As boas maneiras JUNIOR BANNER

A voz do sangue

Assaltai os antigos e trazei os despojos para casa

Provérbio italiano do século XVI

O Outro é infinitamente menos importante que o eu, mas são os outros que fazem a História

Pasolini em carta a Giovanna Bemporad

“Era uma vez” é uma consagrada fórmula de abracadabra para entrarmos no mundo – a princípio interdito a um adulto – do sangue, da origem e do fim, domínios que nos foram castrados pela preeminência da palavra, mediação incestuosa entre a carne e o espírito, entre o mesmo e o outro, ponte para o impossível elaborada pelo trabalho larvar do método. Tudo aquilo que nos separa da natureza e nos destina à assunção livre mas exponencialmente solitária da existência; tudo isto foi em vão, pois a arte, mestra em abracadabras sangrentos porque devedores da origem, sempre nos mostrou que é pela oferta do sangue que somos engendrados, que adviemos ao mundo como evento monstruoso (um ser cerzido pela palavra, e ainda com acesso ao outro senão por intermédio desta excrescência?), que abandonaremos este mesmo mundo sem porquê, envoltos pelo véu do mistério de Elêusis e outros tantos mitos terríficos de separação, que a terra vai comer.

O grande paradoxo dos contos concebidos pelo “Era uma vez” é que o sangue, onipresente como um verme uterino em suas tentaculares proliferações narrativas, é aquele dom maldito da natureza sem o qual jamais poderíamos gerar o espírito, este tão nobre vassalo do mito (mas vassalo mesmo assim). O homem é o lugar paratáxico onde o sangue e sua negação suprassumida – a palavra que narra um conto primevo, que o atualiza sob a forma dos significantes encantatórios– se reconciliam em segundas núpcias com o Infinito da danação, acontecimento que se dá para os olhos extasiados de uma criança tutelada por anjos e demônios, fascinatoriamente cooptada pelo “Era uma vez” da tela gigante do cinema, a voz estereofônica do sangue e seus dons de maldição. Na base de toda vida se funda um sacrifício, dizia Mircea Eliade dos mestres ferreiros e alquimistas. Esse e outros contos tantálicos e teratológicos comparecem no relato para crianças de todas as eras do filme de Juliana Rojas e Marco Dutra, As Boas Maneiras. Mas o que diz propriamente este filme encantado para a linguagem de objetividade acintosa do cinema, arte materialista até os ossos, e que, portanto, só admite o mito, o espírito, a parábola alegorista e a analogia fantasista que os reconcilia na experiência da infância de forma negativa?

Em um momento pregnante de revelação e cioso de segredos que urgem ser desvendados, neste filme que sofre a influência da lua como outros ontem as dos Caligaris e Orleacs da noite expressionista litigante, Clara diz a Ana que ela sofre de um distúrbio do sono, o sonambulismo; que essa ferida em seu pescoço é obra de Ana, e que sua avó, mulher ancestralmente sábia, embora não tivesse estudado, tinha lhe ensinado que a água da barriga da grávida é como a água do mar – ou seja: é sujeita às convulsões do cosmo e do caos que ordenam os movimentos cíclicos da vida e da morte, siamesas que não ousam dizer seu parentesco. Isso tudo é dito e mostrado por um enquadramento em plano médio onde a comunhão entre Ana e Clara, duas figuras da exclusão, se elabora plasticamente: Ana está grávida, mas de um homem que não era seu namorado (storyboard feérico que anuncia a segunda noite de São João, com seus encarnados e azuis em plano geral grandiloquente), e foi expulsa de casa pelo pai, rejeitada pelos irmãos; e Clara, como está mais do que provado neste país, sofre das feridas narcísicas de ser negra e pobre. Ana e Clara são duas experiências da diferença radical, da exclusão como norma, da alteridade vigente e candente no seio do mesmo, e o menino Joel, nomeado enquanto tal pela referência bíblica do profeta que foi filho de Petuel e que previu um apocalipse (aqui, o nascimento da criança, transposição por analogia do espírito do texto sagrado à letra do corpo finito da mãe, kata sarka sangrento) de que o povo guardião de Israel sairia vencedor.

