossa história, principalmente a das duas últimas décadas, que trilharam a necessidade de um órfão acertar as contas com o pai, seja esta figura paterna uma autoritária, fortemente presente, ou uma fantasmática, que impõe sua presença pela ausência. A figura cinematográfica do pai é frequentemente a que nos indica um norte ou uma orientação – que nos insere numa tradição de alguma natureza – e a imagem do órfão é também frequentemente a do abandonado pela história,… CONTINUA