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Antiguerra híbrida – sobre as táticas de Adirley Queirós e 5 da Norte

O cinema de Adirley Queirós e de sua rede de colaboradores se forma por uma relação com o território. Não é só nos títulos de Rap – O Canto da Ceilândia (2005), A Cidade é uma Só? (2011) ou Era uma vez Brasília (2017) que as cidades figuram. Sua obra tem como premissa estudar as ficções e fabulações que formam uma cidade. Para isso, a perspectiva da Ceilândia é estratégica: espacial e simbolicamente em oposição à cidade-síntese das ficções brasileiras do poder institucional: Brasília. Esta situação geográfica é renovada em experiência em cada filme de forma a esculpir uma nova contraimagem do espaço urbano, da história, da política e dos discursos que as constituem.

Contudo, dizer que seu gesto artístico é somente opositivo é não perceber o principal do que seu projeto põe em jogo. Por mais que haja uma série de ações de contrapoder e revanche nesta filmografia, sua premissa de base é justamente instituir um pensamento, uma postura, uma língua, uma ética, prática e gramatical. Nesse sentido, soa insuficiente falar de um cinema de “resistência”. É um cinema propositivo, “pró posição”. O ainda não tão vasto corpo de filmes indica um enorme esforço em criar uma poética própria e dentro dela dissecar e dobrar as teias discursivas que amparam as macro estruturas de sujeição dos corpos subalternizados historicamente. Portanto, o esforço é, antes de tudo, positivo, quer instituir algo: um campo de ideias, valores e procedimentos. Nos próximos parágrafos farei algumas observações sobre modos e elementos que dão consistência a esse conjunto de filmes que já se pode tranquilamente afirmar que figuram nos mais destacados extratos da arte e do pensamento brasileiro contemporâneos.

Vínculo adversativo

Ceilândia é um território inventado, nos anos 70, supostamente para abrigar a população de baixa renda que anteriormente residia em aglomerados próximos ao centro da capital. Sua três primeiras letras derivam de “Campanha de Erradicação das Invasões”. Como podemos observar no crucial A Cidade é uma Só? – que desdobra justamente esse mito fundador da cidade-satélite – os moradores da antiga área do IAPI foram enganados pelo Estado na promessa de melhores condições de moradia na Ceilândia. Cabe observar que desde o nome do lugar pulsa aqui uma intensa energia paradoxal. A cidade carrega o nome da publicidade dos seus algozes. A “erradicação das invasões” nomeia justamente a cidade que deveria acolher os “invasores”, o que consistiu num factóide para afastar mais ainda a “população indesejada” dos arredores do Plano Piloto. Crianças cantaram a sua própria remoção. O batismo do espaço carrega em si uma fabulação cínica do poder. O trabalho das imagens nesses filmes é justamente disputar a narrativa, constituindo história e elaborando uma linguagem e um nexo próprios.

Disputar a memória

Nos três longas realizados até agora, podemos identificar um intenso trabalho com material histórico. De certa forma, A Cidade é uma Só?, Branco Sai, Preto Fica (2014) e Era uma vez Brasília são “ficções de arquivo”. Os enredos ficcionais se constituem amalgamando-se às fabulações históricas oficiais para evidenciar seu caráter arbitrário, constituindo uma rede de signos que combina uma disputa pelo passado e pelo futuro, através da remontagem de fragmentos de filmes, materiais publicitários e fotos, dentro do fluxo ficcional. Ao lado de Brasília – talvez um dos maiores monumentos ao apagamento histórico, um espaço erguido para tentar não lembrar da nossa história pregressa –, a Ceilândia se torna um polo de inventividade histórica no sentido de justiça factual e invenção metodológica. Os filmes trazem à tona a rotina de atrocidades que ocupa essa população desde a fundação desse território, ao mesmo tempo em que afirma uma visão, uma filosofia da história, absolutamente original e inventiva. Esses filmes, ao nos fazerem experimentar estes materiais, colocados em outro contexto, tornam-se brilhantes estudos sobre as estéticas do poder. A ideia de etnografia da ficção, vocalizada por Adirley Queirós em debates, estuda a gramática da história e do cinema, simultaneamente. Em seus filmes, ouvir os discursos de Michel Temer ou de Juscelino Kubitschek, atravessados por farsas do contrapoder, elucida suas estratégias gramáticas, retóricas de coerção e suas visões de país. A fricção entre imagens de fabricação distinta produz um efeito explosivo para dentro e para fora dos filmes, materializando uma peculiar pedagogia.