As Boas Maneiras começa por nos apresentar o mundo straight e clean de Ana, completamente desprovido dos rastros de pulsão, como um mundo que se inaugura e que nos ofusca pelo excesso natimorto de limpeza, avaro de grandezas porque infenso à finitude. Um único contracampo fulgurante de Clara defrontada com as portas envidraçadas da varanda (na cena quase inaugural em que esta vai ser entrevistada por Ana) é aquela diferença irredutível que nos vai mostrar em negativo a insignificância asséptica do lugar, herdado por Ana do pai que a exclui do círculo familiar como de qualquer outro círculo, alienando a jovem mulher da família como Clara, por ser pobre e negra, o é do circuito social majoritário. Mas e a gravidez? A gravidez de Ana, que solicita a ajuda de Clara no trato do espaço asséptico do apartamento como no do imanentismo imundo das necessidades da gestação, é aquilo que a vai introduzir no domínio do interdito, aquela experiência de alteridade no mesmo que vai propulsionar o filme pequeno-burguês do shopping e dos estacionamentos de prédios dos Jardins para o universo suburbano de Clara, ligando as duas pontas in extremis da cidade sob o uno do fantasma, reconciliando o irreconciliável porque Dona Amélia, embora musicista, tem um altar de santos no meio da sala, acredita em lobisomens e pensa em chamar um padre para exorcizar Joel da maldição de não ter sido batizado. Esse universo suburbano colorido e poroso a rituais fascinatórios como a festa de São João, que nos aparece na segunda parte do filme (uma rima dramática com a festa do nascimento de Joel, como há rimas plásticas: o close nas mãos enlaçadas de Ana e Clara e, ao final, de Clara e Joel, unidos numa guerrilha particular contra o mundo furibundo à porta), é um mundo diametralmente oposto ao de Ana.

Mas é o nascimento do Filho, terceiro excluído gestado pela comunhão de duas exclusões femininas, que vai fazer vibrar o universo morno e estéril da mise en scène da casa de Ana no mesmo diapasão que o âmbito suburbano, candente de ritos e de mitos, do bairro de Clara, prenhe de planos de conjunto onde a comunidade se reconhece e se afirma no incondicional familiar do portrait, enquanto que a primeira parte do filme se contenta com o campo e contracampo das mulheres isoladas em seu berço de ouro. É Joel a moeda de troca que vai converter um mundo no outro, aproximar aquilo que permanecia separado, encantar com sua monstruosidade ativada/atualizada pela proteína aquilo que permanecia infenso à carne como ao mito. É bom lembrar que o médico de Ana corta a carne de sua dieta, como nos mostra o plano demonstrativo em mais de um sentido de Clara trocando a carne sangrenta por vegetais na geladeira; mas é Dona Amélia, mulher do povo, quem, com sua crença nas propriedades curativas da proteína, como nos santos e no exorcismo do sacerdote, vai fritar um bife para a criança; à alopatia causalista do médico, Dona Amélia opõe a crença sábia na força do sangue, que engendra nova vida e a encanta, no caso fatidicamente, com sua força de concepção truculenta, com sua implacabilidade fatal.

As Boas Maneiras, antes de ser um filme de lobisomem (concessão ao mito das florestas brasileiras), é um filme de vampiros, pois é ao sangue jovem e marginal de Clara que Ana aspira ao beijá-la impetuosamente; mas Clara não se assusta propriamente com nada, não se espanta com o advento das obras do sangue, porque aprendeu com sua avó a ser sábia, e ser sábia é saber reconciliar-se com o mistério, é saber que a vida é feita de tribulações e desejos cuja causa nem sempre conhecemos ou reconhecemos, como diria um neo-platônico debitário do ocultismo das reminiscências. Cabe-nos apenas, se sábios formos, acatar e acolher, como a Virgem na resposta a Gabriel: “Eis-me aqui. Faça-se em mim a sua vontade”.

Neste sentido, temos o plano genial em que Clara escorre sobre o prato de macarrão de Ana o próprio sangue, para fecundar o alimento estéril da dieta alopática com o gosto envenenado do demoníaco, aquilo sem o qual nenhum sabor frutifica, nenhuma obra se engendra (aqui, a obra é o garoto monstro, mas poderíamos estar falando por exemplo das obras de arte, das obras do espírito, de que o negativo é a inspiração-mor). O gênio do filme consiste em nos demonstrar, ao final do percurso de ambas as mulheres unidas por um mesmo destino de alteridade, que estes mundos opostos e complementares abrigam um mesmo fantasma, que antes dos entes e suas separações arbitrárias (de raça, de classe, de conto) existe o fantasma e sua larva desejante, cujo poder de maravilhamento se dá a escutar no canto da mendiga (na noite do nascimento de Joel, à beira do rio), na música de Dona Amélia ou na canção de ninar de Clara para Joel ao final.

