A astúcia da impropriedade nos filmes de Lincoln Péricles

Nesta última década, Filme dos Outros (2014), de Lincoln Péricles, realizado no Capão Redondo, periferia de São Paulo, operou a partir de uma compreensão cristalina de como a luta de classes se imprime na materialidade das imagens. Seus procedimentos tomam como ponto de partida inequívoco a percepção de que a sociedade de classe das aparências é organizada e valorizada conforme sua resolução. Realizado com arquivos de dispositivos de filmagem roubados, Filme dos Outros expõe esse “outro” a partir das câmeras que cada filmador possuía. O filme… CONTINUA

Estética do quintal remix: fragmentos ao redor da Filmes de Plástico

Há um plano no curta-metragem Quintal (André Novais Oliveira, 2015) que, diante das mirabolantes invenções do filme, pode passar despercebido. Depois de ser abduzido por um misterioso portal que aparece de repente no quintal de casa, Norberto retorna ao lar na periferia de Contagem e se dirige à porta para entrar. A porta está trancada, como seria de se esperar. A câmera, instalada na sala, mostra a chave no trinco. Sem cerimônia alguma, como alguém que repete o mesmo gesto por décadas, Norberto enfia a… CONTINUA

Antiguerra híbrida – sobre as táticas de Adirley Queirós e 5 da Norte

O cinema de Adirley Queirós e de sua rede de colaboradores se forma por uma relação com o território. Não é só nos títulos de Rap – O Canto da Ceilândia (2005), A Cidade é uma Só? (2011) ou Era uma vez Brasília (2017) que as cidades figuram. Sua obra tem como premissa estudar as ficções e fabulações que formam uma cidade. Para isso, a perspectiva da Ceilândia é estratégica: espacial e simbolicamente em oposição à cidade-síntese das ficções brasileiras do poder institucional: Brasília. Esta situação… CONTINUA

A voz do sangue

Assaltai os antigos e trazei os despojos para casa Provérbio italiano do século XVI O Outro é infinitamente menos importante que o eu, mas são os outros que fazem a História Pasolini em carta a Giovanna Bemporad “Era uma vez” é uma consagrada fórmula de abracadabra para entrarmos no mundo – a princípio interdito a um adulto – do sangue, da origem e do fim, domínios que nos foram castrados pela preeminência da palavra, mediação incestuosa entre a carne e o espírito, entre o mesmo… CONTINUA

“Aqui não se anda só” – Entrevista com Ary Rosa, Glenda Nicácio e Moreira

O aparecimento no cenário público da Rosza Filmes, produtora sediada no Recôncavo Baiano e responsável pelos longas-metragens Café com Canela (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2017), Ilha (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2018), Até o Fim (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2020) e Voltei ((Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2021), é um dos eventos históricos mais importantes da última década do cinema brasileiro. Seu método de trabalho – que associa uma intensa coletividade no processo, uma relação forte com iniciativas de educação, uma ancoragem em… CONTINUA

Ilha, Travessia ou por um cinema negro desobediente

Ilha (Ary Rosa e Glenda Nicácio, 2018) narra o encontro entre um cineasta de sucesso, Henrique, sequestrado por um jovem, Emerson, que obriga o cineasta a fazer um filme sobre sua vida. O longa acompanha esse singular sequestro. Ao final, descobrimos que Emerson foi aluno de Henrique quando criança, em uma oficina educativa de vídeo. Através da disputa entre um cineasta consagrado e um jovem, que hoje trabalha como traficante, disputando o filme que vemos, é construída uma dramaturgia abismática de registros instáveis, que se estrutura… CONTINUA

A cine-ilha

Um bandido vaidoso, que vira as câmeras em direção a si. Um narcisista, um psicopata, um suicida. Quer viver no espelho criado através do cinema – talvez porque seja sua única chance de continuar existindo, ou de pelo menos tornar-se visível. A empreitada implica um gesto mirabolante, radical: tomar de assalto o cinema, sequestrar os olhos da sociedade. Mas esse gesto, no fundo, não se encerra nem no puro narcisismo, nem em um ato de justiça social pelo qual os invisíveis se tornarão visíveis. Trata-se,… CONTINUA

Cinema de Gira

Para esta conversa aqui, buscamos, em termos de método, nos aproximar de certas características que encontramos nos filmes dirigidos por Ary Rosa e Glenda Nicácio. Optamos, no texto, por nos deixar contagiar pela oralidade latente e por um inclinação de método, onde o ritmo, e uma certa velocidade e dinâmica das ideias prevalecessem sobre uma explicação esclarecedora do assunto. O que vocês vão ler é mesmo um diálogo, um chat, uma chuva de insights, e achamos por bem que conserve essa forma, de certa maneira… CONTINUA

Cantar no escuro, aprender a voz da noite

Fazer o caminho de volta demanda um corpo que guarde a estrada a ponto de saber narrá-la. Regressar – seja a mulher à sua casa, ou o cinema ao exercício de si – é tarefa que estremece o mundo tal como está. É justo aí, no instante do retorno, que o terceiro longa de Ary Rosa e Glenda Nicácio acontece. Passados 15 anos de distância, quatro irmãs regressam à sua cidade natal para sentarem-se juntas em uma só mesa, no correr de uma só noite.… CONTINUA

Um silêncio da imagem – Parte 1

“O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.” Guimarães Rosa, em “Grande sertão: Veredas” Retomamos o curta Alma no olho para pensar o gesto cíclico materializado na ocupação da própria tela pelo corpo negro que ocupa o enquadramento ao fim e ao começo do filme. Neste filme de 1973, é o preto da tez de Zózimo Bulbul e a posição contraluz do seu corpo, que, vibrando na eloquência do jazz, rompe o limite da imagem vertendo-se em quadro negro. A… CONTINUA