Os mortos vivos

Trama Fantasma é um filme sobre a superfície. A superfície da imagem: a fotogenia da película fotossensível como reverência artesanal a uma dimensão cinematográfica espectral de latitude muito específica. A superfície dos modos e costumes: a aparência que encobre uma intenção, a formalidade que oculta o indecoroso. Da moda como uma temática oportuna onde a ideia de roupagem funciona em diferentes chaves de significação à dinâmica doentia do casal protagonista que encontra em um perigoso jogo de encenação o escape para uma neurose edipiana, é… CONTINUA

Na órbita dos cínicos

Raramente curadores são protagonistas. Seja em filmes, peças, novelas ou romances, um eventual protagonismo dessas poderosas personas da cultura contemporânea tende a ocorrer pelas coxias, entre os bastidores, distante dos holofotes. Em The Square – A Arte da Discórdia acompanha-se uma sequência de enganos que circundam Christian (Claes Bang), curador de um prestigioso museu em Estocolmo, na Suécia, capital dessa monarquia já acostumada a ser o cenário de flashes mundo afora num dos principais festejos ocidentais de cada ano, o Nobel. Mais do que retratar… CONTINUA

O mundo não é seu

Em uma entrevista concedida a David Poland em julho de 2017, o ator Robert Pattinson comentou que abordou os diretores de Bom Comportamento propondo-lhes trabalharem juntos após ver um still na internet do longa-metragem anterior dos dois. Não havia ainda nenhum projeto. Ou melhor, o projeto de alguma forma começava a nascer ali. Acostumados a trabalhar com não-atores, com moradores de rua ou ex-viciados no elenco, como é o caso de Só Deus Sabe (2014), a reação deles foi imediatamente pensar em como lidar com… CONTINUA

O bullying nosso de cada dia

Filmes sobre transições adolescentes são quase todos iguais. Principalmente os ruins. Lá pelo início dos anos 1980 o cinema norte-americano esquentou a fórmula, repetida ad nauseam, e um bom marco talvez seja Gatinhas e Gatões (Sixteen Candles, 1984), de John Hughes, ornamento da Sessão da Tarde. Claro que ressalvas existem: o brasileiro As Melhores Coisas do Mundo (2010), de Laís Bodansky, e o mexicano Depois de Lúcia (Después de Lucia, 2012) trabalharam velhíssimos dilemas com criatividade e filiação à causa. Mesmo Hughes inventaria, em 1985,… CONTINUA

Caminhar entre fantasmas: estados alterados do tempo

Viver um festival de cinema pode significar uma experiência radical com o tempo. Num ritmo febril, entrar e sair de filmes que, embora consecutivos no presente das sessões, nos transportam para momentos históricos e estados da imagem drasticamente distintos, muitas vezes inconciliáveis, é habitar um palimpsesto temporal e imagético vertiginoso, prenhe de passados sobrepostos e de contaminações mútuas. Que isso aconteça em Mar del Plata, cidade que parece assombrada por outro tempo – dos edifícios decadentes às piscinas vazias à beira-mar, dos corredores sombrios do… CONTINUA

A imagem da vida

Todos os Paulos do Mundo começa com voz off de seu biografado recitando o mito da Torre de Babel, sobre a proliferação dos povos pela Terra, com suas línguas e culturas distintas confundindo-se, em desentendimento. Extraída de 500 Almas (2004), de Joel Pizzini, a fala aparece agora, neste longa de Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro, imantada ao começo de A Vida Provisória (1968), de Maurício Gomes Leite. Na cena, um plongée avista a cidade do alto e mergulha até Paulo José, que assiste mais… CONTINUA

Crônicas de Tiradentes: 1. Em torno do singular

Chego a Tiradentes este ano depois de dois anos e meio realizando um estudo panorâmico sobre o cinema brasileiro independente, comumente conhecido como novíssimo cinema brasileiro, o que cria para mim uma situação curiosa. Volto a um contexto que me é muito próximo, com novos filmes de cineastas os quais mergulhei sistematicamente nos últimos trinta meses, como Adirley Queirós, Affonso Uchoa, Rodrigo de Oliveira, Luiz Pretti; ao mesmo tempo em que as diversas mostras do festival este ano trazem cineastas e obras sobre os quais… CONTINUA

Os fantasmas da história tocados por luvas de pelica

Há uma peculiar dialética entre proximidade e distância que ronda a maior parte dos documentários de João Moreira Salles. Seus filmes de retratos, com contornos biográficos, como Nelson Freire (2003) e Entreatos (2004), alternam-se entre instantes de uma aproximação mais reservada e uma forma de olhar que resvala em certa intimidade. Lembro do close do cigarro a descansar no cinzeiro, lentamente, num momento franco, confessional, do tímido pianista Nelson Freire; das falas de Lula, no seu jatinho de campanha eleitoral, numa conversa um tanto distinta… CONTINUA

Pretextos e adereços

O fatalismo no cinema de Felipe Bragança desabrocha de um gesto de resistência juvenil. Uma violência que pode ser apenas simbólica em seu trato subversivo, mas que preserva uma dimensão política implícita em sua condição de um não-contentamento. Desde seus curtas-metragens e primeiros longas realizados em parceria com Marina Meliande, o diretor parece assimilar uma sentença narrativa em que os personagens, para não serem engolidos por um entorno ameaçador, preservam certa integridade, uma inocência utópica que não só infantiliza um modo de ser e de… CONTINUA

Miragem na montanha

Como na abertura de Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014), o primeiro plano de Gabriel e a Montanha é de uma eloquência cristalina. Uma panorâmica segura, ritmada e imponente revela dois homens que recolhem capim no alto de uma montanha, até que um deles encontra algo na mata. Gradualmente, a câmera abandona os corpos dos trabalhadores e a paisagem inicial, aproximando-se lentamente do rosto de um rapaz branco, morto em um buraco na pedra. O que acompanharemos a seguir são os 70 dias de aventuras que… CONTINUA