A voz do sangue, aquilo sem o qual o sangue permaneceria um mistério inviolável, é o canto: à linguagem sintaticamente ordenada do logos ocidental, a arte, de que As Boas Maneiras nos descreve o processo de concepção e produção, se estrutura segundo a parataxe por analogia do mito; é o canto que possibilita que o mistério seja contado, pois a música, como nos ensinara o primeiro Nietzsche do Nascimento da tragédia no espírito da música, é antes de tudo uma experiência hipnótica de cooptação do homem pelo fascínio da natureza, sua entrega fatal, mas plena de regalias sensoriais, aos dons do sangue, da origem, do primeiro e do último Dionísios, um estraçalhado pelas bacantes e outro pregado na cruz. O canto, seja o da ária de Senta em Wagner ou o da canção de ninar para o menino Joel, é aquele instrumento indispensável à produção das obras do sangue, da obra a ser empreendida para que as origens adquiram um sentido e possam enfim estruturar a vida com sua inspiração mágica, como nos mostra a posição de guerrilha, enquadrados de costas num plano médio de conflagração, de Clara e de Joel, decididos a enfrentar a multidão no plano agonístico com que o filme se encerra.

Heidegger nos falava, ao reler poetas como Rilke e Trakl, do momento de decisão como sendo uma cisão hermenêutica a partir da qual a vida in-significante enfim se abria para o sentido, e se retroalimentava retrospectivamente, do nascimento ab ovo à hora deste instante irrevogável. O instante de decisão de Clara e Joel solicita as forças diabólicas como miríficas da história de Ana e entregam não apenas voz ao interdito, como encarnam uma ação capaz de projetá-lo contra o mundo celerado à porta, de encará-lo frontalmente como sendo aquilo que se é, e isto apesar da oposição do outro. Joel é uma figura da inocência desfigurada pelo monstruoso, mas estarão a inocência e o monstruoso tão distantes assim? Não seriam antes partes de um mesmo processo de fabulação do mundo imanente, de sua transfiguração pelos olhos da arte, de que a criança com os olhos arregalados diante da tela do cinema nos deu a imagem mais extraordinariamente magnética em nossos tempos? “Não olhe pra trás; este é o Segredo”, canta a mendiga na noite transfigurada pelo interdito do nascimento da criança, à beira do rio onde a nova, primeva mãe o queria deixar; “Bife é saudável; você deve comer para crescer forte, mas sua mãe não pode saber. Esse é um segredo entre nós, certo?”, sussurra uma cúmplice Dona Amélia para a criança que vai experimentar o alimento proibido como se pela primeira vez fosse saber o gosto da vida. O segredo é a chave do filme: o contracampo designa a reação, a experiência de sabê-lo incrustado na carne do mesmo, como se não precisássemos habitar outro mundo para experimentá-lo: basta aprofundar, basta pressionar num contato erógeno a camada mais profunda deste mundo que, ao revelar-se maravilhoso, guarda também o sabor da monstruosidade, e ambos num mesmo cadinho fumegante de sabores inóspitos ou deleitosos.

Clara e Joel detêm a chave do segredo e, portanto, da vida como obra de arte, mas agora foram descobertos. O que lhes resta senão enfrentar a invasão com as armas de que dispõem? No quartinho protegido pela porta de ferro, eles reencenam para os espectadores a posição, o gesto e o quadrante da pièce de resistance política, de que o filme nos ofereceu ao longo de sua trajetória a fórmula e a chave míticas. Se As Boas Maneiras se encerra como figuração da resistência, e não com a luta propriamente dita, é porque, como dito acima, é um filme sobre a obra possível à arte de viver e de encenar, à nossa obra. A arte é o conto, o canto que dão uma voz ao sangue, que é silente e imemorial: agora, podemos voltar a brincar outra vez.


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