Do Chile para outro lugar

“Marijuana ou morfina?”: esta era uma das piadas de Pablo Neruda, ao receber os amigos. Em vez de potes com as inscrições de “sal” e “pimenta”, colocava no saleiro e no pimenteiro as palavras “maconha” e “morfina”, como se oferecesse drogas pesadas, que ajudassem na digestão. Passam-se os anos, Neruda morre e o corpo foi exposto em uma de suas casas – aprumado, de terno, no caixão. A poucos passos dali nascia a noite chilena, que havia recebido Augusto Pinochet doze dias antes, em setembro… CONTINUA

O gozo interrompido

Seria possível invocar as glórias heroicas da história do cinema para lamentar a que ponto chegamos com Dunkirk. Para ficar no terreno das superproduções em 70mm e num dos ídolos de Christopher Nolan, bastaria rever a sequência da tempestade de A Filha de Ryan (1970), para a qual David Lean teve de esperar um ano inteiro na costa irlandesa, com a equipe e o elenco, antes de poder filmar. Enquanto Lean aposta no encontro irrepetível entre as forças da natureza e as do cinema, transformando… CONTINUA

Sobre medalhões e excluídos

Antônio Pitanga viveu a Nova Era no cinema brasileiro. Nascido em Salvador, 1939, o fato lhe garantiu um batizado cósmico: estava no lugar certo, na hora certa. Anos depois, no meio de uma turma de loucos, sob as bênçãos do crítico Walter da Silveira, abandonou o sobrenome seco, o sobrenome comedido, o sobrenome funcionário público – um mero “Sampaio” – pelo “Pitanga”. Da árvore frondosa e carnuda, tropical como todos deveriam ser. Se Oswaldo Massaini produziu O Pagador de Promessas (1962), na Boca do Lixo… CONTINUA

Baudelaire e o Diabo na terra da praia

Lívido (Pedro Henrique Ferreira) tem o corpo desconjuntado, o coração empedrado, a alma atormentada: um vulcão guardado sem manejo de suas lavas reprimidas. É um personagem anacrônico e deslocado ao pé de uma juventude afetiva que jamais olharia para uma Igreja com seus grandes olhos vidrados, cheios de indiferença e curiosidade. Um Homem e seu Pecado é menos sobre o incesto em si do que sobre o pecado como reação ao mundo. Um affair, a cidade cartão-postal, o trabalho, os amigos no bar, o hobby… CONTINUA

A imagem interrompida e seu luto

Com um dispositivo bastante simples, Ignacio Agüero encontra a forma fílmica desses dois documentários. Vê-se um set de filmagem de um cineasta chileno. Ouve-se “corta”, desmonta-se o set e prepara-se, pragmaticamente, para a próxima sequência. Booms, câmera, conjuntos de três tabelas, sacos de areia e outros artefatos comuns aos sets; tudo desmonta-se, rearranja-se. Nesse exato instante, Ignacio surge no quadro, chama o diretor e faz uma pergunta bastante direta: “o que é o cinematográfico nesse teu filme?”. As respostas e as sentenças são as mais… CONTINUA

Jovens mulheres

Seria meio automático associar imediatamente Sofia Coppola ter apresentado seu novo longa em Cannes ao fato de que, nesse mesmo ano, o Festival exibiu um filme cheio de energia, todo ele encenado em torno de uma personagem feminina jovem (interpretado por uma atriz desconhecida, deixando uma marca fortíssima na tela), que se sente perdida e um tanto desamparada num mundo em que tudo parece tornar mais difícil a sua simples trajetória em passar para aquilo que é considerado como uma “produtiva idade adulta” – trabalho,… CONTINUA

Dizem que sou louco

Uma ideia razoavelmente comum desde que o cinema se consolidou em sua vertente de arte narrativa é que os conceitos e a prática psicanalítica não apenas seriam aplicados muito bem como ferramenta crítica de análise de obras como de fato seriam ferramentas importantes para a escritura e construção de personagens na ficção. É verdade que essa relação entre arte narrativa e psicanálise está bem longe de começar com o cinema – afinal não é nenhum acaso que alguns dos conceitos fundamentais para a mesma venham… CONTINUA

Passeios no inferno

A competição de Cannes teve um aumento considerável da temperatura dos debates estéticos relevantes em questão de doze horas com a exibição dos novos filmes de Sergei Loznitsa e dos irmãos Safdie – dois filmes tão diferentes quanto se pode ver, vindos de cineastas ainda mais distintos, mas que têm a curiosa característica de acompanhar em linha reta a descida de seus protagonistas ao inferno num tempo bastante curto. Não deixou de ser uma coincidência fascinante que essas exibições tenham acontecido no mesmo dia da… CONTINUA

Era uma vez

O que é “um filme de época?” Estritamente falando, a resposta não poderia ser mais simples: um filme que se passa num momento “real” do passado. Mas muito mais interessante pode ser perguntar: o que pode ser um filme de época? Se é considerada uma verdade universal a afirmação de que um filme sempre nos fala mais sobre o momento em que ele é realizado do que sobre o momento (seja o passado ou o futuro) que ele retrata na sua narrativa, o que nos… CONTINUA

Repetir ou não repetir: essa não é a questão

Principalmente na obra mais tardia de ambos, há algo de muito curioso que aproxima as trajetórias de Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho. Não se trata apenas do fato de que repetição não parecia ser uma possibilidade para eles: chama a atenção a maneira como os filmes iam reagindo uns aos outros, levando a desenvolvimentos e questionamentos internos onde cada resposta claramente levava a mais uma pergunta. Até por isso, nos cria uma perspectiva fascinante poder assistir 24 Frames, com a triste condição de finalidade que… CONTINUA