Trajetórias no subdesenvolvimento

Filmes como Fora de Campo (2010), Rap – O Canto da Ceilândia (2005) e Dias de Greve (2009) formam, junto aos outros já citados, um estudo sobre a materalidade da derrota. Uma melancolia atroz os habita, em timbres variados – mas uma melancolia extremamente ativa. Não se trata de “assumir a derrota”, mas sim forjar o passo além: o que fazer com ela, como atuar, como urdir as práticas diante do que se apresenta. Como reconhecer-se em condição de menoridade e pensar estratégias de tomada de poder a partir dessa posição com limitações claras? Fora de Campo, por exemplo, inverte o imaginário do futebol brasileiro ao afirmar que ele é majoritariamente minoritário: homens sofridos, exploração e resignação. O que é o 7 a 1 contra a Alemanha na Copa de 2014, se não uma grande ritualização dessa incapacidade de perspectivar a partir da posição de ter menos poder e possibilidades que seu adversário? A ideia de se colocar no jogo como time inferior e tentar ganhar é uma opção menos viável do que buscar o delírio narcísico de jogar de igual pra igual à la “somos vencedores por existirmos”. O filmes de Adirley Queirós são todos jornadas de derrotados estudando projetos de poder: seja uma eleição, a destruição de Brasília ou a luta armada intergaláctica. Não se trata de um imaginário nem derrotista nem anarquista. Trata-se justamente da inquietação de encontrar formas de atuar, construir e instituir, espelhando o enredo ficcional e o próprio gesto do filme, reencenando o absurdo teatro do contrapoder, ousando propor nexos esdrúxulos para uma história sociopolítica igualmente anômala.

Como habitar o inimigo?

Apesar de sua imensa força intelectual, de projetar formas abstratas, ideias de país, de história, de arte, esse cinema possui uma encarnação essencialmente material e mundana. Encenar a ação e a presença dos corpos danados pela história em espaços singulares – é disso que as imagens se ocupam. A tensão entre figura e fundo não é só permanente como constitui o âmago dessa filmografia. A terra avermelhada espalhando-se pelo ar seco ao redor dos corpos negros daqueles que insistem em viver e ousar imaginar tomar o poder é um dos signos centrais dessa rica iconografia de uma urbanização precária, híbrida e singular, que dá uma assinatura visual a esse projeto artístico. O que é Brasília, além de um grande teatro a céu aberto? Ou uma imensa instalação escultural? Sua arquitetura modernista produz um efeito performático no espaço, desnaturalizando a presença e a ação humana. Parece o local ideal para a formulação de um cinema essencialmente performático e farsesco (uma espécie de camp de batalha), na medida em que o “natural” não figura na imagem, não é uma referência. O gesto é de apropriação do espaço para uma torção de seu projeto original. Uma insistente  desobediência da figura ao fundo.

Saquear o progresso

O rap e sua poética do reaproveitamento formam uma das bases da poética de Queirós e os 5 da Norte. Não só a presença dessa arte, mas também uma postura análoga de trabalhar com materiais existentes e inventar, com eles, o novo. O próprio modo de produção da música eletrônica popular se torna elemento nos dois primeiros longas do cineasta. Há uma intensa exploração dos objetos técnicos (máquinas, próteses, gambiarras, motores) onde o que está em jogo é justamente uma postura inventiva desses elementos, fora dos manuais. Um saber técnico figura nos filmes não como amadorismo, mas como expertise tecnológica anticapitalista. Assim como nos materiais de arquivo, revela-se uma outra face dos objetos técnicos, colocados em outros arranjos e circuitos. O gosto deste cinema pelo inatural se expressa numa evidente intimidade entre orgânico e inorgânico, borrando suas fronteiras, como no uso das próteses em Branco Sai, Preto Fica. Tais objetos acabam por metaforizar uma postura desses filmes de constante reapropriação e ressignificação para além das finalidades de origem, revelando nas coisas muitas vezes seu contrário – como no próprio nome “Ceilândia”.

Um ligar à sombra

No campo da geopolítica tem se tornado um tema cada vez mais central a noção de “guerra híbrida”. Tal tática de poder consiste em “ações não convencionais contra forças hostis”. Isto é, não são mais exércitos contra exércitos ou sanções claras entre países. Mas movimentações indiretas, de visibilidade turva, que vão construindo as condições para a manutenção dos processos hegemônicos. Recorro a essa noção do vocabulário político contemporâneo pois este cinema aqui em questão parece fazer de um certo hibridismo sua força de exercício de poder minoritário. Se trata de encontrar, nos materiais e nas situações, focos de contrapoder, e manipular os elementos para que essas forças minoritárias, imperceptíveis, tomem a cena. Invertendo o sentido macropolítico da “guerra híbrida”, Adirley cria um cinema que opera por potencializar irregularidades dentro da história, do território, por encontrar lugares de falha nos sistemas e instituir um funcionamento onde a falha seja o centro, onde Ceilândia seja a capital. Ligar o que existe ao que é quase invisível, causar curtocircuitos enfrentando gramaticalmente o poder, remodelando as ficções e monumentos que ele mesmo produz. O que importa afinal é produzir relações, revelar o que jazia obscuro, abafado pelo vício genocida das elites brasileiras, mostrar que ali nas imagens e territórios onde eles menos imaginavam, habitavam pequenas partículas de resistência que esses filmes tornarão devastadoras bombas de efeito sensorial.

*Este texto é uma versão com alterações do texto homônimo, publicado no catálogo da mostra Um Lugar ao Sol, realizada no Centro Cultural São Paulo em 2018. Acesse aqui o catálogo do evento, com a primeira versão do texto.


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